Fillide Melandroni uma “cortigiana escandalosa”. Foi assim que a Diocese de Roma julgou Melandroni por recusar o sacramento. Seria a condenação de menor importância que a cortesã haveria de registar na sua vida. Desacatos e posse de arma proibida[1] constam nos registos das autoridades romanas[2]. Melandroni nasceu em Siena no ano 1581 e morreu em Roma com 37 anos (1618). Em Roma viveu no Ortaccio[3], um bairro de prostituição confinado por dois portões que, por ordem do Papa Pio V, era só aberto em determinadas horas durante o dia. Estavam proibidos o uso e o porte-de-armas neste local e as prostitutas apanhadas fora do Ortaccio eram açoitadas em praça pública. Melandroni envolveu-se com um jovem de família nobre, Ranuccio Tomassoni, que foi seu proxeneta. Esta cortesã que tinha Tomassoni como seu amante, também foi modelo do temperamental e irrascível Caravaggio. Em 1594, Caravaggio aventurou-se numa carreira de pintor independente[4] e pinta Os Trapaceiros chamando a atenção do Cardeal del Monte que o adquiriu ao comerciante de arte, Costantino. Foi um começo auspicioso. Com o auxílio de Prospero Orsi, um consagrado pintor maneirista, foram-lhe abertas as portas dos diversos mecenas e coleccionadores, do mundo da arte em Roma, como o banqueiro Vincenzo Giustiniani. Tudo se conjugava para uma vida sucesso. Apareceram novas encomendas, mas o pintor não suportava a mediocridade alheia criticando a originalidade da arte que era concebida nessa altura. A vontade de propor novas ideias estéticas era tão grande, quanto o de denegrir a pintura dos seus congéneres pintores. Ele esteve envolto em várias polémicas e insultos, nomeadamente com o pintor Giovanni Baglione, fazendo distribuir por Roma versos cáusticos caluniando a figura do pintor e da sua mulher (em tribunal negou a sua autoria, mas em vão). Foi condenado por difamação. Em resposta Baglione pinta um quadro, Amor sagrado versus Amor profano, 1602, mostrando-nos um Anjo (o amor vitorioso) afastando Cupido (o amor profano) do demónio, retratado com rosto de Caravaggio que, segundo Andrew Graham-Dixon, “poderá ser a acusação (um insulto) visual da homossexualidade de Caravaggio[5]”. Mais um vitupério, mais um afago no ego do artista Baglione? Caravaggio não primou na sua vida por uma conduta de cidadania exemplar, mas a sua genialidade reconhecida acompanhou a vida pungente do artista. Poderíamos chamar uma arte autobiográfica. Foi várias vezes condenado e preso fazendo constar no seu processo judicial o seu insulto distintivo: “frito-te os tomates em azeite”... frase proferida numa taberna quando o empregado interpolado por Caravaggio se recusou a esclarecer se as alcachofras estavam fritas em azeite ou em manteiga. Não faria sentido repetir tal impropério se não sublinhássemos o local vivenciado. O mesmo local, a taberna, que serve de cenário a um tema bíblico, Invocação de São Mateus[6], 1599. A arte de Caravaggio tem esta capacidade de nos convocar, não só como espectador, mas de nos fazer participar no momento bíblico e histórico. É uma arte que habita os mesmos espaços comuns. É também este o lugar, da vida dissoluta e difícil, que Melandroni partilha e se cruza com o “realismo caravagiano”: é uma escolha estética que o pintor transporta para a tela recorrendo aos modelos retirados do quotidiano. Caravaggio sentia-se um deles e era para eles, os filhos de Deus, que são aqueles que melhor podiam enobrecer as suas personagens bíblicas: os pobres descalços, de unhas encardidas, de pele escura e enrugada, de tez queimada e de vestes descuidadas. Era aqui no seio do povo que Caravaggio recrutava as personagens que melhor ilustravam – segundo o artista – a mensagem de Cristo: “é mais difícil um rico entrar no Reino de Deus do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha” (Mateus, 19:23-26). Os traços e as marcas da indigência, a rudeza da vida, os rostos da pobreza são revelados nos seus quadros através de uma técnica pictórica de alto-contraste (claro/escuro) conferindo-lhes a atenção devida do leitor. Afastando-se do idealismo clássico maneirista o artista concentra-se nas pessoas que o rodeiam. O realismo pictórico de Caravaggio abandona a perfeição renascentista do sfumato e de outras técnicas “lambidas” para conferir às suas obras, a matéria, a rugosidade, o vigor da sua arte. Tal e qual, a força que advém da pincelada rude e expressiva, Caravaggio legitima a sua pintura através da protérvia realidade que nos incomoda. Constatamos esta repulsa no quadro A Morte de Maria (1602-6) destinada à igreja das Carmelitas[7] e que o clero considerou desprovida de santidade e ofensiva para a igreja católica, recusando a obra. Foram estas as críticas mais veementes ouvidas para justificar a rejeição deste trabalho. Porém, o que mais escandalizava não era a Virgem Maria ser retratada com demasiada simplicidade, nem a justificação teológica de que a Maria não morreu, mas sim, ascendeu ao céu num sono profundo. O que mais indignou, aos encomendadores e à igreja, foi o de reconhecerem em Maria outra identidade: a de Melandroni coberta com um vestido vermelho decotado. O realismo de Caravaggio foi longe de mais. Apresenta-nos uma verdade que não nos permite escapulir do mundo terreno. Paradoxalmente, não encontramos nada de tenebroso[8] na pintura de Caravaggio. Descobrimos uma realidade crua de vidas esquecidas. De existências que teimamos em apagar. E quase toda a pintura de Caravaggio, realizada em Roma, está directa, ou indirectamente, ligada ao mundo de Fillide Melandroni. Não se conhece nenhuma ligação sentimental entre Caravaggio e Melandroni além da amizade profissional. Todavia, a cortesã serviu de modelo (reconhecidos) em quatro quadros: Marta e Maria Madalena, 1598, Santa Catarina de Alexandria, 1598-9, Judith e Holofernes, 1602-4 e a Morte de Maria, 1602-6. A disputa da mesma mulher, dívidas[9], insultos recíprocos, serviram de “pomo de discórdia” entre Caravaggio e Tomassoni. Um “jogo de ténis” agendado, foi palco [actual Piazza di Firenza] e pretexto para o último confronto, num duelo que terminou em ferimentos graves em Caravaggio e a morte[10] de Tomassoni. O pintor, ferido, calcorreia as ruas em direcção à Piazza Navona refugiando-se no palácio do Cardeal del Monte (actual Palácio Madama) que lhe deu guarida. Depois escondeu-se nas propriedades da família Colonna[11]. Durante este período Caravaggio pinta dois quadros (Êxtase de Maria Madalena[12], 1606, e A Última Ceia de Emaús[13], 1606). Perseguido pela justiça (condenado à morte por decapitação, pelo Papa) leva-o a fugir para Nápoles, Malta e Sicília. A sentença levá-lo-á a penitenciar-se realizando vários quadros com decapitações bíblicas nas quais ele personifica a figura do mártire. Um auto-retrato degolado, um último e desesperado pedido de perdão. No regresso a Roma morrerá (15 de Agosto de 1610) doente no porto de Ercole.
Em 1612 Melandroni foi forçada a deixar Roma pela família do poeta veneziano Strozzi, que era seu atual protector e amante. Dois anos depois regressaria a Roma na mesma altura em que deixa em testamento o seu retrato[14] a Giulio Strozzi; segurando um ramo de flores de jasmim, símbolo do amor erótico[15]. Melandroni morreu em 1618, aos trinta e sete anos. A Igreja recusou-se a dar-lhe um enterro cristão.
Texto, 1999-2023 © Luís Carvalho Barreira
[*] Quadro destruído pelo fogo no Kaiser-Friedrich-Museum, Berlinin 1945
[1] Varriano, John. Caravaggio: The Art of Realism. Penn State Press, 2010. Pág. 90.
“Em 11 de fevereiro de 1599, houve a denúncia de uma festa barulhenta na casa de Melandroni e que os homens presentes estavam armados. Como o porte de armas era proibido no Ortaccio, as autoridades foram até a casa. No momento da chegada, havia apenas Melandroni e três homens presentes, um dos quais era Tomassoni, que usava uma espada. Melandroni e Tomassoni foram presos.”
[2] Robb, Peter. M: The Man Who Became Caravaggio. Macmillan. 2001. Pág. 90
[3] Este local situava-se a sul do actual museu “ara pacis”, entre o Tibre, a Via di Ripetta, a Piazza Monte d'Oro e a Piazza degli Schiavoni.
[4] Frequentou o atelier de Giuseppe Cesari d’Arpino um consagrado pintor.
[5] Andrew Graham-Dixon, Caravaggio: A life sacred and profane, Penguin, 2011. Pág. 4
[6] Este quadro encontra-se na capela Contarelli da igreja São Luís dos Franceses, Roma.
[7] Obra encomendada por Laerzio Alberti Cherubini, advogado do Papa, para a sua capela na igreja das Carmelitas de Santa Maria della Scalaem, em Roma. A Morte de Maria, 1602, de Caravaggio, encontra-se no Museu do Louvre.
[8] Tenebrismo: [tenebroso, em volto em trevas, muito escuro, sombrio, misterioso] foi a designação que os românticos encontraram para caracterizar a pintura de Caravaggio.
[9] Ibidem, pág. 342
[10] A morte de Tomassoni ocorreu a 28 de Maio de 1606. In Mancini, Baglione & Bellori 2019, p. 56.
[11] Ibidem, pág. 342
[12] Colecção privada. Pertence a um colecionador particular de Roma e que geralmente é chamada de cópia "Klain”.
[13] Pinacoteca de Brera, Milão.
[14] Robb 2001, p. 494. Retrato realizado por Caravaggio a pedido do poeta Giulio Strozzi.
[15] Segundo John Gash as flores de jasmim são o símbolo do amor erótico.
BIBLIOGRAFIA
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· Mancini, Giulio; Baglione, Giovanni; Bellori, Giovanni Pietro (2019). Lives of Caravaggio. Getty Publications.
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