Lou Andreas-Salomé

Lou Andreas-Salomé, Paul Rée e Friedrich Nietzsche


Ouse, ouse... ouse tudo!!

Não tenha necessidade de nada!

Não tente adequar sua vida a modelos,

nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.

Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.

Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la!

Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.

Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso:

algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!


Uma mulher livre, um homem romântico e o “anticristo”. Poderia ser a sinopse de um filme[1] ou de um romance, mas não é. É uma fotografia icónica, registada por Jules Bonnet, em Lucerna de uma mulher chamada Lou Andreas-Salomé (à esquerda); de Paul Rée (ao centro) e de Friedrich Nietzsche (do lado direito). Uma tríada de grandes vultos da cultura europeia do final do século XIX. Não deixa de ser irónico que Lou Salomé, famosa pela sua beleza e de notável inteligência, apareça nesta encenação fotográfica a desempenhar um papel cruel, de flageladora, perante os seus amigos. Lou Salomé tinha 22 anos quando foi a um estúdio fotográfico, na companhia dos seus “obedientes” amantes[2], fazendo-se retratar em cima de uma carroça, brandindo o látego. O gesto poderia indiciar, numa rápida interpretação, uma simples brincadeira. Mas o que esta fotografia revela não é zombaria, é uma imagem que descobre o poder de uma mulher capaz de influenciar espíritos brilhantes. Ela dirige, conduz mentes apaixonadas à semelhança do idílico cenário que lhe dá suporte em forma de trompe-l’oeil. É tudo uma encenação romântica, uma confidência de amor e os seus mistérios. Uma carroça, puxada por dois ilustres filósofos, serve de metáfora entre a exaltação apolínea e a força dionisíaca do pensamento. Quem conduz quem, e quem é conduzido por quem!? Os dois homens deixam-se conduzir pela sugestiva proposta apresentada por Lou Salomé: uma viagem, uma vida partilhada em comum – winterplan -, pelos grandes centros europeus divulgando o conhecimento gerado pela tríada formada. É um “Hino à Vida[3]” que Lou haveria de materializa-lo em poema e Nietzsche compôs a música (tendo sido esta a única partitura que publicou em vida).

 

Hymn to Life / Hino à Vida

Surely, a friend loves a friend the way
That I love you, enigmatic life —
Whether I rejoiced or wept with you,
Whether you gave me joy or pain.

I love you with all your harms;
And if you must destroy me,
I wrest myself from your arms,
As a friend tears himself away from a friend’s breast.

I embrace you with all my strength!
Let all your flames ignite me,
Let me in the ardor of the struggle
Probe your enigma ever deeper.

To live and think millennia!
Enclose me now in both your arms:
If you have no more joy to give me —
Well then—there still remains your pain.

 

Lebensgebet, Lou Andreas-Salomé

 

A fotografia podia servir para uma acção de marketing publicitário, mas o que ela revela, nos tons que teimam desvanecer, é um documentado compromisso entre os três amigos. É um pacto estabelecido entre eles a nível intelectual que foi profícuo, exercendo uma influência na filosofia, na história da cultura europeia, com repercussões, até, na arte moderna. Desde muito jovem que Lou Salomé, sedenta de independência e impaciente por viver, manifesta interesse em aprofundar o estudo em teologia, filosofia e literatura (francesa e alemã). Após a desolação com a morte do pai, a sua descrença em Deus, levá-la-á a recorrer a Hendrik Gillot, um pregador conhecido pelas suas ideias subversivas, para a ajudar a restabelecer a sua fé em Deus. Lou Salomé vai estudar teologia, filosofia e literatura (francesa e alemã) ministrada pelo Hendrik Gillot, por quem se apaixonou. Aliás, a paixão foi mútua. A intrepidez, a inteligência e a sede de aprender de Lou atraíram Gillot e, pouco tempo passado, pediu-a em casamento. Pedido fracassado; recusado por Lou. O fascínio pelo mestre gorou-se quando ele pretendeu ocupar o espaço conferido pelo casamento: para Lou, no seu universo, não havia lugar para o desejo, nem para o sexo em exclusividade. Lou Salomé desde muito cedo sonhava com uma sociedade liberta de falsas moralidades lutando incansavelmente contra os seus dogmas incluindo as amarras da religião. Defendia ousadamente os direitos das mulheres, assim como a importância da sua participação na sociedade. Em suma, era uma mente crítica que a guiava numa atitude de descrença na sociedade e, em particular, na religião. E ficava fascinada quando conhecia alguém, irreverente nas afirmações, firme nas convicções, sobretudo, com aquilo que ela gostaria de auscultar. Se as esperanças de pacificação com a religião e com Deus foi, inicialmente, um dos seus propósitos,  desapareceram quando, em 1880, Salomé, doente, na companhia de sua mãe, se mudaram para Zurique, na Suíça (um dos raros países tolerantes que aceitava mulheres nos cursos superiores) afim de ingressar na universidade e restabelecer a sua saúde física. A sua estada em Zurique durou dois anos e em 1882, tinha Lou 21 anos, foram para Roma onde conheceu Paul Rée e Friedrich Nietzsche. Um feliz encontro, uma comunhão intelectual em perfeita sintonia. Um triangulo amoroso estabelecido, uma vida intelectual partilhada que durou ao longo de três anos. Qualidades de referência verificáveis, certamente, por eles, em Lou como modelo cujo o brilho intelectual e a audácia os fascinavam. Afinidades intelectuais que uniram estes três amigos, atributos sempre presentes no pensamento nietzschiano. Durante este período, Lou terá exercido uma influência fundamental na obra de Nietzsche, reconhecida pelo filósofo no livro, Assim falava Zaratustra[4]. Mais tarde, num dos últimos livros de Nietzsche, Ecce Homo, escrito como se fosse as mnemografias da sua obra e da sua vida, dedicado a Lou Andreas-Salomé, chegou a afirmar ser “de longe, a pessoa mais brilhante que conheceu”. Mas quem é esta mulher? Será [ela] o Super-homem que Nietzsche se refere; o Homem hiperbóreo, aquele que se eleva mais alto e se supera a si mesmo? Uma espécie de alter-ego do seu pensamento? Há um nítido acatamento observável na fotografia de Jules Bonnet e não é somente estética: os homens que ocupam o lugar dos jumentos aparecem apoucados pela paixão brandida por Lou Salomé. É nessa exaltação que, segundo Nietzsche, reside a força vital impulsionadora, da acção, da criatividade e da busca pela excelência. Os dois homens baqueiam quando se aproximam de Lou. O coração [de Nietzsche] foi fraco, o espírito sucumbiu ao pedi-la em casamento: foi-lhe negado[5]. Não foi o primeiro, não será o último a ouvir as palavras que lhes dilaceraram a alma[6]. O homem hiperbóreo rende-se à mulher fatal. O amor fati de Nietzsche transforma-se em decepção e amargura. Torna-se mais taciturno. Entrega-se à embriaguez do ópio, o único que o salva dessa dor lancinante, ao ponto de pensar em suicídio. Refugia-se no locus horrendus das montanhas de Sils-Maria (Suíça) que ele tanto amava, exaltando-as: a filosofia é viver nas altas montanhas. É junto ao Lago Sils que, depois de amadurecida a experiência vivida, tem a revelação de Zaratustra[7], uma obra profética que ele virá a negar, esse estatuto de idolatria, em Ecce Homo. Porém, a ligação intelectual entre Lou e Nietzsche manteve-se até ao fim da vida. Paixões desavindas[8]; Nietzsche afasta-se de Paul Rée[9] que continua na vida de Lou. Uma lufada de amor fresco na vida do jogador compulsivo que foi Paul Rée, agora encontrando em Lou Salomé o seu porto de abrigo, não só de ternura e atenção redobrada, como de apaziguamento necessário à voracidade da sociedade que alimentava as histórias de escândalos da vida privada[10]. Em 1887, Lou Salomé casa-se com Friedrich Carl Andreas, um insigne orientalista. Um casamento duradouro, aberto, permitindo a Lou outros relacionamentos. Todavia, em 1897, Lou Andreas-Salomé conheceu (René) Rainer Maria Rilke, poeta e novelista, (talvez o mais amado?) com o qual manteve um amor poético, onde Lou, fascinada pela virilidade suavizada pela doçura, partilha a nível intelectual e emocional, em correspondência privada.

 

Nunca te vi, que não tivesse o desejo de te rezar. Nunca te ouvi, que não tivesse o desejo de acreditar em ti. Nunca te esperei, sem o desejo de sofrer por ti. Nunca te desejei, sem ter também o direito de me ajoelhar à tua frente. Sou para ti como o bastão para o caminhante, mas sem te apoiar. Sou para ti como o cetro é para o rei, mas sem te enriquecer. Sou para ti como a última pequena estrela é para a noite, ainda que a noite mal a distinguisse e ignorasse a sua cintilação. [11]” René

 

O homem romântico da fotografia, Paul Rée, encontra-se destroçado, irá dedicar-se a um trabalho altruísta na comunidade onde habita e, no local onde Lou Salomé lhe negou o último pedido de casamento, escorregou caindo pelo penhasco vindo a morrer (28 de Outubro de 1901). Rée havia declarado, não muito antes de sua morte, “Eu tenho que filosofar. Quando fico sem material sobre o qual filosofar, é melhor eu morrer[12]. Apesar de sua oposição ao casamento e de seus relacionamentos abertos com outros homens, Salomé e Andreas permaneceram casados de 1887 até sua morte em 1930. Depois destes atropelos na vida de Lou entregou-se à psicanálise o que levaria a um relacionamento intenso com Sigmund Freud. Após a morte de Friedrich Carl Andreas, em 1930, Salomé dedicou o resto da sua vida a promover o legado intelectual de Nietzsche e Freud. A brilhante ensaísta[13], autora de Die Erotik, foi a mulher que encantou a elite intelectual europeia. Na figura de Lou confundem-se, muita das vezes, a personagem histórica e a lenda. Lou era, sobretudo, uma sapiossexual e o seu erotismo estabelecia-se ao nível da maiêutica intelectual. O amor e a paixão foram, por vezes, atropelos na vida de Lou Salomé, cuja ousadia, propagada nas suas acções, levá-la-á a afirmar [nas suas Memórias] que para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento, cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. (...) O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser: é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe[14].

O brilhante registo fotográfico, que nos propusemos analisar, sintetiza em termos formais o triângulo amoroso, o pathos vivido por Lou Andreas-Salomé. Não seriam estes os únicos amores da sua vida, muitos outros se cruzaram na sua vida e com os quais Lou reafirmou, sempre, o seu espírito livre: “Sempre serei fiel às lembranças. Nunca o serei aos homens”.

 

 

Texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira

 

 


NOTAS:

[1] Há um filme sobre a vida de LOU Andreas-Salomé: a audácia de ser livre, de Cordula Kablitz-Post.

[2] Lou Salomé, Paul Rée e Friedrich Nietzsche viveram juntos desde 1882 a 1885.

[3] A composição (musical) Hino à Vida foi parcialmente feita por Nietzsche em agosto e setembro de 1882, apoiada pela segunda estrofe do poema Lebensgebet de Lou Andreas-Salomé”. in wikipedia

[4]  Notas sobre o Zaratustra de Nietzsche. Por André Vinícius Pessôa. Revista Garrafa v. 5, n. 14 (2007)

[5] O fim da relação de Nietzsche com Salomé foi expresso por ele, em dezembro de 1882, em carta dirigida a Overbeck, seu editor: “Minha relação com Lou está nos últimos e mais dolorosos momentos. Pelo menos assim o creio hoje. Mais tarde – se houver um mais tarde – quero dizer uma palavra a respeito. Compaixão, meu caro amigo, é uma espécie de inferno, digam o que quiserem os adeptos de Schopenhauer.”

[6] Lou Salomé, nas suas Memórias, deixou transparecer, fugiu de Gillot, que lhe surgia como um obstáculo à sua liberdade, exactamente como fugirá, mais tarde, de outras relações com Paul Rée, Nietzsche e Rilke, quando a pediram em casamento.

[7] Prideaux, Sue, Eu sou Dinamite!, A vida de Friedrich Nietzsche, Círculo de Leitores, 2018.

[8] https://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_Rée

[9] Uma carta de Rée, de novembro de 1897, sobre sua relação com Nietzsche, contém as seguintes frases condenatórias: “Nunca pude Lê-lo. Ele é rico em espírito e pobre em ideias”. “Todos fazem tudo por vaidade, mas a vaidade dele é patológica, irritantemente doentia. Ela o levou a produzir, quando são, grandes obras, de modo normal, já enquanto doente, podendo pensar e escrever com rara frequência, e temendo sobretudo não voltar a fazê-lo nunca mais, a todo custo queria conquistar a fama; Sua vaidade doentia produziu algo doentio, muitas vezes brilhante e belo, mas essencialmente deformado, patológico e demente; não um filosofar, mas sim um delirar!” in wikipedia 

[10] Histórias que remeteram Lou para um silêncio do qual não voltou a sair. (Mesmo quando Freud, muitos anos mais tarde, a instar a falar sobre o assunto, ela recusa). Respondeu sempre com um muro de silêncio que não a beneficiava, uma vez que não contribuía para clarificar a situação.

[11] Correspondência Amorosa, Rainer Maria Rilke e Lou Andreas-Salomé. Tradução Manuel Alberto, Relógio D’ Água Editores, 1994, Lisboa.

[12] Safranski 2002, p. 183.

[13] Ela foi uma das primeiras psicanalistas e uma das primeiras mulheres a escrever psicanaliticamente sobre a sexualidade feminina. Durante sua vida, ela escreveu muitos romances, peças de teatro e ensaios, incluindo “Hymn to Life”. A biografia escrita por Stéphane Michaud procura esclarecer os contornos que constituíram a personalidade controversa desta mulher que foi romancista, poeta, ensaísta, psicanalista e uma pioneira do modernismo europeu.

[14] Lou Andreas-Salomé