Ó sedentos de poesia
libertai o néctar
das rolhas
que o oprimem
Ó sedentos de poesia
libertai o néctar
das rolhas
que o oprimem
Uma mulher livre, um homem romântico e o “anticristo”. Poderia ser a sinopse de um filme[1] ou de um romance, mas não é. É uma fotografia icónica, registada por Jules Bonnet, em Lucerna de uma mulher chamada Lou Andreas-Salomé (à esquerda); de Paul Rée (ao centro) e de Friedrich Nietzsche (do lado direito). Uma tríada de grandes vultos da cultura europeia do final do século XIX. Não deixa de ser irónico que Lou Salomé, famosa pela sua beleza e de notável inteligência, apareça nesta encenação fotográfica a desempenhar um papel cruel, de flageladora, perante os seus amigos. Lou Salomé tinha 22 anos quando foi a um estúdio fotográfico, na companhia dos seus “obedientes” amantes[2], fazendo-se retratar em cima de uma carroça, brandindo o látego. O gesto poderia indiciar, numa rápida interpretação, uma simples brincadeira. Mas o que esta fotografia revela não é zombaria, é uma imagem que descobre o poder de uma mulher capaz de influenciar espíritos brilhantes. Ela dirige, conduz mentes apaixonadas à semelhança do idílico cenário que lhe dá suporte em forma de trompe-l’oeil. É tudo uma encenação romântica, uma confidência de amor e os seus mistérios. Uma carroça, puxada por dois ilustres filósofos, serve de metáfora entre a exaltação apolínea e a força dionisíaca do pensamento. Quem conduz quem, e quem é conduzido por quem!? Os dois homens deixam-se conduzir pela sugestiva proposta apresentada por Lou Salomé: uma viagem, uma vida partilhada em comum – winterplan -, pelos grandes centros europeus divulgando o conhecimento gerado pela tríada formada. É um “Hino à Vida[3]” que Lou haveria de materializa-lo em poema e Nietzsche compôs a música (tendo sido esta a única partitura que publicou em vida).
Hymn to Life / Hino à Vida
Surely, a friend loves a friend the way
That I love you, enigmatic life —
Whether I rejoiced or wept with you,
Whether you gave me joy or pain.
I love you with all your harms;
And if you must destroy me,
I wrest myself from your arms,
As a friend tears himself away from a friend’s breast.
I embrace you with all my strength!
Let all your flames ignite me,
Let me in the ardor of the struggle
Probe your enigma ever deeper.
To live and think millennia!
Enclose me now in both your arms:
If you have no more joy to give me —
Well then—there still remains your pain.
Lebensgebet, Lou Andreas-Salomé
A fotografia podia servir para uma acção de marketing publicitário, mas o que ela revela, nos tons que teimam desvanecer, é um documentado compromisso entre os três amigos. É um pacto estabelecido entre eles a nível intelectual que foi profícuo, exercendo uma influência na filosofia, na história da cultura europeia, com repercussões, até, na arte moderna. Desde muito jovem que Lou Salomé, sedenta de independência e impaciente por viver, manifesta interesse em aprofundar o estudo em teologia, filosofia e literatura (francesa e alemã). Após a desolação com a morte do pai, a sua descrença em Deus, levá-la-á a recorrer a Hendrik Gillot, um pregador conhecido pelas suas ideias subversivas, para a ajudar a restabelecer a sua fé em Deus. Lou Salomé vai estudar teologia, filosofia e literatura (francesa e alemã) ministrada pelo Hendrik Gillot, por quem se apaixonou. Aliás, a paixão foi mútua. A intrepidez, a inteligência e a sede de aprender de Lou atraíram Gillot e, pouco tempo passado, pediu-a em casamento. Pedido fracassado; recusado por Lou. O fascínio pelo mestre gorou-se quando ele pretendeu ocupar o espaço conferido pelo casamento: para Lou, no seu universo, não havia lugar para o desejo, nem para o sexo em exclusividade. Lou Salomé desde muito cedo sonhava com uma sociedade liberta de falsas moralidades lutando incansavelmente contra os seus dogmas incluindo as amarras da religião. Defendia ousadamente os direitos das mulheres, assim como a importância da sua participação na sociedade. Em suma, era uma mente crítica que a guiava numa atitude de descrença na sociedade e, em particular, na religião. E ficava fascinada quando conhecia alguém, irreverente nas afirmações, firme nas convicções, sobretudo, com aquilo que ela gostaria de auscultar. Se as esperanças de pacificação com a religião e com Deus foi, inicialmente, um dos seus propósitos, desapareceram quando, em 1880, Salomé, doente, na companhia de sua mãe, se mudaram para Zurique, na Suíça (um dos raros países tolerantes que aceitava mulheres nos cursos superiores) afim de ingressar na universidade e restabelecer a sua saúde física. A sua estada em Zurique durou dois anos e em 1882, tinha Lou 21 anos, foram para Roma onde conheceu Paul Rée e Friedrich Nietzsche. Um feliz encontro, uma comunhão intelectual em perfeita sintonia. Um triangulo amoroso estabelecido, uma vida intelectual partilhada que durou ao longo de três anos. Qualidades de referência verificáveis, certamente, por eles, em Lou como modelo cujo o brilho intelectual e a audácia os fascinavam. Afinidades intelectuais que uniram estes três amigos, atributos sempre presentes no pensamento nietzschiano. Durante este período, Lou terá exercido uma influência fundamental na obra de Nietzsche, reconhecida pelo filósofo no livro, Assim falava Zaratustra[4]. Mais tarde, num dos últimos livros de Nietzsche, Ecce Homo, escrito como se fosse as mnemografias da sua obra e da sua vida, dedicado a Lou Andreas-Salomé, chegou a afirmar ser “de longe, a pessoa mais brilhante que conheceu”. Mas quem é esta mulher? Será [ela] o Super-homem que Nietzsche se refere; o Homem hiperbóreo, aquele que se eleva mais alto e se supera a si mesmo? Uma espécie de alter-ego do seu pensamento? Há um nítido acatamento observável na fotografia de Jules Bonnet e não é somente estética: os homens que ocupam o lugar dos jumentos aparecem apoucados pela paixão brandida por Lou Salomé. É nessa exaltação que, segundo Nietzsche, reside a força vital impulsionadora, da acção, da criatividade e da busca pela excelência. Os dois homens baqueiam quando se aproximam de Lou. O coração [de Nietzsche] foi fraco, o espírito sucumbiu ao pedi-la em casamento: foi-lhe negado[5]. Não foi o primeiro, não será o último a ouvir as palavras que lhes dilaceraram a alma[6]. O homem hiperbóreo rende-se à mulher fatal. O amor fati de Nietzsche transforma-se em decepção e amargura. Torna-se mais taciturno. Entrega-se à embriaguez do ópio, o único que o salva dessa dor lancinante, ao ponto de pensar em suicídio. Refugia-se no locus horrendus das montanhas de Sils-Maria (Suíça) que ele tanto amava, exaltando-as: a filosofia é viver nas altas montanhas. É junto ao Lago Sils que, depois de amadurecida a experiência vivida, tem a revelação de Zaratustra[7], uma obra profética que ele virá a negar, esse estatuto de idolatria, em Ecce Homo. Porém, a ligação intelectual entre Lou e Nietzsche manteve-se até ao fim da vida. Paixões desavindas[8]; Nietzsche afasta-se de Paul Rée[9] que continua na vida de Lou. Uma lufada de amor fresco na vida do jogador compulsivo que foi Paul Rée, agora encontrando em Lou Salomé o seu porto de abrigo, não só de ternura e atenção redobrada, como de apaziguamento necessário à voracidade da sociedade que alimentava as histórias de escândalos da vida privada[10]. Em 1887, Lou Salomé casa-se com Friedrich Carl Andreas, um insigne orientalista. Um casamento duradouro, aberto, permitindo a Lou outros relacionamentos. Todavia, em 1897, Lou Andreas-Salomé conheceu (René) Rainer Maria Rilke, poeta e novelista, (talvez o mais amado?) com o qual manteve um amor poético, onde Lou, fascinada pela virilidade suavizada pela doçura, partilha a nível intelectual e emocional, em correspondência privada.
“Nunca te vi, que não tivesse o desejo de te rezar. Nunca te ouvi, que não tivesse o desejo de acreditar em ti. Nunca te esperei, sem o desejo de sofrer por ti. Nunca te desejei, sem ter também o direito de me ajoelhar à tua frente. Sou para ti como o bastão para o caminhante, mas sem te apoiar. Sou para ti como o cetro é para o rei, mas sem te enriquecer. Sou para ti como a última pequena estrela é para a noite, ainda que a noite mal a distinguisse e ignorasse a sua cintilação. [11]” René
O homem romântico da fotografia, Paul Rée, encontra-se destroçado, irá dedicar-se a um trabalho altruísta na comunidade onde habita e, no local onde Lou Salomé lhe negou o último pedido de casamento, escorregou caindo pelo penhasco vindo a morrer (28 de Outubro de 1901). Rée havia declarado, não muito antes de sua morte, “Eu tenho que filosofar. Quando fico sem material sobre o qual filosofar, é melhor eu morrer”[12]. Apesar de sua oposição ao casamento e de seus relacionamentos abertos com outros homens, Salomé e Andreas permaneceram casados de 1887 até sua morte em 1930. Depois destes atropelos na vida de Lou entregou-se à psicanálise o que levaria a um relacionamento intenso com Sigmund Freud. Após a morte de Friedrich Carl Andreas, em 1930, Salomé dedicou o resto da sua vida a promover o legado intelectual de Nietzsche e Freud. A brilhante ensaísta[13], autora de Die Erotik, foi a mulher que encantou a elite intelectual europeia. Na figura de Lou confundem-se, muita das vezes, a personagem histórica e a lenda. Lou era, sobretudo, uma sapiossexual e o seu erotismo estabelecia-se ao nível da maiêutica intelectual. O amor e a paixão foram, por vezes, atropelos na vida de Lou Salomé, cuja ousadia, propagada nas suas acções, levá-la-á a afirmar [nas suas Memórias] que para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento, cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. (...) O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser: é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe[14].
O brilhante registo fotográfico, que nos propusemos analisar, sintetiza em termos formais o triângulo amoroso, o pathos vivido por Lou Andreas-Salomé. Não seriam estes os únicos amores da sua vida, muitos outros se cruzaram na sua vida e com os quais Lou reafirmou, sempre, o seu espírito livre: “Sempre serei fiel às lembranças. Nunca o serei aos homens”.
Texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira
NOTAS:
[1] Há um filme sobre a vida de LOU Andreas-Salomé: a audácia de ser livre, de Cordula Kablitz-Post.
[2] Lou Salomé, Paul Rée e Friedrich Nietzsche viveram juntos desde 1882 a 1885.
[3] A composição (musical) Hino à Vida foi parcialmente feita por Nietzsche em agosto e setembro de 1882, apoiada pela segunda estrofe do poema Lebensgebet de Lou Andreas-Salomé”. in wikipedia
[4] Notas sobre o Zaratustra de Nietzsche. Por André Vinícius Pessôa. Revista Garrafa v. 5, n. 14 (2007)
[5] O fim da relação de Nietzsche com Salomé foi expresso por ele, em dezembro de 1882, em carta dirigida a Overbeck, seu editor: “Minha relação com Lou está nos últimos e mais dolorosos momentos. Pelo menos assim o creio hoje. Mais tarde – se houver um mais tarde – quero dizer uma palavra a respeito. Compaixão, meu caro amigo, é uma espécie de inferno, digam o que quiserem os adeptos de Schopenhauer.”
[6] Lou Salomé, nas suas Memórias, deixou transparecer, fugiu de Gillot, que lhe surgia como um obstáculo à sua liberdade, exactamente como fugirá, mais tarde, de outras relações com Paul Rée, Nietzsche e Rilke, quando a pediram em casamento.
[7] Prideaux, Sue, Eu sou Dinamite!, A vida de Friedrich Nietzsche, Círculo de Leitores, 2018.
[8] https://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_Rée
[9] Uma carta de Rée, de novembro de 1897, sobre sua relação com Nietzsche, contém as seguintes frases condenatórias: “Nunca pude Lê-lo. Ele é rico em espírito e pobre em ideias”. “Todos fazem tudo por vaidade, mas a vaidade dele é patológica, irritantemente doentia. Ela o levou a produzir, quando são, grandes obras, de modo normal, já enquanto doente, podendo pensar e escrever com rara frequência, e temendo sobretudo não voltar a fazê-lo nunca mais, a todo custo queria conquistar a fama; Sua vaidade doentia produziu algo doentio, muitas vezes brilhante e belo, mas essencialmente deformado, patológico e demente; não um filosofar, mas sim um delirar!” in wikipedia
[10] Histórias que remeteram Lou para um silêncio do qual não voltou a sair. (Mesmo quando Freud, muitos anos mais tarde, a instar a falar sobre o assunto, ela recusa). Respondeu sempre com um muro de silêncio que não a beneficiava, uma vez que não contribuía para clarificar a situação.
[11] Correspondência Amorosa, Rainer Maria Rilke e Lou Andreas-Salomé. Tradução Manuel Alberto, Relógio D’ Água Editores, 1994, Lisboa.
[12] Safranski 2002, p. 183.
[13] Ela foi uma das primeiras psicanalistas e uma das primeiras mulheres a escrever psicanaliticamente sobre a sexualidade feminina. Durante sua vida, ela escreveu muitos romances, peças de teatro e ensaios, incluindo “Hymn to Life”. A biografia escrita por Stéphane Michaud procura esclarecer os contornos que constituíram a personalidade controversa desta mulher que foi romancista, poeta, ensaísta, psicanalista e uma pioneira do modernismo europeu.
[14] Lou Andreas-Salomé
Elizabeth Lee Miller (1907-1977)
A arte move-se por grandes paixões. E raros são os percursos artísticos que não sejam acompanhados pela dor ou amargura vivenciada. Tenho vindo a publicar algumas estórias que fizeram história das “mulheres e a arte” numa tentativa de reabilitar uma visão deliberadamente esquecida. Grandes mulheres artistas, obras esquecidas, vidas apaixonadas que permanecem rasuradas. É o caso de Lee Miller, uma jovem que, aos vinte anos, ganhou notoriedade como modelo na capa da revista Vogue (março de 1927). A beleza de Lee Miller fez-se logo notar nos vários trabalhos realizados de moda e publicados nas revistas especializadas. Lee Miller não era apenas um modelo de moda, ela tinha outras ambições não só como fotógrafa, mas também como artista plástica. Paris era o seu objectivo, a arte era a sua pretensão. A cidade das luzes era o centro cultural donde emanava os grandes movimentos artísticos do início do século XX. A chamada Vanguarda. Paris era desejada, cobiçada, por todos aqueles que almejavam participar nesse momento histórico e civilizacional. Um escol de artistas oriundos de todo os continentes, chegados a Paris, fazem-se notar pela sua irreverência e pela sua ousadia no mundo cultural. Estávamos num período hedonista onde a provocação protagonizada pelo movimento dadaísta ganhavam mais adeptos e seguidores. Disso fez eco a escritora e mecenas, americana, Gertrude Stein ao publicitar várias crónicas enaltecendo a vida parisiense, nomeadamente a cultura artística. Os irmãos de Gertrude Stein instalam-se em Paris, na Rue de Fleurus, 27, um apartamento de dois pisos, e começam a sua colecção de arte: obras de Picasso e Matisse, entre outros, são exibidas nos saraus por eles patrocinados. O interesse por obras de arte desperta curiosidade em novos colecionadores. O novo mundo estava ávido em acompanhar a modernidade europeia. As viagens transatlânticas começam a fazer-se com regularidade por parte de uma burguesia endinheirada, com estadas cada vez mais prolongadas, reforçando o lado mítico da vida parisiense. Lee Miller é atraída pelo fascínio europeu e viaja para Paris, em 1929, com o objectivo de seduzir o meio artístico, não só com a sua beleza, mas também com a vontade e determinação em afirmar-se na vida artística europeia. Chegada a Paris, bateu à porta de Man Ray e pediu-lhe para que a aceitasse (como aluna) no seu estúdio com o propósito de aprofundar os conhecimentos técnicos e teóricos da arte fotográfica. Man Ray recusou, dizendo que não aceitava alunos; mas logo se tornou sua assistente e modelo e, num piscar de olhos, Lee Miller passou a ser a sua musa e amante[1]. Foi uma simbiose perfeita entre a beleza, a paixão e a arte registada pela câmara de Man Ray. O tempo foi congelado nas inúmeras fotografias Lee Miller. A paixão foi imortalizada nesses papéis impregnados em sais de prata. Em 1932, participa no movimento surrealista e entre o seu círculo de amizades estavam outros artistas como Pablo Picasso, Paul Éluard e Jean Cocteau que a convidou a participar no elenco do filme “O sangue de um Poeta” cabendo-lhe a personagem de uma mulher (deusa) que se transforma em estátua grega simbolizando a perfeição. Lee Miller ganha estatuto e reconhecimento entre os seus pares realizando várias fotografias com um cunho pessoal, apesar de muitas delas se confundirem com as do Man Ray. A modelo, a musa, a amante rivaliza agora com o seu mestre. Uma série de fotografias pertencentes a Lee Miller cuja autoria era reivindicada por Man Ray foi o pomo da discórdia entre os dois amantes. Colérico, Man Ray, empunhou um x-ato e agrediu-a no pescoço. Um acto tempestuoso, uma ruptura anunciada. A devastadora separação dos “artistas amantes” foi inevitável.
Man Ray, abalado pelo desenlace, nunca se recompôs desse sofrimento. Sublimará a dor numa peça “Objecto Indestrutível[2]”, 1933, em que coloca o olho recortado de Lee no ponteiro do metrómano: segundo Man Ray, escrito em anexo à peça, é “um olho da fotografia de alguém que foi amada, mas não é mais vista”. Prostrado, pintará um quadro (surrealista) com uns lábios (de Lee Miller) sobrevoando o Observatório de Paris. Lee Miller regressa a New York, em 1932, onde abriu um estúdio de fotografia em parceria com o seu irmão Erik que trabalhava com o fotógrafo de moda Toni von Horn[3]. Em 1937, a musa surrealista era agora correspondente de guerra, como fotógrafa, durante a Segunda Guerra Mundial criando um registo fotojornalístico único. A fotógrafa está de regresso à Europa e além de ter visto os seus trabalhos como repórter divulgados e reconhecidos, foi também tempo para se reconciliar com o seu antigo amante tornando-se amiga até ao final da vida. Foi uma espécie de armistício amoroso. Ela agora estava obstinada em denunciar os horrores da Guerra e de todas as fotografias do conflito mundial aquela que melhor sintetiza em perfeição entre a arte e o horror é aquela que Lee Miller se deixa fotografar, pelo David E. Scherman, fotógrafo da "Life" e seu amante, na banheira do apartamento do Adolfo Hitler no momento em que foi anunciada a morte do ditador nazi. Esta fotografia fará história não só pelo momento insólito, o banho da fotógrafa, mas também pelo o horror da guerra representada: as botas enlameadas, o retrato do Fuhrer ainda presente em cima da banheira fazem parte da composição que nos instiga para uma leitura irónica entre o Bem e o Mal representada pela figura perversa. Scherman haveria de afirmar, mais tarde, “que em toda a guerra não encontrou ninguém com mais ódio aos nazis do que ela”. Em 1947, a vida tende para a normalidade e Lee Miller casa com Roland Penrose, um artista e colecionador britânico. Dessa união nasce um filho, Antony Penrose e é pelo testemunho do filho que se sabe da verdadeira amargura de Lee Miller: “Ela [Lee Miller] ficou muito feliz em permitir que suas fotografias fossem publicadas sob o nome de Man Ray”. A paixão, “o amor louco”, era tão forte que “era como se fôssemos a mesma pessoa, então não importava”.
Texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira
[1] Charles Darwent, ed. (27 de janeiro de 2013). «Man crush: When Man Ray met Lee Miller». The Independent.
[2] Man Ray, faz alusão à força do desejo sexual criando um “readymade”: “Objecto Indestrutível”, 1923. Em 1933, quando a amante o abandonou Man Ray acrescentou o olho de Lee Miller ao “Objecto a ser destruído”. Em 1957, um grupo de estudantes destruiu o metrónomo durante uma exposição Dada, em Paris.
[3] Nicole Olmos (ed.). «The Life of Lee Miller, From Fashion To War Photography». The Culture Trip.
Uma escultura em mármore de um torso naturalista faz parte da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa. Um corpo que se articula em ténues movimentos anatómicos sugerindo-nos movimento, acção. Uma harmónica proporção entre as partes em perfeita conjugação artística. Todo o realismo concebido é exaltado pela simetria. A ideia de perfeição é-nos dada pelo Naturalismo representado indo ao encontro do desejo de beleza. Um nu que reúne toda a poiesis grega. «O nu é uma invenção grega[1]».
Mas de quem é esta estátua?
A história deste torso exposto no Museu Nacional de arte Antiga começa muito antes da sua execução. Trata-se de uma cópia romana de uma outra atribuída a Skopas de Paros (século IV a.C.) realizada no auge do período clássico grego. A idiossincrasia artística e cultural grega passava pela busca incessante da perfeição, tendo o Homem como elemento aglutinador entre o terreno e o divino. A escultura referida é de Pothos, filho de Afrodite e de Hefesto (Vulcano). Como se de uma história terrena se tratasse Afrodite, deusa da paixão, do amor e do desejo, não gostava do marido por este ter deformações físicas (coxo) e pelo casamento ter sido mais uma vingança de Hefesto contra a sua mãe, Hera[2], do que amor-próprio. Mas não só. Sendo ela a deusa do amor (Afrodite) não poderia permanecer fiel permanentemente. A deusa entregou-se a muitos homens e deuses, com quem teve vários filhos: da relação com Dionísio teve um filho, Priapo, o deus da fertilidade; da sedução perpetrada por Hermes teve um outro filho, Hermafrodita; do silêncio e cumplicidade, na ocultação da infidelidade de Afrodite, Poseidon manteve uma relação amorosa com Afrodite e desse encontro nasceram duas filhas chamadas Rodes e Herophile; fruto de uma relação extraconjugal com Ares (Marte), Afrodite teve quatro filhos divinos, os erotes: Anteros, Eros, o cupido alado que sempre a acompanhava, os gémeos Hímero e Pothos[3]. Enquanto Eros era o deus do amor, da sedução, da afinidade que atrai dois seres, Pothos era o deus da paixão, do amor consequente, da paixão carnal…
Mas, talvez devêssemos analisar os pressupostos do pensamento Grego do ponto de vista do corpo poiético para melhor compreender a arte da Antiguidade Clássica que circunscreveu para todo sempre os pressupostos da arte ocidental. Da teogonia grega, da hierarquização dos diversos deuses e semi-deuses do Olimpo aos terrenos, em cultos tantos quanto as necessidades transcendentais o exigiam e concomitantemente em práticas religiosas pagãs onde o corpo é enaltecido por esse “amor grego” glorificado por alguns artistas e poetas que bradem as virtudes da beleza comparando-as com os feitos “homéricos[4]”, a arte Grega advém para o homem grego da educação do corpo integrando-o no mundo cultural de todos os Helenos. É certo que na Grécia dos séculos V e IV a.C., tais práticas tinham deixado de ser consideradas naturais. Contudo, não é de estranhar que Platão (428-347 a.C.) se insurja - na República - e mande expulsar, no seu entender, todos aqueles que por tais práticas possam contribuir para a desagregação da unidade social. Assim, para Platão, a aprendizagem tem o seu fundamento na imitação porque através dela forma-se o processo de identificação. Se se ensina através de fábulas, mitos, que são mentiras, corrompe-se e degrada-se, pelo objecto imitado, aquele a quem se ensina. Por isso, o poeta e o artista, porque principal fabulador e por ofender a sensibilidade ética através de emoções desregradas, sentimentos vis e acções vergonhosas dos heróis míticos, foi expulso do estado de Platão[5].
Como se pode conciliar a mimesis platónica e a praxis artística exaltando o corpo nomeadamente dos artistas Fídias, Míron, Policleto ou, mesmo, Skopas? É com Sócrates e Platão que começa a acusação do corpo. «O corpo impede de adquirir verdade e pensamento (...) enquanto tivermos o nosso corpo e enquanto a nossa alma estiver misturada com esta coisa má, jamais possuiremos suficientemente o objecto de desejo[6]». Ora o desejo é, para Sócrates, a verdade - logos. A distinção entre ser e aparência assume uma ruptura evidente com Sócrates e mais tarde com Platão. O olhar que vê o fenómeno perde a sua simplicidade primeira. A aparência passa a ser pensada como ilusão. A verdade deixa de estar no corpo presente (aparência) e passa a estar no corpo ausente (Ideia).
Neste sentido, a desvalorização dos artistas é mais notória e está evidenciada na “máxima” de que o artesão estava mais próximo da verdade do que o artista, e explica-a através da metáfora do carpinteiro que ao fazer uma cama, parte da Ideia para a essência, enquanto o pintor que a reproduz não faz mais do que imitá-la (essência). Assim o artista estaria mais afastado da Ideia do que o artífice cuja concepção platónica de Ideia assume um carácter absoluto numa dimensão tripartida: Verdade, Belo e o Bem.
Para Platão a Ideia (o Belo a Verdade e o Bem) era atingida pelo despojamento do domínio sensível e material e superando-o pela reflexão racional - o corpo ausente. Nesta ascese intelectual a “arte” só podia representar as aparências, mimesis, referindo as artes imitativas e representativas como téchne, já que elas eram do domínio do sensível - o corpo presente.
Contudo, a pintura e a escultura sendo artes da imitação, mesmo que fiéis à natureza do objecto retratado, resultam da exaltação do corpo presente, da sublimação das paixões que são meras ilusões temporais e não passam de meros distrates da razão.
À semelhança de Platão, Aristóteles, reduz a arte ao conceito mimético considerando a beleza da natureza superior à da arte. Por conseguinte, o Belo não é essência da arte. O realismo aristotélico contrapõe-se ao idealismo platónico[7] defendendo o prazer estético das obras de arte e que a beleza devia ser verosímil mesmo quando repugnante (feio) deveria ser motivo de representação. Mas, ao contrário de Platão, reserva o estudo da fantasia, como origem do pensamento, ao carácter psicológico defendendo a catarsis, libertação das paixões (função atribuída à tragédia), estando ligada à ideia de libertação das paixões para as melhor controlar. Em contraposição da formação do logos clássico a ascese do eros mitológico atingiu formas de devoção divina.
Assim, a arte é o resultado de uma análise da perfeição do corpo humano, o corpo clássico[8], que parte de uma conquista sobre o real sempre estruturada dentro da forma perfeita: o Cânone, a geometria que está no real, ou seja uma poética que glorifica a areté[9] do corpo humano e vê neste corpo a manifestação de um justo equilíbrio de números.
O corpo humano para o artista grego não é um modelo mas um módulo, o fenómeno em que o ser se manifesta, emerge e brilha. É ser, estar, aparecer. Por isso, o Cânone de Policleto não é um código estético. Não se trata de “criar” mas sim de “descobrir” - alétheia[10]. Não se trata de criar uma forma de beleza, pois a beleza não é exterior àquilo que manifesta. Trata-se de decifrar a lei do corpo humano, a proporção, a simetria, que esse corpo manifesta e que o insere na ordem do universo.
Os Gregos definiam de uma maneira rigorosa todas as noções de proporção, de medida, de composição e de ritmo, que fazem com que cada forma, arquitectónica ou escultórica, seja regida pelas leis do número. Segundo esta estética, todas as artes de um conjunto se acham entre si, proporcionadas por uma medida comum - o Cânone. A arte deve procurar a aparência desta ordem secreta que governa o mundo e que constitui a beleza, tal como a Filosofia (logos) se empenha em definir-lhes os princípios. A este corpo poiético, que tende, no seu termo, para a confluência do eros e do logos regido por uma razão que reduz todas as coisas à medida do homem, podemos presenciar nesta escultura clássica em análise (Torso de Pothos). Este classicismo traz consigo um valor de universalidade e de intemporalidade que faz com que a arte grega seja uma arte de referência.
Texto, extraído de Teorias da Arte, Mestrado 1998©Luís Barreira
Texto, Pothos, 2016©Luís Barreira
[1] Sophia de Mello Breyner Andresen, O nu na antiguidade clássica, Caminho,1992. p.13.
[2] Hera é a deusa das bodas, da maternidade, e das esposas, equivalente de Juno no mito romano. Irmã e esposa de Zeus é a rainha dos deuses, e patrona da fidelidade conjugal. Hera é geralmente representada ostentando na mão uma romã, símbolo da fertilidade, sangue e morte.
[3] Escritores clássicos tardios descrevem-no como um filho de Zéfiro (o vento do oeste) e Iris (arco-íris) para representar as paixões que vem com o amor.
[4] Um feito Homérico significa hoje algo de épico, grande, heróico, notável, retumbante: Os deuses arrebatados ¾ na Ilíada ¾ são feridos nas batalhas porque participavam com paixão nas paixões dos homens, sendo muitas das vezes autênticos cânticos ao amor entre os homens. Para ficarmos convencidos disso basta ler Homero.
[5] «Os Estados que longamente se mantiveram em boa ordem e bem governados, como o cretense e o lacedemónio, não tinham em grande conta os oradores. (...) O retórico do passado ¾segundo Montaigne¾ dizia que o seu ofício era fazer que as coisas pequenas parecessem grandes e como tais fossem julgadas. (...) Aríston definiu sabiamente a retórica como a ciência de persuadir o povo; Sócrates e Platão, como arte de enganar e lisonjear; e aqueles que isto negam na sua definição genérica, confirmam-no por toda a parte nos seus preceitos. Os Maometanos proíbem-na de ser ensinada às crianças por causa da sua inutilidade. E os Atenienses, ao tomarem consciência de que a sua prática, a qual gozava de todo o crédito na sua cidade, era perniciosa, ordenaram que a sua parte principal, que consiste em mover paixões, dela fosse retirada juntamente com os exórdios e as perorações». Montaigne, Ensaios, Relógios D’ Água, Lisboa, 1998. pp.147-148.
[6] Sócrates, Fédon, 66 a.
[7] Para ilustrar estas diferenças entre Platão a Aristóteles temos a pintura de Rafael Academia de Atenas onde podemos ver Platão apontar para o Céu, Mundo superior, das ideias (Idealismo) e Aristóteles apontar para a Terra, mundo sensível, da realidade (Realismo).
[8] Durante o período clássico são raras esculturas de nu feminino.
[9] Excelência, virtude.
[10] alétheia: verdade. A teoria aristotélica da verdade e da falsidade assenta na convicção de que a verdade não está nas coisas (Meta) nem no nosso conhecimento das substâncias simples (onde só é possível o conhecimento ou ignorância) mas sim no juízo, i. é, no conjugar de conceitos que não correspondem à realidade. in Dicionário de Termos Filosóficos Gregos, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, Lisboa, 1974.
Os redutos da Natureza.
Não foi na pesquisa arqueológica dos espaços naturais ou de paisagens imaculadas que este projecto fotográfico se empenhou e se fundamentou. E muito menos no registo óbvio ou na sua evidência formal. Durante vários anos, fomos impelidos para o seio dos grandes espaços naturais, recolhendo vários registos fotográficos numa tentativa, quase religiosa, de comunhão mútua. O prazer extraído desses momentos, como se tratasse de uma consonância poética, foi o de podermos viver no seu corpo em demasia. Assim, nesse excesso, nessa necessidade, nesse desejo que se exprime através de actos ou acções que se confundem com a sensibilidade quotidiana, porque o acto criativo é também o sentimento, reside a nossa pesquisa e o nosso objecto de trabalho. As singelas fotografias apresentadas aqui, quase subsumidas em mantos de nevoeiro, remetem-nos para os últimos REDUTOS de uma nova dimensão plástica, testemunham essa preocupação minimal ao mesmo tempo que ganham uma plasticidade, quase irreal, tangível ao processo criativo – corpo poiético – das artes plásticas. É nessa condição de criador e artista plástico que fotografo. Fotografo com os modelos que pinto, e pinto com a mesma natureza que fotografo. Esta justaposição de naturezas de expressão plástica distintas leva-nos a querer que no dia em que a fotografia – portadora de uma linguagem e expressão plástica - deixar de reflectir esta dimensão “poética”, possibilitando à comunidade construir um “juízo crítico”, capacidade extrema de sentido, dizível, na medida em que o objecto estético se caracteriza pela expressividade apreendida não só pelo sentimento, mas também pelo entendimento, diremos que a fotografia (ou a arte em geral) prostitui-se ao eclectismo crítico fuliginoso, ou a intervenções artísticas de simples persuasão. Nada é mais redutor do que entender uma “imagem” unicamente pela emanação do logos (reflexo, comparação ou reflexão) no objecto artístico (vulgo, obra de arte). A expressão plástica é, muitas das vezes, mais simples: e a sua simplicidade reside apenas na sua plasticidade tangível a gestos felizes e a felicidades de expressões. Neste sentido, procurei na fotografia o médium privilegiado para testemunhar a minha relação com as coisas a dois níveis: primeiro, numa inegável atracção física e, por último, numa cumplicidade poética e plástica. O primeiro impulso físico libertou-me enquanto fruidor, o segundo condicionou-me enquanto criador artista. Condicionou-me porque nem sempre a Natureza se apresenta com as roupagens almejadas, com as cores pretendidas ou com a luz desejada, factores importantes para que se possa alcançar a ideia pretendida ou objecto final – a fotografia. Nesta busca obsessiva, nem sempre observável, transformou-se em desafio constante a pesquisa fotográfica até aos seus últimos REDUTOS. O pathos extraído da Natureza realizou-se, por vezes, de uma forma mais singela, inaudita, que é quando o seu corpo transmigra para a nossa vida e quando o seu registo passa a fazer parte da nossa existência. É nesta dicotomia de fruidor e criador que estas fotografias devem ser lidas: o nosso re-encontro com a Natureza… e com a natureza da fotografia.
texto de Luís Barreira
Um conjunto de fotografias registadas ao longo dos últimos anos dá corpo a esta publicação tendo a Natureza como referente – ou objecto retratado. Ao mesmo tempo que este projecto busca a tangibilidade material entre o eu e o objecto, coloca perenemente em discussão uma certa linguagem visual centrada na fotografia. Será que um acto mecânico de um registo fotográfico pode transformar-se em objecto de arte?
A resposta não é fácil, nem será essa a nossa preocupação. Interessa-nos sobremaneira colocar a fotografia no “ad momentum” criativo: espaço, tempo e memórias. É nesta intersecção do momento que o simples acto de fotografar não se reduz a limitar o campo visual, a reenquadrar o objecto retratado, a explorar as formas através da luz, etc., mas a reinterpretar uma realidade fazendo com que possamos exponenciar a fotografia em novas formas de expressão plástica. Assim, este conjunto de fotografias propõe uma nova realidade, pois ele evidencia o que o autor quer mostrar e “não o espelho de uma realidade[1]” habitada. Nesta experimentação imaterial vivida, dificilmente explicável, porque é pessoal, foram lavrados “ad momentum” incontáveis registos cuja edição nos afasta da realidade e que a memória evoca permanentemente - “ad infinitum”. Não são simplesmente registos mecânicos ou compromissos entre dados técnicos (a velocidade do obturador, a escolha do diafragma ou da sensibilidade do filme) são fragmentos de um novo discurso promovido pelos mais diversos mediadores passíveis de ser reinterpretados. Falamos de registos fotográficos – ou grafias poéticas com a luz - que brotam de um processo complexo de mnemografias[2] revelando as sensações que o “corpo poiético[3]” apela à pesquisa estética. Este ensaio sulca cumplicidades evidentes estabelecidas com a Natureza e com a natureza das coisas; revela uma pesquisa obsessiva patente nestas 86 fotografias agora sulcadas neste livro e descobre no secretismo da solidão que a natureza das nossas raízes nos incita a rasgar caminhos, nos impelem inexoravelmente para o contacto com os elementos da Natureza: a terra, a água, o ar e o fogo (a energia).
Foi neste o espaço privilegiado, vivenciado em isolamento, que as emoções se revelaram. Foi neste o tempo assolado pelo silêncio que os pensamentos e o entendimento se transformaram em conhecimento. E foi, sobretudo, no apelo à memória que esta Lavra, para além de congelar no tempo uma experiência estética, testemunha quão frágil é o nosso momentum.
LAVRA é um ensaio de comunhão com a Natureza, “ad infinitum” …
*David Carvalho (avô)