Madonna Ognissanti
Hieronymus Bosch
Lydia Delectorkaya
Em 1910, Matisse tinha 40 anos quando pintou, em Paris, A Dança encomendada pelo colecionador russo Sergey Shchukin. Nesse mesmo ano nascia em Tomsk, Rússia, Lydia Delectorkaya. Filha de uma família nobre e culta russa que durante a Revolução de Outubro (1918) se refugiou em Harbin, Manchúria, na China e depois em Paris. A perda dos pais muito cedo, uma vida precária, assim como um casamento fugaz quando tinha 20 anos, fizeram com que a jovem russa procurasse desesperadamente um emprego que lhe permitisse alguma segurança. Chegada a Paris, em 1928, foi figurante, dançarina e modelo para alguns artistas. O gosto pela arte desde muito cedo fez parte do universo cultural da jovem russa, quiçá, o seu desígnio de vida. Henri Matisse já era um artista reconhecido quando, em 1916, se mudou para Nice com a família até ao final da sua vida, em 1954. O pai dos Fauves, como é conhecido, rivalizava com outros artistas de grande nomeada. A “cacofonia demoníaca” – como apelidaram alguns críticos no Salão de Outono – há muito que o atento mercado da arte era disputado por grandes colecionadores. Matisse posiciona-se dentro de uma elite de artistas invejados. Em 1932 e em resposta a um anúncio para assistente no atelier de Matisse, a jovem russa pode sonhar com a estabilidade desejada viajando para Nice. Lydia tinha 22 anos e Matisse, de 62 anos. O pintor estava a braços com uma nova encomenda feita, por Albert C. Barnes, para um fresco de grandes dimensões (465X385 cm) a ser realizado em Merion, Filadélfia[1]. Era um trabalho árduo para o artista sexagenário. Vários desenhos e estudos foram feitos em papel de várias cores (à escala natural) e redimensionados, recortados, com uma tesoura, conforme a simetria, o equilíbrio, pretendido pelo artista. Matisse conseguiu unir o desenho e a cor num gesto rico em reverberações plásticas. A obra exigia algum vigor físico e demorou quase três anos a ser concluída. O tempo suficiente para que o Mestre reconhecesse a ajuda e o profissionalismo de Lydia. Terminada a obra, acabou também a relação laboral que os associava.
Todavia, Madame Matisse adoeceu e precisava de alguns cuidados. Matisse necessitava de uma pessoa que gerisse a sua agenda profissional; carecia de alguém a quem depositasse confiança na governação da casa e do atelier. A família tinha um nome em mente para desempenhar essa tarefa e a escolha recaiu em Lydia Delectorkaya. Enquanto Madame Matisse esteve doente, Lydia provou não ser só uma boa cuidadora, mas também foi uma excelente governante e secretária. Paulatinamente, Lydia foi assumindo todos os assuntos pessoais da família Matisse chamando à atenção do pintor. A graciosidade de Lydia desperta a indiscrição do pintor. Ela foi importante na vida diária de Matisse organizando-lhe o atelier, preparando-lhe os materiais, posando para vários quadros realizados neste período. A relação entre Matisse e Lydia era de profunda amizade e colaboração artística. Desmentida, talvez, por parte de Amélie Noellie Matisse-Parayre (Madame Matisse) que, em 1939, justifica o pedido de divórcio pela relação ambígua mantida entre Matisse e Lydia. O processo de divórcio nunca foi iniciado, mas o casal viveu separadamente pelo resto das suas vidas. Motivos seguramente fortes obrigaram Amélie a dolorosa decisão. Ciúmes de uma nova musa? Ou magoada pelo espaço ocupado pela nova governanta? Desde o aparecimento de Lydia, e a sua estada em Nice, que a pintura de Matisse sofreu uma mudança formal e estética. A modelação dos corpos, as luzes suaves sugerem espaços cada vez mais vibrantes. O fascínio pelo o Oriente e pela cultura árabe, locais visitados pelo o artista, levá-lo-á a uma nova pesquisa formal e estética. O seu traço baseado muito na linha arabesca reforçam a “luz negra[2]” por ele defendida. O cromatismo é explorado entre as cores rosa e o azul. Os nus vagueiam entre o equilíbrio da composição e o nivelamento dos corpos. O tema da janela e do corpo feminino (nu) aparece no seu trabalho realizado neste período. O exotismo das odaliscas assim como os trajes russos fazem parte da renovada temática matissiana. Lydia foi retratada em muitas das obras do artista: O Nu Rosa (1935), várias Odaliscas (1937) além de retratos personalizados de Lydia são registos de uma musa em que Matisse “preservou a sua beleza para a eternidade” (frase atribuída a Picasso). Quando as forças do artista se desvaneceram (ele sofria de asma, de artrite e, nos últimos anos, contraiu um cancro) Lydia esteve sempre presente confortando-o e defendo os seus interesses com os negociantes de arte. Aliás, Lydia criou a sua coleção de arte ao longo do tempo, investindo o ordenado recebido em obras de Matisse[3]. Após a morte de Matisse ela regressou a Paris fazendo trabalhos de tradução de russo, nomeadamente do escritor Konstantin Paustovsky, que conheceu na década de 50, para francês e organizou monografias, exposições, encontros sobre Matisse. Durante esses encontros e quando interrogada sobre o relacionamento que teve com o artista, Lydia nunca se esquivou, mas nunca deu uma resposta direta[4]. Mas foi evidente que o artista francês, o seu talento, o seu trabalho é fruto de uma cumplicidade mantida tornando-se o verdeiro sentido de sua vida. Uma vida dividida entre dois amores: a arte de Matisse e a terra que a viu nascer, a Rússia. A ela se deve o maior acervo de obras de Matisse estarem em museus russos. Um dia ela aclamou: “Eu dei à França Paustovsky, e à Rússia Matisse!” Foi esse o último desejo de Lydia Delectorskaya: ser sepultada na Rússia. Ela morre em Paris em 1998, aos 88 anos, mais tarde transladada para Pavlovsk, perto de São Petersburgo, e numa réplica da lápide original pode-se ler: “Matisse preservou sua beleza para a eternidade”
texto, 2002 © Luís Carvalho Barreira
[1] Fundação Barnes, Merion, Filadélfia, Estados Unidos da América. Albert Barnes foi um colecionador de arte tendo pagado pelo mural 30 mil dólares.
[2] Matisse considerava o preto a cor intensa, a cor absolta. A cor que faz a ligação entre todas as cores, que a reforçam.
[3] Matisse tinha como hábito de presentear, regularmente, Lydia com obras de arte de sua autoria.
[4] Lydia escreveu várias monografias dedicadas a Matisse.
Suzon de Édouard Manet
Suzon é o nome desta jovem mulher que se encontra por trás do balcão, num bar do Folies-Bergère. Este é o último testemunho da vida atribulada do pintor Édouard Manet (1832-1883). O realismo social retratado neste quadro esvai-se nas pinceladas rápidas e imprecisas como a vida do pintor. São seguramente pinceladas impressionistas. Agitadas como as pessoas reflectidas no enorme espelho que serve de cenário ao quadro. Um lugar mágico que, como disse Maurice Merleau-Ponty, transforma “as coisas em espectáculos, os espectáculos em coisas, eu nos outros e os outros em mim”. É seguramente uma imagem, quase narcísica, que nos faz participar no acontecido. Nós (espectadores) vemos o que ela vê. Os pés de um acrobata num trapézio, no canto superior esquerdo, alerta-nos para o que está a acontecer entre as várias cartolas que se encontram, em baixo, a disputar as mulheres disponíveis. Alheios, provavelmente, aos tumultos políticos dos nacionalismos que assolam por toda a Europa e em França, em particular, ao sentimento anti-alemão (após a derrota na guerra Franco-Prussiana) ainda presente, afogam as mágoas em álcool e entregam-se à vida mundana que o Folies-Bergère pode obsequiar. Um enorme candelabro, sem recorte nem definição executado através de pinceladas fortes e justapostas, serve para reforçar a nossa atenção na garçonete situada no centro da composição. É uma jovem, loira, de rosto redondo, vestida com um corpete de veludo preto, generosamente decotado e arrematado por uma renda deixando a descoberto um pingente, seguro por uma fita negra, que repousa no seu regaço. Um pequeno ramo de flores eleva a sequência de botões alinhados, bem abotoados, sublinhando a beleza da pessoa retratada. Tem uma plasticidade muito mais próxima do Realismo onde Manet se fundeou e que fez questão em reforçar no diferente tratamento pictórico e plástico dado à personagem crucial. Ela está estática, com as duas mãos viradas para o seu interior assentes no balcão. Tem um olhar circunspecto enquanto atende um cliente que nós subentendemos, somente, pelo reflexo verificado no espelho. Esse homem não existe. É um fantasma! C’est un fantôme! O seu rosto apresenta-nos um olhar vazio fixado num plano terreno: num foco no infinito, num pensamento ausente. Ela não esboça atenção, nem sequer um leve sorriso de delicadeza. Pelo contrário, o que o reflexo ao espelho nos apresenta, é uma figura ligeiramente curvada como quem escuta as insondáveis palavras do cavalheiro. Ela não oferece nada. Não vende nada, apesar das inúmeras garrafas ao seu redor. Ela não se oferece... ela foi convidada a posar[1] para a última obra do pintor e assiste à inexorável decadência do pintor. Manet está doente; gravemente doente, com uma paralisia parcial provocada pela sífilis que contraiu. Em 1883, Manet foi-lhe amputada a perna esquerda e devido à gangrena morreu dias depois.
texto, 2001 © Luis Carvalho Barreira
[1] A mulher no bar é uma pessoa real, conhecida como Suzon, que trabalhava no Folies-Bergère no início da década de 1880. Para a sua pintura, Manet convidou-a a posar no seu estúdio.
Os Trapaceiros, 1594
Em 1594, Caravaggio aventura-se numa carreira de pintor independente[1] e pinta Os Trapaceiros chamando a atenção do Cardeal del Monte que adquiriu ao comerciante de arte, Costantino. Os Trapaceiros é uma pintura de género apresentando três jogadores de cartas: um jovem rico hesitando quanto à vaza, o adversário trapaceiro e um outro que através de sinais denuncia as cartas do oponente. Com o auxílio de Prospero Orsi, um consagrado pintor maneirista, foram-lhe abertas as portas dos diversos mecenas, coleccionadores, do mundo da arte como o banqueiro Vincenzo Giustiniani.
texto, 1998 © Luís Carvalho Barreira
[1] Frequentou o atelier de Giuseppe Cesari d’Arpino, um consagrado pintor.
DAVID - miserere mei, Dei
"Livro dos Salmos, 51
1. Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; apaga as minhas transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias.
2. Lava-me completamente da minha iniquidade, e purifica-me do meu pecado.
3. Porque eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim.
Ao longo da História inúmeras representações de David foram feitas e quase todas elas apresenta-nos David como herói saído do confronto contra Golias. Os dois representam a luta entre os Filisteus e Israelitas em que o gigante Golias desafia o mais temerário judeu a lutar contra ele, num confronto directo. O jovem pastor David oferceu-se, deu um passo em frente, e de um simples golpe arremessou um calhau rolado, desferido por uma funda, ferindo Golias (segundo a Bíblia, 1 Samuel 17:40). De seguida, David aproximou-se de Golias, atordoado, e com a espada desferiu-lhe um golpe mortal cortando-lhe a cabeça (1 Samuel 17:51). Nascia a lenda, rompia o herói escolhido dos judeus. É esta a história bíblica (Antigo Testamento), que os iluministas do século XVIII, tanto escarnaram, tentando enquadra-la como mito religioso. Se para estes racionalistas do século XVII e XVIII a igreja foi objecto de crítica e de luta, foi com redobrada atenção que o classicismo da arte Renascentista e Barroca era admirado (contribuído para o movimento neoclássico que se adivinhava). Na História da Arte o combate de David e Golias é responsável pelas incontáveis representações, sendo uma das histórias mais identificáveis na tradição judaico-cristã. Mas quem é este David? Quem é este homem que ao longo de dois séculos (período em análise) nos é apresentado (não só em forma escultórica, como pictórica) de formas diferentes?
No início do século XV, Donatello irá esculpir dois David: um em 1408, destinado à Catedral de Florença, já ao gosto renascentista clássico (rigor anatómico, proporção, harmonia) com a cabeça feminizada coroada de amaranto[1], um manto entrelaçado ao pescoço e um outro arrebanhado à cintura deixa a descoberto quase toda a perna esquerda. A erotização desta escultura só é comparável com uma outra, realizada em 1440 pelo mesmo escultor. Uma figura de carácter andrógina, de corpo frágil, numa pose naturalista[2], um corpo que suporta um chapéu com folhas de louro (símbolo dos vencedores) cobrindo a cabeça com um penteado enrolado em cachos (Peiot: cabelos laterais em forma de caracóis dos judeus ortodoxos). Ele pisa a cabeça de Golias, homem de grandes barbas e de elmo ainda posto [interpretação do artista duvidosa], enquanto que com a mão esquerda sustém uma pedra, na outra mão, a direita, o jovem David empunha uma espada reforçando o sentido do acto consumado.
Verrochio, em 1475, apresenta-nos um David diferente: um homem, jovem, comum. Seguindo os mesmos preceitos clássicos. Porém, os detalhes iconográficos não reforçam a valentia de David apesar da cabeça de Golias permanecer degolada a seus pés. É um jovem pastor de cabisbaixo, empunhando simplesmente a espada na mão direita, enquanto que a outra mão repousa na anca, numa pose pouco convincente, em que o corpo é coberto por uma espécie de armadura em couro, seguramente numa tentativa de lhe conferir alguma valentia a esta personagem bíblica. É um David titubeante.
Em 1504, Michelangelo, irá dar-nos a sua visão de David[3]. É uma escultura em mármore, arrebatadora, de maior escala e proporção, que acabou por ocupar uma praça (Palazzo Vecchio) em Florença. É um gigante. Se as anteriores representações nos mostram a valentia consumada de um pastor, aqui o David de Michelangelo é representado como herói concentrado na tarefa destinada. Ele tem o olhar tenso e fixo segurando um calhau rolado com a mão ao longo do corpo e com a outra agarra a funda que cai ao longo das costas. O naturalismo clássico é reforçado, quer pelo realismo anatómico, quer psicológico de David. Sentimos isso no olhar desviante; na testa e nas sobrancelhas arrebatadas; no olhar fixo e determinado; na tensão do pescoço; nas veias que sobressaem ao logo do braço, principalmente no braço e na mão direita. É um David sedutor balanceado entre o “corpo apolíneo” e o corpo escultórico verificado na modelagem de toda a anatomia, com especial detalhe no peito e no abdómen. É uma silhueta elegante, formada pelo movimento dos braços e das pernas, orientado por linhas paralelas indo ao encontro do renascer do nu clássico: com os quadris e os ombros em ângulos opostos faz com que o contrapposto[4] enfatize a direcção da cabeça e do seu olhar. Michelangelo apresenta-nos não só uma nova realidade estética, como um herói clássico. É um Nu clássico e de heroicidade grega à semelhança de Hércules indo ao encontro dos encomendadores (os poderosos Operai[5] da Guilda Arte della Lana) em oposição ao despotismo da família Médicis[6]. É, sobretudo, a preparação de um confronto decisivo, de um acto justo sem precisar do seu algoz.
Em 1624, Gian Lorenzo Bernini destaca o acto heroico de David realçando as qualidades físicas do jovem personagem bíblico: o jovem está nu, como uma estátua clássica, coberto apenas por um pano esvoaçante ao redor dos quadris. Em baixo pode-se ver o peitoral do rei Saul[7] e a cítara decorada com uma cabeça de águia[8]. É uma escultura em mármore em tamanho natural. Com o tronco torcido, de pernas abertas, dando-lhe estabilidade, é acompanhado pelo movimento oposto dos braços que seguram em tensão a funda armada, com uma pedra, concentrando toda a energia e força para arremessar o movimento fatal. Toda a energia se estabelece no sentido vertical de baixo para cima em forma espiral. Sentimos todos as forças a trabalhar até aos músculos faciais: sobrolho franzido, olhar concentrado, lábio inferior mordido transmite-nos toda a emoção do acto. Entre a brutalidade das consequências do gesto e a sublimação do corpo, Bernini não nos apresenta o Herói, mas sim o momento congelado, o instante histórico que antecede a morte de Golias. David de Bernini é uma escultura complexa que enfatiza o florescente movimento barroco do início do século XVII.
Mas, afinal, quem é este jovem herói sedutor?
Comecei este ensaio por citar as palavras misericordiosas de um Rei arrependido pelos seus pecados escandalosos [sedução, adultério e assassinato do marido de Bathsheba]: Uriah. Bathsheba que acabaria por casar com o Rei David. Estamos a falar do mesmo David, o herói que degolou Golias, o escolhido por Deus para conduzir os judeus: o Rei David. O rei que haveria de se penitenciar: miserere mei, Dei [Tende misericórdia de mim, Senhor] (salmo 51).
Terminamos com música: uma versão musicada a cappella do salmo 51, miserere mei, Dei, feita pelo compositor italiano Gregorio Allegri, durante o papado de Urbano VIII (Maffeo Barberini), que era cantado na quarta e na sexta-feira santa.
Texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira
[1] O amaranto é reconhecido, desde há 5000 anos, pelas suas propriedades: é rico em potássio e o consumo de amaranto favorece a recuperação muscular.
[2] O Naturalismo clássico refere-se a um estilo realista enquanto ideal de beleza (Nu). O Naturalismo, Movimento, é um estilo realista que envolve a representação da natureza (incluindo as pessoas) com menor distorção possível.
[3] David estava destinado a decorar uma das fachadas de Santa Maria del Fiore. No entanto, após sua conclusão, a escultura foi posicionada em frente ao Palazzo della Signoria, sede do Governador de Florença, onde foi revelada ao público oficialmente em 8 de setembro de 1504. in wikipedia
[4] O contrapposto clássico é um termo utilizado em escultura para assinalar uma forma de representação humana que busca a naturalidade, em contraposição às representações rígidas e artificiais presentes na escultura até então. Essa característica, inovação grega, é constituída pela distribuição harmônica e natural do peso da figura representada em pé, com uma perna flexionada e a outra sendo a principal sustentação desse peso. Assim, a figura adquire um caráter de movimento natural tanto de frente quanto de lado, necessitando também de uma base específica sobre a qual age.
[5] Membros das Guildas.
[6] Cosme de Médicis ganhou o governo da cidade em 1434. Os Médicis mantiveram o controle de Florença até 1494. João de Médicis (mais tarde Papa Leão X) reconquistou a república em 1512.
[7] “Saul foi o primeiro rei de Israel. O seu nome, em hebraico significa "pedido a Deus". Como líder do povo, Saul teve um bom início, mas a sua trajetória bastante complicada conduziu-o a perder a coroa. Ele desobedeceu a Deus, tendo uma conduta reprovável. Saul tinha inveja de David e tentou matá-lo inúmeras vezes. Por fim, Saul cometeu o suicídio”. (Bíblia, 1 Samuel 9)
[8] Este símbolo faz parte da família do Cardeal Scipione Caffarelli-Borghese (Encomendador da obra de Bernini). In Galleria Borghese
risus paschalis
risus paschalis
Sabemos que o riso foi (quase) sempre encarado pela igreja fonte de contaminação da alma. “Muito riso pouco siso” é o ditado popular que faz jus à moral cristã. Porém, durante muitos séculos foram tolerados comportamentos desviantes (adjetivação minha) em certos rituais, festas, enraizadas na cultura popular dos povos cristãos. Uns advêm de festividades pagãs (Saturnália, Lupercália), outros foram integrados e tolerados nas práticas religiosas.
Para os cristãos a morte de Cristo não é o fim em si mesmo, mas sim a libertação, a alegria em absoluto. É o culminar da mensagem divina que fez do homem o seu semelhante. É o dar-se a conhecer à imagem do homem e orientar os nossos olhares para palavra de Deus verdadeiramente piedoso, temente a Deus, e preocupado com a sua salvação. A redenção de cristo é por isso um motivo de alegria. Para expressar a vida nova inaugurada pela Ressurreição, dizia esta tradição, nada melhor que apelar para a fonte de onde nasce a vida humana: a sexualidade e o prazer que a acompanha.
O Homem é o único animal que ri. Rir é uma forma de exorcização das imperfeições. O riso acompanha o choro que, quando de forma colectiva, dá lugar a formas de convivência entre o Drama e o Júbilo: as primeiras manifestações na Antiguidade Clássica são a Tragédia Grega e as Festas Dionisíacas. Nascia o Teatro conforme hoje o concebemos. Brota da representação do corpo que está ligada a este conceito idiossincrático da vida[1]. O riso acontece naturalmente com carácter transformador e redentor. Mas não é alegria estúpida, a gargalhada, – inepta laetitia, segundo, Hugo de São Vitor – acompanhada de movimentos exagerados do corpo ou que eles possam sugerir relações concupiscentes. O riso fora condenado durante a Idade Média porque ele contamina a alma. Porém, para São Bernardo de Claraval separa o que nos faz sorrir (risus) e a gargalhada (cachinatio) que teria uma conotação demoníaca. A alegria brilha com a explosão do amor espiritual em cada palavra, olhar: um riso pleno de honestidade. Não era este riso que durante muitos séculos se celebrava na segunda-feira pascal: o risus paschalis costume encontrado já em 852 em Reims, em França, e se estendeu por quase toda a Europa. Em 1911 na Alemanha ainda havia locais onde se verificava tais costumes.
Todos fiéis eram convidados a partilhar da alegria de Cristo ter ressuscitado celebrando a vida, que se renova todos os anos à semelhança da Natureza. Segundo a teóloga Maria Caterina Jacobelli esta festa significa a presença do prazer sexual no espaço do sagrado, na celebração da maior festa cristã, a da Páscoa. De acordo com Bakhtin, a tradição antiga permitia “o riso e as brincadeiras licenciosas no interior da igreja na época da Páscoa. Já do púlpito, o padre liberava aos fiéis toda a sorte de brincadeiras como histórias alegres com um tom carnavalesco referente à vida material e corporal. A alegria surgia como um meio de extravasar as energias acumuladas após um longo período de contenção, jejum e abstinência sexual: o riso era autorizado, da mesma forma que os alimentos até então interditos, bem como a vida sexual”. Estes costumes, mesmo que pontuais, durante a Idade Média eram lembradas através dos cachorrões (com figuras grotescas em posições sexuais nos beirais dos telhados) de muita das igrejas românicas que apelavam ao riso com carácter educativo. O riso brotava como uma significação positiva, como fonte regeneradora, capaz de restaurar, renovar. Era este o apelo e significado dado no risus paschalis onde o sacerdote recorrendo à verdade das verdades (veritas veritatum) e nada melhor que apelar para a fonte de onde nasce a vida humana: a sexualidade com o prazer que a acompanha[2].
texto, 1999 © Luís Carvalho Barreira
[1] Aristóteles, na Poética, já afirma que enquanto a tragédia se ocupa do sublime, dos homens elevados, a comédia trata dos homens vis e covardes.
[2] O padre, para celebrar a alegria da Ressurreição sobre a Morte, contava anedotas durante as celebrações, que ao final se utilizavam da moral da estória para realizar suas pregações com muito humor, assumindo a cultura dos fiéis em sua forma popularista, plebeia e obscena.
Brueghel - Luta entre o Carnaval e a Quaresma
Em 1559, Brueghel, o Velho, pinta o quadro O Combate entre o Carnaval e a Quaresma. Segundo as melhores interpretações da História da Arte, Brueghel reproduz uma cena festiva, na praça de uma cidade, com os habituais festejos que marcam, supostamente, o fim da Quaresma e o advento da Páscoa. É uma pintura que retrata outra realidade para além do que o título nos possa sugerir. O combate simulado entre o Carnaval e a Quaresma, não são entre dois momentos festivos, um pagão e o outro cristão, são, sobretudo, a luta que se fazia sentir entre a Reforma Protestante e a Igreja Católica. Trata-se de uma sátira política e religiosa que os Países-baixos estavam envolvidos. A Holanda espanhola como era conhecida pela Pragmática Sanção[1] (1549) do Imperador do Sacro Império Romano Germânico, Carlos V, e agora administrado pelo seu sucessor Filipe II de Espanha, católico e adepto confesso da Contra-Reforma[2], encontra-se subjugada aos interesses espanhóis. Os flamengos procuraram sempre afirmar-se, quer ao nível político, quer religioso, levando-os, mais tarde em 1566, à revolta iconoclasta conhecida por Beeldenstorm (“tempestade das estátuas”). A destruição de imagens religiosas, estátuas, das igrejas católicas são o símbolo da afirmação de um povo, sob o domínio político, religioso e económico de um rei espanhol (católico) que procurou suprimir o calvinismo na Flandres. É neste contexto que nos devemos posicionar e observar atentamente a obra de Brueghel (uma leitura possível)...
O artista representa, aqui, uma metáfora sobre a ambiguidade do ser humano, sobretudo, do homem cristão, dividido entre as tentações dos prazeres mundanos e o compromisso com a moderação das paixões desenfreadas. É uma pintura caricatural de uma sociedade dividida entre a austeridade, que deveria caracterizar o homem católico, e os prazeres da gula e da carne. É entre a abastança e a indigência, a verificar pelos muitos mendigos, pobres, estropiados, que ocupam lugar de relevo na pintura. É essa a penúria, verificada, principalmente, à saída da igreja que procura caridade alheia. É esta a batalha da consciência humana que Brueghel retrata. Um confronto entre opositores sem armas, sem armaduras, sem cavalos; apenas com os atributos (satíricos) que fazem deles o foco da nossa atenção.
Do lado direito, um séquito encabeçado por uma figura masculina, magra, vestida com uma túnica e de cabeça coberta por lenço, suporta uma colmeia sinónimo de cooperação e de ordem. Ele é transportado, por um frade que deixa a tonsura a descoberto e uma freira, numa carriola vermelha empunhando uma pá com dois pequenos peixes. Na outra mão um ramo. À medida que a procissão passa ao som das matracas empunhadas por jovens seguidores, figuras de trajes diferenciados estendem a mão, doando algo, aos mendigos que fazem alas para “verem” o cortejo passar. Na cauda do desfile várias freiras; uma com um terço, outra com uma Bíblia, e as restantes empunhando ramos. Na cauda do cortejo, uma banca à entrada da igreja cobra algumas indulgências e até a figura de Cristo crucificado aparece deitado numa almofada com umas moedas à sua ilharga. Tudo e todos se servem da caridade alheia. Na penumbra da igreja ainda se pode descortinar um padre a abençoar um crente que acaba de se confessar. É o triunfo do divino; é a vitória sobre a imperfeição simbolizada pela saída desordenada das pessoas, de cabisbaixo, enquanto outras transportam cadeiras à cabeça saindo pela porta lateral da igreja. São [possivelmente] os hereges. São aqueles que teimam reformar a Igreja, das suas práticas e do seu sacerdócio. Brueghel não coloca o problema entre o Bem e o Mal, mas sim numa disputa social travada através do humor, da sátira, da alegria e do riso: um riso ritual como o enigmático casal que se passeia de costas no centro do quadro. Mas que linda metáfora. Ele faz-se acompanhar de uma espada e de uma adaga, enquanto a mulher leva à cintura uma lanterna.
É neste sentido que, no lado esquerdo da pintura, entre o gozo protagonizado pelo anafado taberneiro, que equilibra na cabeça uma tarte de galinha (a julgar pela sugestiva pintura), é puxado por um empregado em cima de um pipo de vinho que serve de charrua. É uma figura grotesca segurando um espeto com uma cabeça de porco, uma galinha e outras iguarias assadas. Ele é seguido por um séquito de outras personagens e todas elas oferecendo os prazeres da gula, os deleites da vida. A música é diferente, contrastando com o estalejar das matracas, os instrumentos são outros: ao som do sarronca e acompanhada à viola marcando o compasso de todos personagens que parecem anunciar os prazeres da vida. Se dignidade se encontra pela aparência da cabeça coberta ela transporta também os atributos sociais, ou, metaforicamente, o que lhes vai na cabeça. Todas figuras têm a cabeça coberta, ou quase todas: as crianças, os mendigos e uma mulher junto a uma tenda improvisada. Se a dignidade se pode ajuizar pela aparência não é por acaso que os pedintes descobrem a cabeça, num acto de submissão, assim como a velha megera que convida um cliente para dentro da sua tenda representando a luxúria por oposição à observância da Igreja. O quadro não estaria completo se não evidenciasse-mos as crianças que brincam, que jogam à panela de barro, lançam o pião; os homens que se entregam ao jogo de sorte ou azar; as mulheres que amanham o peixe junto ao poço; os curiosos à janela; o beijo roubado à janela da estalagem; o balde de água despejado na cabeça de um exibicionista bebendo; a autoridade cobrando impostos; a mão dada ao amado dentro de casa; a vida doméstica; o desfile de uma confraria transportando uma haste com um ramo, fazem parte de uma realidade que Brueghel nos quer contar. Há um ponto comum em toda esta discrição: o ramo, o Ramo de oliveira (o dia triunfal, a entrada de Cristo em Jerusalém).
O Carnaval (na pintura de Brueghel) é esse homo festivus[3] é um homo ridens que ganha importância no episódio "a Luta entre o Carnaval e a Quaresma".
Acreditamos que Brueghel aproveita, o “Domingo de Ramos” para nos registar a vida social em particular utilizando a força da sátira. O triunfo das ideias humanistas sobre o determinismo religioso e da opressão política. Em epílogo, Brueghel assina o quadro na pedra que serve de mesa ao jogo de dados. Quiçá, Brueghel é o homem que ostenta um capuz de carrasco...
1998-2023 © Luís Carvalho Barreira
Notas:
[1] É a designação tradicionalmente dada a toda a norma ou disposição legal promulgada de forma solene por um absoluto que disponha sobre aspectos fundamentais do Estado, regulando questões como a sucessão no trono, as matérias de religião de Estado e outras. Na história do Sacro Império Romano-Germânico refere-se mais especificamente a um édito emitido pelo imperador. In Wikipedia
[2] Concílio de Trento realizou-se entre 1545-1563.
[3] H. Cox, Las fiestas de los locos. Ensayo sobre el talante festivo y la fantasía, Madrid, Taurus, 1983.
Virgem e o Menino [Santa Maria Maior, Roma]
Papa Libério (r.352-366 AD)
No ano 354 oficializou os festejos natalícios, conseguindo, desta forma, assimilar as festas pagãs cristianizando-as. É nesta altura que o Papa Libério fixa a data de nascimento de Jesus Cristo: 25 de Dezembro.
A Basílica de Santa Maria Maior, construída em 450 AD, foi erigida no lugar da anterior Basílica Liberiana que foi destruída. No dia 5 de Agosto de cada ano uma chuva de pétalas de rosas brancas é lançada, durante a missa, no altar-mor, simbolizando a lenda ocorrida neste local: um nevão, em pleno Verão, terá sido o sinal da Virgem Maria. Este local também é conhecido por Nossa Senhora das Neves. É a maior igreja dedicada ao culto mariano e, por sua vez, à maternidade. Tendo sido objecto de reflexão sobre o papel de Maria, após o Concílio de Éfeso (431 AD), onde se discutiu com maior acuidade e veemência a figura de Maria saíram directizes muito precisas relevando a dignidade da representação de Maria a “Mãe de Deus”. Assim, Maria saiu reforçada na hierarquia da igreja católica onde foram dadas indicações precisas à maneira de representar “plasticamente” a “Mãe de Deus”. A Virgem deverá "receber um manto azul, um azul-escuro, maravilhoso e caro, condizente com a rainha do céu". (ver: ouro sobre azul).
Uma Basílica dedicada à mãe não poderia de não conter um teto coberto a ouro[1] a cobrir as verdadeiras relíquias à natalidade: a manjedoura de Jesus e o ícone bizantino de Maria, conhecido como Salus Populi Romani (protectora do povo romano, albergado na capela Paolina), juntamente com o sepulcro de São Jerónimo (o doutor da igreja, que traduziu a Bíblia - Vulgata - a única que expressa a verdadeira palavra divina) são as principais atrações religiosas desta basílica..
Em nota final, foram também sepultados em Santa Maria Maior, Paolina Bonaparte Borghese e Gian Lorenzo Bernini, figuras na arte objecto do nosso périplo por Roma, no mês de fevereiro de dois mil e vinte e três.
[1] É voz corrente que o teto em caixotões foi dourado com o primeiro ouro trazido da América (carece de confirmação histórica), doado pelos Reis Católicos ao Papa, quando este era Alexandre VI, Bórgia.
Texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira
Escadaria dos Bórgias, Roma
Se fizer uma visita a Roma preste atenção aos calhaus da história e não tropece nas estórias das imagens.
Depois de ter visitado a Igreja de San Pietro in Vincoli dirija-se para a escadaria dos Bórgias e detenha-se por alguns momentos viajando na história e nas lendas deste lugar.
Reza a lenda-histórica que foi neste local que Lucius Tarquinius Superbus protagonizou uma das mais hediondas histórias passionais romanas. Lucius terá matado a mulher, o irmão, o sogro e casado com a cunhada tornando-se o último rei do período monárquico (a.C. 534-509). Os factos históricos confirmam que Servius Tullio (sexto Rei de Roma entre c.578 e 535 a.C.) tinha duas filhas chamadas Tullia: Tullia Major e Tullia Minor e casou-as com os filhos do seu predecessor[1](Lucius que casou com Tullia Major e Arruns com Tullia Minor[2]). Desta união familiar Tullia Minor (a mais nova) ambicionava ser rainha e para tal envolveu-se com o cunhado (Lucius) prometendo-lhe que casaria com ele depois de afastar os mais directos sucessores (o seu irmão, Arruns, a cunhada, Tullia Major e o sogro; o Rei Servius Tullio). Reza a lenda que Tullia Minor vendo o pai em agonia, espojado no solo, passou com o carro puxado por cavalos por cima do corpo inerte. Suas ações fizeram dela uma figura infame na cultura romana antiga. Não é por acaso que este lugar ficou conhecido pelo “O Beco do Vilão” (Alley Scellerato).
Esta rampa também é conhecida pela escadaria Bórgia e pelo túnel que atravessa o Palácio de Vannozza dei Cattanei, senhora de uma estalagem em Campo dei Fiori cuja principal função era de satisfazer favores sexuais dos seus frequentadores incluindo a do amante, Rodrigo Bórgia (Papa Alexandre VI) e pai dos seus quatro filhos. Do Palácio resta uma pequena varanda ao gosto de “loggia veneziana” que apesar de ser um simples apontamento arquitectónico não deixa de exercer a todos os transeuntes – conhecedores da história da cultura e das artes – momentos de recriação histórica e protagonistas por breves instantes.
Regressemos à Igreja de San Pietro in Vincoli, percorramos a escadaria dos Bórgias, deixemos o chão conspurcado de ambição, traição e sangue dos últimos momentos da monarquia romana. Deixemo-nos levar pela emoção pela luz divina em Moisés e pelo último desejo de Júlio II: a construção de um mausoléu para última morada encomendada em 1505 e finalizada em 1545.
No lado direito da igreja, junto ao altar-mor, o túmulo de Júlio II é um conjunto decorativo e arquitetónico concebido por Michelangelo. A controvérsia da figura de Moisés, com dois chifres (ver análise desta obra com maior detalhe, aqui), aleado à forma como Júlio II foi retratado, numa pose reclinada, sedutora, porém comprometedora, leva-nos a analisar com maior detalhe a iconografia daquele dedo mindinho da mão direita de Moisés (fazendo salientar o músculo junto ao cotovelo). O que Michelangelo conhecia com detalhe era o estudo de anatomia. E o que toda Itália escarnava era no comportamento do Papa Júlio II que teve vários filhos (dos quais sobreviveu Felice della Rovere a mulher com maior influência e poder na época renascentista) e do seu gosto por “jovens e belos amantes” – segundo o cronista veneziano Giroliamo Priuli – “ele era um grande fã do 'vício sodomita' e gostava mais do sexo quando assumia o papel de passivo”. A vida do Papa Júlio II não era segredo para ninguém, ele viveu no Palácio Papal com o seu amante, Francesco Alidiosi, nomeado cardeal. Nunca esconderam as manifestações, sempre presentes, de afecto entre os dois. Até o diplomata veneziano, Marin Sanudo, compôs um soneto para a homossexualidade do Papa Júlio II. Em setembro de 2018, num artigo do New York Times intitulado "O problema da Igreja Católica com o sexo", o nome de Júlio II estava novamente referido. “Júlio II contraiu sífilis durante o pontificado, doença com predileção pelos padres, principalmente pelos ricos, como diziam na época do Renascimento”, relata o jornal americano. “Papa Julius II, conhecido como o Terrível. Um Papa gay que adoeceu com sífilis, nomeou o seu amante, cardeal, e viveu em excesso”.
Michelangelo sabia-o. Michelangelo conhecia o poder da arte...
Texto © Luís Carvalho Barreira
Notas:
Giulia Farnese
Quem é esta misteriosa dama com um precioso vestido do início do século XVI - la gamurra - com mangas largas de veludo vermelho e corpete de seda aguada? Que animal é este – unicórnio – e qual é o seu significado? Será esta a “La Bella Giulia” pintada por Rafael, a amante do Papa Alexandre VI?
O que o Retrato de uma Dama com Unicórnio esconde, a verdadeira identidade da personagem retratada é revelada à luz da história da vida privada.
Rafael empresta à pessoa retratada um ambiente renascentista quanto à sua organização espacial: duas colunas clássicas erguem-se lateralmente e com as bases assentes num muro, uma espécie de loggia, definindo através de linhas implícitas convergentes num ponto de fuga (perspectiva linear) orientando o olhar para o rosto da jovem. A parte superior do quadro é marcada pela presença de uma paisagem ao fundo, em tons azuis em gradação até aos cinzas, em pinceladas difusas, intensificando a perspectiva aérea concentrando o nosso olhar no retrato anunciado. É um retrato a ¾ de olhar fixo no observador (artifício estudado para que o olhar nos acompanhe em qualquer ponto que o observador se encontre) assente num triângulo conferindo estabilidade compositiva à semelhança do retrato de Monalisa de Leonardo da Vinci.
Recorrendo a uma paisagem para cenário do retrato, Rafael evidencia não só o domínio da perspectiva, mas também reflecte as correntes neoplatónicas de Marsílio Ficino que advogava que “a alma pode ser chamada o centro da natureza, a intermediária de todas as coisas, a corrente do mundo, a essência de tudo, o nó e a união do mundo”. Que se pode traduzir na arte renascentista entre a Ideia e a Matéria, entre o divino e o terreno, entre a fé e os sentidos. Os artistas renascentistas empenharam-se em encontrar o rácio geométrico, a harmonia formal e cromática, a sugestão da terceira dimensão e a importância dos elementos iconográficos. Para os pintores renascentistas foi uma obsessão a procura desta dimensão: a racionalidade na pintura: segundo Leonardo da Vinci “a Pintura é uma coisa mental”. Tecnicamente, neste quadro de Rafael, traduz-se por uma pincelada firme e precisa, uma gradação (sfumato) aplicado com mestria e de cores vibrantes (onion) captando a nossa atenção. A tez branca do rosto, em contraste com as bochechas rosadas, um farto e bem afagado cabelo, confere doçura à jovem retratada. Iconograficamente, a jovem ostenta um pingente (rubi e safira) caído por uma pérola – scaramazza - símbolo do amor espiritual, cujas referências simbólicas são alusivas às virtudes conjugais e à candura virginal. E do mesmo modo se pode interpretar o unicórnio símbolo de castidade e pureza feminina (usado como emblemas por várias princesas e nobres, desde a Idade Média). O próprio colar de ouro, evidenciado pelo nó, é uma clara referência ao vínculo matrimonial.
Mas afinal, quem era esta jovem mulher? Ou será a filha de Giulia Farnese Orsini, Laura Orsini?
O que sabemos é que este quadro já foi uma Santa (Catarina) e aquando de um restauro realizado em meados do século XX foi revelado um cachorrinho, alterado, ainda por Rafael, para um unicórnio no aconchego do regaço. O manto que cobria a Santa Catarina foi retirado deixando a descoberto os ombros da enigmática jovem.
Será a Giulia Farnese? A mulher oriunda de Canino, província de Viterbo, que veio para Roma, em 1489, para casar com Orsino Orsini (uma das famílias com maior poder em Roma); ele era um homem “cego de um olho e de caráter débil e covarde”. Um perfil nada sedutor.
Giulia Farnese manteve uma relação extraconjugal com o cardeal Rodrigo Bórgia, mantendo-a mesmo quando foi nomeado Papa Alexandre VI. Esta relação de adultério não era alheia à família Orsini que discretamente mantivera silêncio, ou até o apoio por parte da sua sogra, Adriana de Milá, mãe de Orsino Orsini, defendendo os seus interesses e o da família Orsini. No mesmo ano, 1492, em que Rodrigo Bórgia foi nomeado Papa Alexandre VI nasceu Laura Orsini que, apesar da mãe (Giulia Farnese) afirmar que a paternidade pertencer ao Papa, este nunca a reconheceu, ao contrário da anterior amante, Vanozza dei Catanei, que teve quatro filhos (César, João, Lucrécia e Godofredo) todos eles perfilhados pelo pai, Papa Alexandre VI, Bórgia.
As disputas e alianças verificadas entre as principais famílias fizeram da Giulia Farnese a figura central dos conflitos, das paixões, dos dramas e da luxúria vivida. O nepotismo do Estado Papal no final do século XV foi palco de grande disputa política, religiosa entre as principais famílias: os Bórgias, os Orsinis, os Farneses e os della Rovere.
La Bella Giulia pelo “ardor particular” e pela ambição demonstrada ganhava cada vez maior protagonismo e influência junto do Papa Alexandre VI. Dessa maneira persuasiva e sedutora fez com que seu irmão Alessandro Farnese fosse nomeado cardeal, acabando por ser Papa (Paulo III) mais tarde, em 1534. Contudo, a família della Rovere desavinda com os Bórgias granjeou novos apoios políticos (Rei de França) e financeiros (como o de Jakob Fugger, o grande impulsionador da nova Basílica de São Pedro) conseguindo que Giuliano della Rovere fosse eleito Papa Júlio II em 1503[1].
Ao novo Papa não foi alheio ao ardor e à beleza, em particular, de Giulia tendo sugerido aos mais ilustres artistas (Rafael, Michelangelo, Pinturicchio)[2] para que Giulia servisse de modelo em várias pinturas religiosas.
Vários relatos chegaram até nós relativos à beleza de Giulia incluindo a do próprio filho do Papa Alexandre VI, César Bórgia, descrevendo-a como tendo “cor escura, olhos negros, rosto redondo e um ardor particular”. Esta descrição feita por César Bórgia não confere com o quadro em análise, pintado por Rafael em 1505 (ainda antes de ter vindo para Roma a convite do Papa Júlio II) e nesta altura Giulia Farnese, casada, tinha 31 anos e com uma filha de 13 anos.
A identidade da jovem tem sido alvo de grande debate e especulação. Há quem tenha dito que se pode tratar da irmã de Rafael, Elisabetta, nascida em 1491. Parece muito mais plausível que na verdade seja a filha de Giulia Farnese, Laura Orsini[3], que na época se casou com Niccolo della Rovere[4]. Um casamento organizado pelo Papa Júlio II della Rovere, tio do noivo e sucessor e inimigo de Alexandre VI, que desejava aliar-se às famílias Farnese e Orsini. Assim, a obra seria então encomendada a Rafael para o casamento, o que condiz com o facto de a menina originalmente segurar um cachorrinho, símbolo de fidelidade prontamente alterado para um unicórnio com duplo significado: símbolo de castidade e pureza feminina e insígnia da família Farnese.
Texto: 1990-2023 © Luís Carvalho Barreira
Notas:
Em 2 de abril de 1499, no Palazzo Farnese, Laura Orsini (com 7 anos), foi prometida em casamento a Federico Farnese, filho de Raimondo Farnese e sobrinho de Pier Paolo Farnese. O noivado foi posteriormente dissolvido.
[1] Após a morte do Papa Alexandre VI (envenenado?) foi eleito o Cardeal Alpedrinha, Jorge da Costa, que recusou o cargo, tendo sido eleito o Papa Pio III que esteve como sumo pontífice durante 26 dias.
[2] David Willey. «Fresco fragment revives Papal scandal»
[3] Ferdinand Gregorovius (1874). Lucrezia Borgia: secondo documenti e carteggi del tempo (in Italian). unknown library. Le Monnier.
[4] "FARNESE, Giulia in "Dizionario Biografico"". www.treccani.it
Carvalho, 2022
Giotto - O Beijo de Judas
Texto: 2002-2020 © Luís Carvalho Barreira
O beijo de Judas.
Vem-me à memória a música do filme Casablanca: A kiss is just a kiss / A sigh is just a sigh / The fundamental things apply / As time goes by... quando os amantes, Ilsa Lund Laszlo (Ingrid Bergman) e Richard Blane (Humphrey Bogart), se reencontram e recordam paixões que o tempo não apagou. Estas personagens dão corpo a um drama romântico. A realidade e a ficção invadem o nosso imaginário vivencial e é com dificuldade que separamos os homens das personagens. Foi sempre assim, em todas as histórias ou lendas mitológicas o Homem depositou as suas angústias, os seus medos, os seus desejos, nos deuses como forma de regrar a sua vida em sociedade.
É fascinante como a leitura feita a esta pintura, O Beijo de Judas, de Giotto, e ao seu significado, dependerem muito se nos posicionarmos do ponto de vista dos homens ou das personagens do Criador. Judas protagoniza esta dupla condição de homem e de personagem (bíblica) incumbido a difundir uma mensagem, traindo Jesus. Desde a primeira vez que tomamos contacto com esta obra, não pudemos deixar de nos interrogar sobre a mensagem humana que ela veicula. Esta pintura (fresco), para além de nos descrever uma passagem bíblica, propõe-nos reflectir, sem dúvida, sobre as relações humanas. Nas limitações dos homens. Na finitude e nos comportamentos do ser humano. Nos momentos de maior tensão que a fraqueza humana é tentada pela sua própria sobrevivência. Nos momentos aflitivos que a amizade, o amor, se manifesta no absoluto. Nas falsas idolatrias. Na prontidão para amar sem desapontar. E, sobretudo, no reconhecimento dos nossos erros como ponto de partida para alcançarmos o objectivo último: a perfeição. É tudo isto o que vemos n’O Beijo de Judas de Giotto pintado, a fresco, na capela de Scrovegni, em Pádua. Esta pintura apresenta-se aos nossos olhos com uma extraordinária tensão dramática e psicológica. Movemo-nos, seguramente, por ideais que possamos abraçar. Precisamos de tocar o outro. Precisamos de ser tangíveis no nosso semelhante sem o decepcionar. Precisamos, acima de tudo, questionar as nossas relações louvando o lado mais nobre do ser humano. É, segundo a mensagem implícita na obra pictórica em apreço, a comunhão entre a dimensão humana e a divina. Porventura, talvez possamos julgar esta pintura, com o passar do tempo e sem a carga teológica e emotiva de outrora (pelo menos para um agnóstico), segundo outros pontos de vista epistemológicos.
A passagem bíblica é conhecida: o beijo de Judas. Judas apresenta-se no centro da composição pictórica rodeado de várias personagens, ganhando destaque, ao denunciar a presença de Jesus: - “Salvé, Mestre! E beijou-o”. Beijou-o intensivamente, apaixonadamente, com ternura (Mateus, 26:47-50, tradução do verbo grego: kataphilein[1]) que só Ele o merece. Um gesto de amor, mas é um gesto vazio. O traidor havia combinado um sinal com eles (os judeus[2]): “Aquele a quem eu saudar com um beijo, é ele: prendam-no e levem-no em segurança” (Marcos, 14:4). Judas dá-se conta da sua finitude de homem, por ter de desempenhar uma tarefa escolhida por Deus. Da mágoa por trair o leal e dedicado amor e a amargura de ter de o denunciar, se enclausura na sua própria culpa. A culpa manifestada por Giotto, na pintura, pela inexistência da auréola. Na pintura de Giotto, o contacto visual entre Jesus e Judas é intenso, por oposição à multidão de homens armados em seu redor, gerando um efeito pungente. O céu nocturno, de azul cobalto, é tenso. Todo o ambiente celeste é recortado pelas varas, pelas tochas, pelas lanças, pelas alabardas, empunhadas numa forma de libertação ameaçadora do poder das trevas contra o Filho de Deus. O drama intensifica-se, quando Pedro (ostentando uma auréola) desembainha uma adaga e corta a orelha a Malco, o servo do sumo sacerdote[3], tendo sido prontamente impedido por duas figuras segurando as vestes com veemência. E Jesus terá praticado o seu último milagre, em vida, restituindo a aparência fisionómica de Malco, retorquindo: “guardai a espada! Pois todos os que empunham a espada, pela espada morrerão” (Mateus, 26:52). É a resposta pronta ao ódio e à violência por parte de Jesus que permanece firme e determinado diante a multidão que o persegue. É, sobretudo, uma mensagem dirigida à incapacidade dos homens em perdoar que as suas palavras são proferidas. Do lado direito, um grande número de armas empunhadas desfila ao ritmo de um corneteiro e de um dedo indicador apontado ordenando prisão “a Jesus [que] foi levado até Caifás” (João 18:24). A figura de Jesus mantem-se impávida, mas serena, resistindo ao rancor dos inimigos e às tentativas desesperadas dos fiéis amigos. Porém, Jesus deixa bem claro que a vontade do Pai era para que Ele sofresse, conforme havia sido revelado nas Escrituras (Mateus 26:52-54) e por incumbência a todos os homens feitos à sua imagem.
Todo este enredo desenhado pelo seu Criador deixa-nos com dúvidas se Judas, de manto amarelo (a cor de deslealdade), será um traidor?
[1] https://religion.wikia.org/wiki/Kiss_of_Judas
[2] “De acordo com os evangelhos Jesus foi preso pela guarda do Templo de Jerusalém, e foi levado diante de Caifás e outros, por quem foi acusado de blasfémia. Após considerá-lo culpado, o Sinédrio entregou-o ao governador romano Pôncio Pilatos, por quem Jesus também foi acusado de sedição contra Roma”. in Wikipedia
[3] Caifás, no Novo Testamento, foi o Sumo Sacerdote judaico apontado pelos romanos para o cargo entre os anos 18 e 37.
Mistério na Galeria das Artes
Texto[*] e fotos 1998 © Luís Carvalho Barreira
Um conjunto escultórico formado por sete esculturas (mais duas colocadas na fachada adjacente) situadas no terraço do Palácio Marquês da Fronteira fazem parte de um programa mais vasto cujo estudo deverá ter em conta todo o seu contexto envolvente. Trata-se do melhor e mais diversificado conjunto profano da segunda metade do século XVII que chegou aos nossos dias, praticamente íntegro, constituindo o «mais interessante e completo exemplo que possuímos duma vivenda nobre seiscentista[1]». Construído na última metade do século XVII, por iniciativa do 2º Conde da Torre e futuro Marquês da Fronteira, D. João de Mascarenhas, do primitivo palácio existente, «casa de campo, pavilhão de caça, segundo a tradição, manteve-se a estrutura inicial numa construção muito italianizante, muito clássica, de planta mais ou menos quadrada, com torreões nos cantos, separados por “loggias" que inicialmente eram abertas[2]». A proposta feita pelo orientador e esteta deste Palácio é reveladora da sua personalidade erudita, racionalista e humanista, patenteada na adopção do modelo de edifício escolhido, bem como, na preferência das Artes Liberais e dos temas profanos e sobretudo da mitologia greco-romana, que aparecem na decoração profusamente das paredes do palácio, reflectindo a herança de um tempo classicista[3]. Todo este conjunto programático permitiu a D. João de Mascarenhas, 1º Marquês de Fronteira (1632/1681), homem de Corte, cultor das Artes e das Letras, sob os auspícios de Apolo[4] deus tutelar da Academia dos Generosos[5], figurasse como um dos grandes vultos da cultura do século XVII. A decoração do edifício é quase toda ela revestida por azulejos figurativos (profanos) e abordam os mais diversos temas: no jardim os meses do ano, os signos do Zodíaco, os planetas, as constelações, cenas de caça e pesca. No terraço, totalmente forrado a azulejos, as Artes Liberais, as Faculdades Humanas e uma variedade de outros azulejos com cenas de caça, flores, atlantes e diversos animais. É neste local, Galeria das Artes, onde se encontra o grande enigma que nos propusemos e, ainda, continuamos a investigar.
A Galeria das Artes é um lugar mágico, talvez o local mais significativo e complexo em termos artísticos e iconográficos de todo o Palácio. As palavras de Alexis Collote de Jantillet são elucidativas da magnificência do local: «Aconselho-te que vejas a casa de campo ou palácio de Benfica do Marquês da Fronteira (homem eruditíssimo) que eu vi há poucos dias não sem sentir castigado por ter tardado tanto; e, certamente, incutir-te-ei o desejo de ir ali, ao descrever-te voluntariamente a beleza e graça do lugar...»[6].
Um conjunto de painéis de azulejos alusivos às 7 Artes Liberais (pintura, escultura, arquitetura, aritmética, geometria e astronomia) acompanhados e intercalados, por igual número de nichos com esculturas representativas dos 7 planetas (Lua, Mercúrio, Vénus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno, conhecidos na época: teoria geocêntrica) fazem parte de um vasto conjunto que deverá ser lido, segundo o poder eclesiástico (os jesuítas) influente na época, pelas 7 Virtudes (Fé, Esperança, Caridade, Justiça, Prudência e Temperança). Todas elas apelando, em última análise, para os 7 Sacramentos: Batismo, Confissão, Eucaristia, Ordem Sagrada, Matrimónio, Confirmação, a extrema-unção. Só assim se entende que passados vários anos (um século), desde a teoria heliocêntrica (de revolutionibus orbium coelestium, 1537) de Nicolau Copérnico, até à construção do Palácio Marquês da Fronteira o promotor tenha aceitado incluir no programa da Galeria das Artes uma teoria geocêntrica, desacreditada segundo o pensamento intelectual florescente do século XVII.
Galeria das Artes (corpo escultórico e corpo cultural)
O conjunto escultórico, de quem tentaremos aproximar-nos na descrição iconográfica e na análise estilística, distribui-se ao longo do terraço, também chamado Galeria das Artes. As sete[7] esculturas representando figuras mitológicas, mediando o Palácio e a capela, encontram-se inseridas em nichos (serliana), assentes em pedestais, contendo nas suas bases conchas em forma de vieiras que serviam de receptáculo[8] à água jorrada por finos tubos colocados estrategicamente nos atributos iconográficos.
Os atributos iconográficos, que acompanham as esculturas, além de serem uma ajuda preciosa para identificar o tema do corpo escultórico presente, leva-nos a concluir que se tratavam de fontes ganhando um valor iconográfico acrescido simbolizando a Fonte. A Fonte do ensinamento, pelas suas águas sempre novas num perpétuo rejuvenescimento.
As Fontes ganham uma importância plástica significativa nos jardins renascentistas, o mesmo se passa nos jardins do Palácio Marquês da Fronteira que construído na ideia de Vila italiana[9] exalta os prazeres bucólicos e o imaginário do “jardim secreto” com todos os seus sistemas hidráulicos a jorrar a água, permitindo em diversos momentos do percurso exercitar o vigor plástico tão em voga no gosto europeu.
A sacralização das Fontes é universal, pois constituem a boca da água viva ou da água virgem. «Através delas dá-se a primeira manifestação, no plano das realidades humanas, da matéria cósmica fundamental, sem a qual não poderiam ser garantidas a fecundação e o crescimento das espécies. A água viva que elas deitam é, como a chuva, sangue divino, o sémen do céu[10]». As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte da vida, meio da purificação, centro de regenerescência. Estes três temas encontram-se nas tradições mais antigas e formam as combinações imaginárias mais díspares, ao mesmo tempo que mais coerentes.
É nossa convicção de que as obras presentes na Galeria das Artes obedeceram a um projecto extremamente preciso por parte do seu promotor, quer no valor imagético e iconográfico que deveria obedecer a uma interpretação erudita de gosto clássico, quer na enunciação do programa escultórico, introduzindo valores moralistas ou moralizantes, tão a preceito do poder espiritual corporizado pelos Jesuítas.
Assim, as esculturas da Galeria das Artes de concepção clássica patenteiam um carácter singular no panorama da escultura em Portugal, quer pelo seu carácter invulgar, quer pela sua conotação profana. Pode, todavia, afirmar-se que a temática deste conjunto escultórico se integra num mais vasto e complexo programa dos jardins do Palácio Marquês da Fronteira, cuja concepção parece ter tido como fonte principal a literatura clássica[11] e tem a sua descrição iconográfica em numerosos autores dos quais destacamos Cesare Ripa, por sintetizá-los e por conferir ao seu livro Iconologia o pensamento da época.
Analisando iconologicamente as esculturas pela disposição que ocupam na Galeria das Artes podemos descortinar: Diana, Mercúrio, Vénus, Apolo, Júpiter, Marte e Saturno.
(...)
Porém, existe um erro na representação planetária, segundo a teoria geocêntrica, neste conjunto de esculturas distribuídas ao longo da Galeria das Artes! Fazendo uma leitura, da esquerda para a direita, ou seja, desde a capela até ao Palácio e por esta ordem sequencial, pudemos identificar (em 1998) as seguintes (sete) esculturas representando o sistema planetário:
Lua, Mercúrio, Vénus, Sol, Júpiter, Marte e Saturno.
ao invés do que era suposto
Lua, Mercúrio, Vénus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno.
As sete esculturas (ordenadas no Palácio do seguinte modo: Diana, Mercúrio, Vénus, Apolo, Júpiter, Marte e Saturno) representam os sete planetas (teoria geocêntrica; Lua, Mercúrio, Vénus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno[26]) segundo o entendimento clássico vigente nas Academias da época que “iluminavam o mundo”.
Esta crença pressupõe um duplo movimento de pensamento: uma primeira projecção entre as relações dos planetas e as relações analógicas que existem entre os humanos e, em contrapartida, uma projecção para o comportamento humano de fenómenos observados na evolução relativa dos astros. Cada um dos planetas, dotados de um certo poder sobre os mortais, exercendo uma influência sobre os seres vivos da terra.
Aos sete planetas «correspondem os sete céus, os sete dias da semana, as sete direcções do espaço, os sete estados ou as sete operações da alma, as sete virtudes teologais e morais, os sete dons do Espírito Santo, os sete metais, as sete fases da Grandes Obra, etc.»[27]
A simbologia planetária, quase inesgotável, assinala a crença numa simbiose entre a Terra e o Céu, animada por uma constante interacção entre os níveis do cosmos - o microcosmo (homem) por oposição com o macrocosmo (Universo).
No entanto, pudemos descortinar que a ordem das esculturas Júpiter e Marte estão trocadas alterando o sentido da representação dos planetas segundo a teoria geocêntrica ou qualquer outra teoria porventura existente. Esta troca não nos parece propositada e muito menos revela ignorância da parte do “arquitecto” de tão ambicioso projecto. Muitas interrogações poderão fazer-se acerca de tal troca mas a resposta poderá ser encontrada em algumas obras de restauro e conservação do Palácio assim como do jardim: em «1755 realizaram-se obras de vulto após terramoto, passando a constituir residência permanente da família Mascarenhas; 1924, a partir desta data foram realizados pelo 10º Marquês da Fronteira muitos melhoramentos nos Jardins do Palácio; 1941, o ciclone que assolou Lisboa terá sido o factor responsável pelas últimas transformações ocorridas na vegetação do Jardim Grande[28]». Ou, ainda, quando desactivaram a canalização das fontes (esculturas) por motivos de infiltrações no interior do Palácio.
Em epílogo, neste vasto programa arquitectónico e artístico não deslindamos quais os motivos para que Júpiter e Marte ocupem posições erradas. Algumas conjecturas históricas ou registos de prováveis acontecimentos talvez possam justificar este mistério.
[…]
ver: Artes Liberais (Galeria das Artes)
[*] Texto extraído do rabalho realizado para a cadeira de Arte e Tecnologia, Mestrado de Teorias da Arte, FBAUL, 1998. Lecionada pela Prof. Dr.ª Margarida Calado.
[1] Raul Lino, A casa portuguesa. Exposição de Sevilha, in José Cassiano Neves, 1995, pp. 16 e 135.
[2] Segundo Alexis Collot Jantillet, «natural do ducado de Lorena, foi secretário do irmão de D. João IV, o Infante D. Duarte (1605-1649), quando este esteve na Alemanha como oficial de Filipe IV. Depois da morte do Infante, Jantillet passou a Portugal, onde já se devia encontrar em 1659, data da publicação, à custa de Pedro Çurita, livreiro de Lisboa, de Abucilla (Ruão, 1659). Nomeado “oficial de línguas na Secretaria de Estado”, passa a receber em 1665 sessenta mil reis de tença. Foi-lhe outorgado por volta de 1669 o hábito de Cristo. Poeta neolatino, publicou o já citado Abucilla dedicado ao infante D. Duarte, Helvia Obsidione Liberata auspiciis Alphonsi 6 (Lisboa, 1662), sobre a batalha das Linhas de Elvas e Horae Subsecivae (Lisboa, 1679), dedicado ao segundo marquês de Fronteira e terceiro Conde da Torre, Fernando Mascarenhas (1665-1729). Jantillet foi membro da Academia dos Generosos desde 1660» in Luís de Moura Sobral, Pintura e Poesia na Época Barroca, Editorial Estampa, Lisboa, 1994. p.31.
[3] As letras portuguesas do séc. XVI renascem na atmosfera neoclássica com o apoio de traduções que vêm a lume (Cândido Lusitano, por exemplo, traduz a Arte Poética de Horácio, as tragédias Édipo de Sófocles, Medeia, As Fenícias, Ifigénia em Àulide e Ifigénia em Táuride, entre outras, de Eurípides) e reedições de clássicos portugueses.
[4] Apolo é o símbolo da vitória sobre a violência, da aliança entre a paixão e a razão. Nasceu no sétimo dia do mês: a sua lira tinha sete cordas, o 7 é o número da perfeição, aquele que une simbolicamente o Céu e a Terra e também o número de Apolo.
[5]Surgiram em Portugal a Academia dos Generosos (1647), a Academia dos Singulares (Lisboa, 1663), a Academia dos Anónimos (1714), a Academia dos Solitários (1664), a Academia dos Únicos (1691), a Arcádia Lusitana (1757), a Academia das Belas Artes (1790), logo chamada Nova Arcádia.
Da Academia dos Generosos e dos Singulares, disse D. Francisco Manuel: «Com epítetos particulares se apelidaram todos os académicos do mundo: Confiados se chamaram os de Pavia; Declarados, os de Siena; Elevados, os de Ferrara; Inflamados, os de Pádua: Unidos, os de Veneza...».
Marieta Dá Mesquita refere a relação de D. João de Mascarenhas com a Academia dos Generosos na sua tese de Doutoramento. 1993, Vol. I, pp.402-405.
[6] Ana Paula Correia-Arnould, in Monumentos, nº7, p.61.
[7] O sete é o número da perfeição, aquele que une simbolicamente o Céu e a Terra, o princípio feminino e o princípio masculino, as trevas e a luz. Ora, é também o número de Apolo.
[8] Em conversa com D. José de Mascarenhas foi-nos dito que por motivos de infiltrações de águas, dentro do Palácio, causada pela deterioração das canalizações, estas foram desactivadas remontando, provavelmente, em tempo anterior à sua mãe.
[9] É nossa opinião que os jardins do Palácio Marquês da Fronteira são de inspiração renascentista italiana e em particular nas Vila Madona e Vila Aldobrandini. Ramalho Ortigão (in Arte e Natureza em Portugal) refere esta analogia descrevendo o Palácio Marquês da Fronteira como uma «edificação cheia de interesse arquitectónico e decorativo, desde o pórtico brasonado, à escadaria de balaústres, o vestíbulo de entrada, onde sempre soa a voz plangente da água, até às deliciosas varandas que abrem sobre os jardins. É flagrante, na silhueta geral dos dois terraços em loggias sobrepostas a um vasto lago, a analogia desta composição, de gosto e estilo da Renascença italiana, com a Vila Madona, obra de Júlio Romano e de Rafael, hoje mui arruinada, em Roma.»
[10] Jean Chevalier, in Dicionário de Símbolos.
[11] Segundo conversa com Liliana Prestes de Almeida a Metamorfoses de Ovídio foi a obra que serviu de expressão ao programa do Palácio.
[12] Homero, Ilíada, canto XX, Europa-América, 1988, p.285.
[13] Cesare Ripa, Iconologia, p.164.
[14] Jean Chevalier, in Dicionário de Símbolos.
[15] Idem, Ibidem.
[16] Esta escultura de Apolo (Sol), como a de Saturno, assenta numa base arredondada.
[17] Cesare Ripa, Iconologia, p.167.
[18] Ocupa erradamente, na Galeria das artes, a posição de Marte do sistema geocêntrico.
[19] Jean Chevalier, in Dicionário de Símbolos.
[20] Conforme a teoria Geocêntrica.
[21] Ocupa erradamente, na Galeria das artes, a posição de Júpiter do sistema geocêntrico.
[22] id. ibidem.
[23] Esta escultura de Saturno, como a de Apolo (Sol), assenta numa base arredondada.
[24] id. ibidem.
[25] Cesare Ripa, Iconologia, p.170. citando Bocaccio, lib. IV., na sua Genealogia dos Deuses
[26] Erwin Panofsky diz que “muitos dos trabalhos científicos, especialmente tratados de astronomia, onde imagens mitológicas aparecem tanto entre as constelações (como Andrómeda, Perseu, Cassiopeia) como entre os planetas (Saturno, Júpiter, Marte, Sol, Vénus, Mercúrio, Lua)”. in Estudos de Iconologia, p.33.
[27] Jean Chevalier, in Dicionário de Símbolos.
[31] in Monumentos, número 7. p.114.
William Turner, "Death on a pale horse", c.1825-30
Cavalgar em memórias revoltas.
No início da carreira artística, William Turner (1775-1851), pintou pitorescas paisagens inglesas arrecadando elogios dos seus comissários galeristas e coleccionadores de arte. A pintura e o sucesso artístico de Turner só tinham paralelo com as obras do seu contemporâneo John Constable (1776-1837): os grandes pintores românticos do Reino Unido. E, nas palavras de Simon Schama[1], “Turner é, acima de tudo, um dramaturgo da luz, o mais estupendo que a Inglaterra produziu”. Turner é, sem dúvida, um dos grandes pintores do século XIX, período de grandes transformações sociais e culturais. O romantismo brotou da interacção do indivíduo com a natureza, e com a sua natureza, como forma de expressão artística. A arte romântica testou os limites do eu, exacerbando-o. Ao mesmo tempo foi sondado o lado mais oculto do ser humano tornando-o mais evidente: o carácter, os sentimentos, a dor e a penosa existência do Ser. Esta vertente egocêntrica dos românticos levá-los-á a enveredar por caminhos solitários e sombrios: no refúgio contemplativo de, Caminhando sobre o mar de névoa (1818) de Caspar Friedrich; na complacência melancólica e soturna da música Robert Schumann (Traumerei Op. 15); na desilusão do ideal revolucionário na obra Guerra e Paz de Leo Tolstoy, pelo Pierre Bezukhov inicialmente um adepto fervoroso dos ideais saídos da Revolução francesa[2]; nos horrores da guerra, de que Goya retrata com veemência as atrocidades em O Fuzilamento de 3 de Maio (1808); nas causas políticas d’ A Liberdade guiando o povo (1830) de Delacroix; no “morrer por amor”, recuperado do medievalismo de Tristão e Isolda (ópera em três actos, 1865) de Richard Wagner; no assombro da natureza Entre as montanhas de Sierra Nevada, 1868 de Albert Bierstadt; no lânguido e doentio perfil romântico de O Pesadelo (1790-91) de Johan Heinrich Füssli; no simbolismo mórbido e extremado da Ilha dos Mortos, 1880, de Arnold Böcklin. Em suma, na dispersão do carácter individual constituindo-se como a principal leitmotiv da faculdade de espanto: o sublime. É nestas forças poderosas da natureza romântica que o sublime, podendo ser uma mescla de assombro, horror e deleite, se estabelece “na racionalidade necessária entre os homens e na certeza assustadora da morte[3]”. A Morte será, talvez, o tema mais perseguido pelos românticos: eles morrem erraticamente por causas.
E é em Turner, na pintura em apreço, que a morte assume o ideal romântico com maior acuidade e originalidade. A morte apresenta-se como uma obra aberta, derrotada, inacabada, literalmente inacabada... em William Turner. Mas, o que terá levado Turner a pintar este quadro? O tema é seguramente a Morte. Supõe-se que terá sido pintado entre 1825 e 1830, período em que se sucederam vários infortúnios na vida do artista: a doença da mãe, internada num hospício, a morte do amigo Walter Fawkes, em 1825, e quatro anos mais tarde, em 1829, a morte do pai e, para completar o seu estado anímico, o facto do seu estado de saúde se ter agravado, recorrendo a “estramonina, substância narcótica extraída do estramónio, que excitava ainda mais sua imaginação sempre hiperactiva[4]”. Todos estes acontecimentos poderão ter concorrido para que Turner pintasse este quadro, que não está assinado, nem datado! O próprio título pelo qual é uma presunção a posteriori. Ao longo do tempo assistimos à transformação de um Turner figurativo, com preocupação pelos detalhes, para algo completamente diferente, uma pintura difusa a explorar cada vez mais a plasticidade, i.e., valorizando os materiais e a maneira como eles são utilizados.
De todas as pinturas observadas na Tate Gallery, em Londres (1988), este quadro foi o que mais nos impressionou. Não tanto pelo formalismo representativo, mas pela descontinuidade técnica e pictórica. Turner utilizava, normalmente, tinta a óleo, em camadas sucessivas dando corpo à pintura, em várias demãos, rasgando o espaço cromático em sulcos provocados pelas rápidas pinceladas. A utilização de outros materiais e ferramentas, como a espátula, ou mesmo recorrendo às unhas (ele tinha orgulho em mostrar as unhas encardidas cheias de tinta), adensam a tensão corpórea tornando a pintura pastosa, porém, luminosa e vibrante. À medida que o uso de cores quentes, nomeadamente os vermelhos, os ocres e os amarelos, ganham maior acuidade [nesta série de trabalhos] o seu carácter irascível é introduzido com agressividade nas suas telas, tornando-as cada vez mais ambiciosas e visionárias[5]. Nesta pintura apresenta um esboço de um cavalo sugerido pelas diversas velaturas finas e transparentes. A outra figura, um esqueleto, deitada no dorso do cavalo apresenta maior detalhe no desenho, podendo ser identificado como a Morte, o último dos quatro Cavaleiros do Apocalipse! Formalmente a composição ocupa praticamente a primeira parte superior do quadro deixando a outra metade num vazio [pouco compreensível a nível formal e estético], quiçá, ainda à procura de um fim. Adensado por uma paleta de cores muito próxima e pela anulação do detalhe [desenho] das figuras, reforça o efeito misterioso e terrífico, ao mesmo tempo. A morte, saída de uma atmosfera encoberta [utilizando uma mancha preta; forma recorrente para aglutinar a composição] encontra-se prostrada e de mãos caídas. Aparece aqui derrotada, caindo do dorso do cavalo como se fosse um fantasma. É uma luta entre a Morte e o artista. E quis o destino que este quadro não passasse de um esboço, de um transcendente borrão, conferindo-lhe contemporaneidade.
É uma sublime obra inacabada!
Texto: 1988-2020 © Luís Carvalho Barreira
[1] O Poder da Arte, Companhia das Letras, São Paulo, 2010. pág. 288.
[2] Outros exemplos: na 5ª sinfonia, hino à alegria, de Ludwig van Beethoven que inicialmente a dedicou a Napoleão Bonaparte, inscrevendo seu nome na partitura e posteriormente rasurada, assim como na destruição do busto do imperador num acto de fúria; e, por fim, na obra de um ilustre pintor português, Domingos Sequeira (1768-1837), que foi, sucessivamente, partidário da invasão francesa pintando uma alegoria, Junot defendendo a cidade de Lisboa (1808), da aliança inglesa (Apoteose de Wellington, 1811), da revolução liberal (retratos de 33 deputados, 1821) e da Carta Constitucional (D. Pedro IV e Maria II, 1825). Uma época conturbada socialmente fazendo com que os desenhos das nações se fundamentassem por vínculos ao passado distante, medieval, como forma de legitimação das nações: os nacionalismos.
[3] Schopenhauer, 1788-1860, p.59
[4] O Poder da Arte, Companhia das Letras, São Paulo, 2010. pág. 288.
[5] “Certa vez, sir George Beaumont o criticou por inaugurar “a escola branca”. Agora dizia-se que ele era vítima da “febre amarela”, caso de Mortlake Terrace (1827), paisagem sobre o Tamisa envolta numa luz dourada”. in O Poder da Arte, pág. 301.
Morte num Cavalo Pálido
Morte num Cavalo Pálido[1]
A Morte chegou...
num Cavalo Pálido
assombração tumultuosa
descoberta pelo rasgar da espátula
em reverberações cromáticas
e pela a inquietação do génio
Semicerro os olhos
para melhor ver
os espaços vazios do silêncio
braços estirados
formas submissas derramadas
em drapeadas velaturas
sobre o dorso esmaecido
fecho os olhos
para melhor sentir
o lugar preenchido de poesia
[1] William Turner, A Morte num Cavalo Pálido, c.1825
2010 @ anartchist
Vénus no medievo
Não deixa de ser curioso que Cristina de Pisano comece por descrever Vénus como um planeta (o mais luminoso, portanto o mais bonito no céu) e que os antepassados apelidaram de Deusa do Amor. A sua forte influência nos amantes fá-los brandir os corações acompanhadas de preces. Figuras masculinas e femininas apresentam-se com as suas vestes de azul ciano à semelhança da deusa Vénus, símbolo de amor e de paixão. Porém, deixa um alerta para a “perigosidade na perseguição de tais objectivos amorosos, porque são perigosos e nada honrosos. Vénus tem uma grande influência no amor e na imprecisão”. E o alerta continua dirigindo-se ao seu cavaleiro para que não se deixe levar pelo chamamento da deusa do amor, nem pela fraqueza do corpo, relembrando Hermes que disse que contra “o vício da Luxúria são todas as virtudes”. As virtudes teologais (Fé, Esperança e Caridade), que autora se refere, aparece aqui, metaforicamente, como um conselho ao bom cavaleiro que “a boa esperança não deve ter vaidade em si mesma”. E seguindo numa tradução literal do texto original, “a vaidade é a mãe de todo mal-estar, a fonte de todos os vícios e veias de iniquidade, que tira o homem da graça de Deus e o coloca em seu agressivo”. Nos mandamentos divinos, cristãos, a vaidade é considerada um exemplo de orgulho estando catalogado como um dos sete pecados capitais.
Por fim, o texto aparece uma citação em Latim da obra “Manipulus florum”[4]: "Odisti observantes vanitates supervacue"[5], numa clara alusão a vacuidade da Vaidade. Segundo a Bíblia a vaidade é algo de falacioso, sem consideração, levando à ostentação e à idolatria.
Em suma, a Vénus pagã, símbolo do amor, da paixão, da beleza, aparece aqui com uma roupagem dual, colocada no reino dos céus e adorada por todos aqueles que acreditam no amor divino.
2000-2020 ©Luís Barreira
BIBLIOGRAFIA
· 'Épître d'Othéa' [Cod. Bodmer 49 Pizan] {Cologny, Fondation Martin Bodmer} is available online through e-codices, the Virtual Manuscript Library of Switzerland. [http://www.fondationbodmer.org/]
· 'The Epistle Of Othea To Hector: Or The Book Of Knighthood' (1904).
· An alternative contemporary set of Othea Epistle miniatures is available from Meermanno Museum in The Hague : these include descriptions of each in English (that I was too lazy to marry up with the example miniatures seen above).
· Christine de Pisan at The Middle Ages.
· Christine de Pizan wrote Othea’s Epistle to Hector (the Book of Knighthood) around the beginning of the 15th century.
· Christine de Pizan, Le livre de la Mutacion de fortune, enluminé par le maître de l'Épître d'Otéa, début XVe siècle, inv. 494.
· Christine de Pizan: Wikipedia, New Advent, CSU Pomona, UPenn.
· Tangential: Christine de Pizan The Making of the Queen's Manuscript at Edinburgh University Library.
· Charity Cannon Willard, United States (1914-2005) was a biographer of early French feminist and author Christine de Pizan (1363-1440).
· Christine de Pizan: Her Life and Works by Charity Cannon Willard (1984)
· Charity Cannon Willard at GoodReads.com
· Christine de Pizan’s The Book of Deeds of Arms and of Chivalry by Christine de Pizan and translated and edited by Sumner and Charity Cannon Willard.
SITES CONSULTADOS
· https://www.porkopolis.org/pig_artist/epistle-othea/
· http://bibliodyssey.blogspot.com/2011/06/book-of-knighthood.html
· http://www.pizan.lib.ed.ac.uk/otea.html
[*] Source gallica.bnf.fr / Bibliotèque National de France. Département des manuscrits. Français. 606
[1] “Na mitologia grega, Heitor era príncipe de Troia e um dos maiores guerreiros na Guerra de Troia, suplantado apenas por Aquiles. Era filho de Príamo e de Hécuba e irmão de Páris”.
[2] Plotino: Enéadas II, 9, 4, 27.
[3] Texto em francês medieval. Consultado em: http://www.pizan.lib.ed.ac.uk/otea.html
[4] Thomas da Irlanda (Thomas Hibernicus), escritor, antologista e indexador, formou-se na Universidade de Sorbone, que na época era a maior biblioteca da cristandade, completou o primeiro manuscrito de seu Manipulus florum (1306), uma coleção de citações oficiais.
[5] “odiai vaidades supérfluas”.
Sandro Botticelli, Nascimento de Vénus, 1483.
Será uma obra menor (Kitsch) ou uma obra inovadora para a época? Como se enquadra esta pintura de Botticelli no racionalismo artístico do Renascimento?
Façamos uma breve abordagem a este quadro à luz das teorias neoplatónicas, de Marcilio Ficino, e da sua inegável influência na corte dos Médicis traduzida numa nova linguagem formal e plástica: o simbolismo renascentista. O Renascimento assente no humanismo fez com que as histórias mitológicas e o paganismo fossem interpretadas à luz de uma nova mensagem divina: o cristianismo. Ou seja, entre tensão da Ideia e de Verdade fundida no conceito de Beleza. O conceito de Belo funde-se com o bem moral por conseguinte “não é a Beleza das partes, mas a Beleza supra-sensível que se contempla”, porque a “Beleza divina difunde-se não só na criatura humana, mas também na natureza[1]”. Botticelli, segundo Umberto Eco[2], era espiritualmente próximo de Savonarola[3] para quem a Beleza era mais resplandecente quanto mais próxima de Deus. O Belo na nudez passou a ser associado a valores morais passíveis de novas interpretações fazendo com que o manto diáfano da moral vigente (cristã) pudesse apagar a lubricidade que algumas figuras pudessem vincular. Assim, o recurso à mitologia, à metáfora, ao simbolismo, serviu muitas das vezes para sublimar a paixão voluptuosa do artista e ou do encomendador[4]. É precisamente com este espírito analítico e crítico que a leitura de o “Nascimento de Vénus” deve ser lida; ela nasce do neoplatonismo ficiano. Dispensemo-nos de escalpelizar se este quadro, dentro das teses especulativas, quanto à identidade familiar das figuras representadas. Pouco importa se a Vénus brotou do ímpeto artístico, ou se teve como modelo a “Bella Simonetta” por quem o artista (e não só) nutria uma grande paixão. O que sabemos é que Simonetta Vespúcio serviu de musa inspiradora e que esta obra se destinava a deleite privado. E que a deusa do amor e da beleza é a figura mitológica que melhor a podia personificar escapando assim à “Fogueira das Vaidades[5]”. O recurso ao simbolismo é uma espécie de máscara fruto de um mero desejo sublimado no objecto de contemplação. Esta dualidade de leituras enquadrar-se dentro da linguagem plástica da época constituindo uma estética particular dentro Renascimento.
Se no Renascimento a procura do realismo e do naturalismo, nomeadamente na pintura, pautava-se por uma pesquisa incessante vertida nos mais diversos Tratados, quer a nível formal, quer a nível técnico: a conquista do espaço cénico através da procura da perspectiva (linear e aérea); a introdução de uma geometria implícita procurando o equilíbrio formal; o uso e o domínio do claro-escuro (sfumato, cangiante, unione e chiaroscuro) dando ênfase à modelação mais realista das figuras; a evocação do Naturalismo com grande rigor e detalhe; e, sobretudo, o Nu (privilegiando o cânone clássico), com algum rigor anatómico; a obra em apreço parece fugir a todos estes cânones renascentistas.
...
Regressemos à análise da pintura, Nascimento de Vénus de Botticelli. Este quadro foi a primeira tela de grandes dimensões realizado em Florença. Pintado a têmpera sobre tela e mede 172,5 cm de altura por 278,5 cm de largura.
Tecnicamente a utilização de velaturas muito finas cria uma atmosfera ilusória e ao mesmo tempo fantasiosa. A sobreposição de pinceladas acompanhada do cruzamento de traços permitem uma correcta gradação de tonalidades: as cores da têmpera são brilhantes e translúcidas o que suspeitamos que o pigmento foi diluído num aglutinante (ovo), ou por um verniz resinoso. Ao utilizar velaturas muito finas deixa o fundo visível produzindo um efeito transparente, perceptível no céu, nos tons de pele e na concha. Botticelli inspirado, provavelmente, na Vénus de Médici (escultura), apresenta um desenho assente em traços de cariz acentuado, como, por exemplo, no nivelamento dos ombros descaídos que sustentam um longo pescoço. Os brilhos e os matizes alcançados dão-lhe uma aparência irreal, de aparência escultórica. Não obstante, todos estes detalhes formais e estéticos, Vénus transporta as forças irreprimíveis do erotismo, não na sua nudez, mas sim nos longos cabelos que discretamente cobrem qualquer desejo apaixonado entre de dois amantes. Este apelo enamorado é reforçado pela presença de Clóris raptada por Zéfiro concupiscentemente entrelaçados. É o amor em forma física, é o desejo e o prazer dos sentidos. O vigoroso sopro de Zéfiro que empurra Vénus para terra firme não é suficiente para arrastar as flores sagradas que caem dispersas suavemente num fundo azul recortado por pequenas linhas brancas ritmadas sugerindo a espuma de ondas brandas. O carácter simbólico da enorme concha de vieira que sustenta o nascimento de Vénus[6] (já adulta), significa a fertilidade, o amor, a harmonia e a beleza ideal.
O mar e o céu são recortados pela linha do horizonte bem delineada não criando uma ilusão de profundidade mas prontamente colmatado por um terreno sinuoso terminado na linha do horizonte (sugerindo timidamente profundidade: perspectiva). No lado oposto, uma das Graças (Tália – a que faz brotar flores), pairando em terra pouco firme, acolhe Vénus arremessando um manto de cetim vermelho decorado com flores vermelhas e brancas. Como símbolos do amor, lealdade e modéstia o chão está cheio de violetas e a ninfa transporta à volta do pescoço uma grinalda de murta. Num cenário de bosque sombrio cujas folhas e troncos das árvores parecem bordados a ouro ganham detalhado destaque por se tratarem de laranjeiras a florescer, correspondendo ao jardim sagrado das Hespérides.
A ênfase dado à iconografia acentuado pela história mitológica leva, sem dúvida, Botticelli a transformar o Nascimento de Vénus - história mitológica da Deusa mais sedutora e de maior beleza - filha do esperma de Urano (o Céu) derramado no mar, depois da castração de Urano pelo seu filho Cronos - numa obra alegórica, de um lirismo cenográfico, transformando Vénus numa espécie de ícone erótico.
Todo o cenário é irreal, escandalosamente fantasioso.
1999 © Luís Carvalho Barreira
[1] Segundo Umberto Eco, in História da Beleza, Difel, 2004. Pág. 184
[2] Ibidem, pág. 188
[3] Fra Girolamo Savonarola foi um padre dominicano designado para trabalhar em Florença em 1490 graças, em grande parte, ao pedido de Lorenzo di Médicis - uma ironia, uma vez que Savonarola viria a tornar-se um dos maiores inimigos da família Médicis poucos anos depois e ajudaria a concretizar seu declínio em 1494. Savonarola fez campanha contra o que considerava ser os excessos artísticos e sociais da Itália renascentista, pregando com grande vigor contra qualquer tipo de luxo. in wikipedia
[4] Referenciada como encomendada por Lorenzo di Pierfrancesco de Médici para a Villa Medicea di Castello a muito probável que, segundo Germán Arciniegas, a obra tenha sido uma homenagem ao amor de Juliano de Médici (que morreu em 1478, na Conspiração dos Pazzi) por Simonetta Vespúcio. in Arciniegas, Germán. El mundo de la bella Simonetta.Planeta, Bogotá:1990
Alguns historiadores sugerem que a Vénus pintada para Pierfrancesco, e mencionada por Giorgio Vasari, teria sido outra que não a obra exposta em Florença e estaria perdida até o momento. in Smith, Webster: On the Original Location of the Primavera.
[5] A “Fogueira das Vaidades” refere-se à fogueira de 7 de fevereiro de 1497, quando defensores do padre dominicano Girolamo Savonarola angariaram e publicamente queimaram milhares de objetos tais como cosméticos, obras de arte e livros em Florença.
O foco dessa destruição estava explicitamente em objetos que pudessem tentar uma pessoa a pecar, o que incluía itens de vaidade como espelhos, cosméticos, vestes finas, baralhos e até instrumentos musicais. Outros alvos incluíam livros tidos como imorais, tais como as obras de Boccaccio, e manuscritos de música secular, além de obras de arte como pinturas e esculturas. in wikipedia
[6] Segundo Cesare Ripa, «Vénus representa-se jovem, nua e bela, com uma coroa de rosas, levando na sua mão uma concha marinha. Representa-se nua, por despertar o apetite dos abraços lascivos; ou também porque quem anda em casas de prazeres venéreos, muitas vezes acaba desnudado e privado de todo bem, por quanto as riquezas são sempre devoradas por mulheres lascivas; debilitando-se por conseguinte o corpo, e manchando a alma com tanta indecorosidade, que nada de belo se poderá encontrar em tal acção».
Torso de Pothos
Uma escultura em mármore de um torso naturalista faz parte da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa. Um corpo que se articula em ténues movimentos anatómicos sugerindo-nos movimento, acção. Uma harmónica proporção entre as partes em perfeita conjugação artística. Todo o realismo concebido é exaltado pela simetria. A ideia de perfeição é-nos dada pelo Naturalismo representado indo ao encontro do desejo de beleza. Um nu que reúne toda a poiesis grega. «O nu é uma invenção grega[1]».
Mas de quem é esta estátua?
A história deste torso exposto no Museu Nacional de arte Antiga começa muito antes da sua execução. Trata-se de uma cópia romana de uma outra atribuída a Skopas de Paros (século IV a.C.) realizada no auge do período clássico grego. A idiossincrasia artística e cultural grega passava pela busca incessante da perfeição, tendo o Homem como elemento aglutinador entre o terreno e o divino. A escultura referida é de Pothos, filho de Afrodite e de Hefesto (Vulcano). Como se de uma história terrena se tratasse Afrodite, deusa da paixão, do amor e do desejo, não gostava do marido por este ter deformações físicas (coxo) e pelo casamento ter sido mais uma vingança de Hefesto contra a sua mãe, Hera[2], do que amor-próprio. Mas não só. Sendo ela a deusa do amor (Afrodite) não poderia permanecer fiel permanentemente. A deusa entregou-se a muitos homens e deuses, com quem teve vários filhos: da relação com Dionísio teve um filho, Priapo, o deus da fertilidade; da sedução perpetrada por Hermes teve um outro filho, Hermafrodita; do silêncio e cumplicidade, na ocultação da infidelidade de Afrodite, Poseidon manteve uma relação amorosa com Afrodite e desse encontro nasceram duas filhas chamadas Rodes e Herophile; fruto de uma relação extraconjugal com Ares (Marte), Afrodite teve quatro filhos divinos, os erotes: Anteros, Eros, o cupido alado que sempre a acompanhava, os gémeos Hímero e Pothos[3]. Enquanto Eros era o deus do amor, da sedução, da afinidade que atrai dois seres, Pothos era o deus da paixão, do amor consequente, da paixão carnal…
Mas, talvez devêssemos analisar os pressupostos do pensamento Grego do ponto de vista do corpo poiético para melhor compreender a arte da Antiguidade Clássica que circunscreveu para todo sempre os pressupostos da arte ocidental. Da teogonia grega, da hierarquização dos diversos deuses e semi-deuses do Olimpo aos terrenos, em cultos tantos quanto as necessidades transcendentais o exigiam e concomitantemente em práticas religiosas pagãs onde o corpo é enaltecido por esse “amor grego” glorificado por alguns artistas e poetas que bradem as virtudes da beleza comparando-as com os feitos “homéricos[4]”, a arte Grega advém para o homem grego da educação do corpo integrando-o no mundo cultural de todos os Helenos. É certo que na Grécia dos séculos V e IV a.C., tais práticas tinham deixado de ser consideradas naturais. Contudo, não é de estranhar que Platão (428-347 a.C.) se insurja - na República - e mande expulsar, no seu entender, todos aqueles que por tais práticas possam contribuir para a desagregação da unidade social. Assim, para Platão, a aprendizagem tem o seu fundamento na imitação porque através dela forma-se o processo de identificação. Se se ensina através de fábulas, mitos, que são mentiras, corrompe-se e degrada-se, pelo objecto imitado, aquele a quem se ensina. Por isso, o poeta e o artista, porque principal fabulador e por ofender a sensibilidade ética através de emoções desregradas, sentimentos vis e acções vergonhosas dos heróis míticos, foi expulso do estado de Platão[5].
Como se pode conciliar a mimesis platónica e a praxis artística exaltando o corpo nomeadamente dos artistas Fídias, Míron, Policleto ou, mesmo, Skopas? É com Sócrates e Platão que começa a acusação do corpo. «O corpo impede de adquirir verdade e pensamento (...) enquanto tivermos o nosso corpo e enquanto a nossa alma estiver misturada com esta coisa má, jamais possuiremos suficientemente o objecto de desejo[6]». Ora o desejo é, para Sócrates, a verdade - logos. A distinção entre ser e aparência assume uma ruptura evidente com Sócrates e mais tarde com Platão. O olhar que vê o fenómeno perde a sua simplicidade primeira. A aparência passa a ser pensada como ilusão. A verdade deixa de estar no corpo presente (aparência) e passa a estar no corpo ausente (Ideia).
Neste sentido, a desvalorização dos artistas é mais notória e está evidenciada na “máxima” de que o artesão estava mais próximo da verdade do que o artista, e explica-a através da metáfora do carpinteiro que ao fazer uma cama, parte da Ideia para a essência, enquanto o pintor que a reproduz não faz mais do que imitá-la (essência). Assim o artista estaria mais afastado da Ideia do que o artífice cuja concepção platónica de Ideia assume um carácter absoluto numa dimensão tripartida: Verdade, Belo e o Bem.
Para Platão a Ideia (o Belo a Verdade e o Bem) era atingida pelo despojamento do domínio sensível e material e superando-o pela reflexão racional - o corpo ausente. Nesta ascese intelectual a “arte” só podia representar as aparências, mimesis, referindo as artes imitativas e representativas como téchne, já que elas eram do domínio do sensível - o corpo presente.
Contudo, a pintura e a escultura sendo artes da imitação, mesmo que fiéis à natureza do objecto retratado, resultam da exaltação do corpo presente, da sublimação das paixões que são meras ilusões temporais e não passam de meros distrates da razão.
À semelhança de Platão, Aristóteles, reduz a arte ao conceito mimético considerando a beleza da natureza superior à da arte. Por conseguinte, o Belo não é essência da arte. O realismo aristotélico contrapõe-se ao idealismo platónico[7] defendendo o prazer estético das obras de arte e que a beleza devia ser verosímil mesmo quando repugnante (feio) deveria ser motivo de representação. Mas, ao contrário de Platão, reserva o estudo da fantasia, como origem do pensamento, ao carácter psicológico defendendo a catarsis, libertação das paixões (função atribuída à tragédia), estando ligada à ideia de libertação das paixões para as melhor controlar. Em contraposição da formação do logos clássico a ascese do eros mitológico atingiu formas de devoção divina.
Assim, a arte é o resultado de uma análise da perfeição do corpo humano, o corpo clássico[8], que parte de uma conquista sobre o real sempre estruturada dentro da forma perfeita: o Cânone, a geometria que está no real, ou seja uma poética que glorifica a areté[9] do corpo humano e vê neste corpo a manifestação de um justo equilíbrio de números.
O corpo humano para o artista grego não é um modelo mas um módulo, o fenómeno em que o ser se manifesta, emerge e brilha. É ser, estar, aparecer. Por isso, o Cânone de Policleto não é um código estético. Não se trata de “criar” mas sim de “descobrir” - alétheia[10]. Não se trata de criar uma forma de beleza, pois a beleza não é exterior àquilo que manifesta. Trata-se de decifrar a lei do corpo humano, a proporção, a simetria, que esse corpo manifesta e que o insere na ordem do universo.
Os Gregos definiam de uma maneira rigorosa todas as noções de proporção, de medida, de composição e de ritmo, que fazem com que cada forma, arquitectónica ou escultórica, seja regida pelas leis do número. Segundo esta estética, todas as artes de um conjunto se acham entre si, proporcionadas por uma medida comum - o Cânone. A arte deve procurar a aparência desta ordem secreta que governa o mundo e que constitui a beleza, tal como a Filosofia (logos) se empenha em definir-lhes os princípios. A este corpo poiético, que tende, no seu termo, para a confluência do eros e do logos regido por uma razão que reduz todas as coisas à medida do homem, podemos presenciar nesta escultura clássica em análise (Torso de Pothos). Este classicismo traz consigo um valor de universalidade e de intemporalidade que faz com que a arte grega seja uma arte de referência.
Texto, extraído de Teorias da Arte, Mestrado 1998©Luís Barreira
Texto, Pothos, 2016©Luís Barreira
[1] Sophia de Mello Breyner Andresen, O nu na antiguidade clássica, Caminho,1992. p.13.
[2] Hera é a deusa das bodas, da maternidade, e das esposas, equivalente de Juno no mito romano. Irmã e esposa de Zeus é a rainha dos deuses, e patrona da fidelidade conjugal. Hera é geralmente representada ostentando na mão uma romã, símbolo da fertilidade, sangue e morte.
[3] Escritores clássicos tardios descrevem-no como um filho de Zéfiro (o vento do oeste) e Iris (arco-íris) para representar as paixões que vem com o amor.
[4] Um feito Homérico significa hoje algo de épico, grande, heróico, notável, retumbante: Os deuses arrebatados ¾ na Ilíada ¾ são feridos nas batalhas porque participavam com paixão nas paixões dos homens, sendo muitas das vezes autênticos cânticos ao amor entre os homens. Para ficarmos convencidos disso basta ler Homero.
[5] «Os Estados que longamente se mantiveram em boa ordem e bem governados, como o cretense e o lacedemónio, não tinham em grande conta os oradores. (...) O retórico do passado ¾segundo Montaigne¾ dizia que o seu ofício era fazer que as coisas pequenas parecessem grandes e como tais fossem julgadas. (...) Aríston definiu sabiamente a retórica como a ciência de persuadir o povo; Sócrates e Platão, como arte de enganar e lisonjear; e aqueles que isto negam na sua definição genérica, confirmam-no por toda a parte nos seus preceitos. Os Maometanos proíbem-na de ser ensinada às crianças por causa da sua inutilidade. E os Atenienses, ao tomarem consciência de que a sua prática, a qual gozava de todo o crédito na sua cidade, era perniciosa, ordenaram que a sua parte principal, que consiste em mover paixões, dela fosse retirada juntamente com os exórdios e as perorações». Montaigne, Ensaios, Relógios D’ Água, Lisboa, 1998. pp.147-148.
[6] Sócrates, Fédon, 66 a.
[7] Para ilustrar estas diferenças entre Platão a Aristóteles temos a pintura de Rafael Academia de Atenas onde podemos ver Platão apontar para o Céu, Mundo superior, das ideias (Idealismo) e Aristóteles apontar para a Terra, mundo sensível, da realidade (Realismo).
[8] Durante o período clássico são raras esculturas de nu feminino.
[9] Excelência, virtude.
[10] alétheia: verdade. A teoria aristotélica da verdade e da falsidade assenta na convicção de que a verdade não está nas coisas (Meta) nem no nosso conhecimento das substâncias simples (onde só é possível o conhecimento ou ignorância) mas sim no juízo, i. é, no conjugar de conceitos que não correspondem à realidade. in Dicionário de Termos Filosóficos Gregos, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, Lisboa, 1974.