Êxtase de Santa Teresa

Êxtase de Santa Teresa de Gian Lorenzo Bernini, 1647–1652

Igreja de Santa Maria della Vittoria

Roma, 2023

fotografia: © Luís Carvalho Barreira

À descoberta do pathos na obra de Bernini.

 

Gian Lorenzo Bernini teve uma longa e profícua vida artística. Existem várias obras que marcam a genialidade do artista. E uma delas tem origem numa encomenda do Cardeal Cornaro: uma capela dedicada a Santa Teresa d’Ávila, na Igreja de Santa Maria dela Vittoria, espaço escolhido para a última morada da sua família. Bernini ainda não se tinha restabelecido do humilhante desaire; após uma das duas torres sineiras projectadas para a fachada da Basílica de São Pedro ter ameaçado ruir e por consequência mandada demolir. Ferido no orgulho, vexado por ter sido o seu arqui-rival, Borromini, a atestar a sua incompetência como arquitecto, era agora um homem com a alma dilacerada. Perdera a bonomia do Papa (Inocêncio X) e deixara de ter as encomendas ambicionadas. O outrora il cavaliere que era bajulado por toda a Roma, sublimou o revés do projecto arquitectónico com o pathos colérico, quando mandou desfigurar a cara da sua amante (Costanza Bonarelli) por partilhar o leito, com o seu irmão Luigi. Conhecedor dos limiares da paixão e do amor carnal, reviu-se nos poemas místicos de Santa Teresa e no empreendimento solicitado pelo Cardeal Cornado. O brio do artista levá-lo-á a realizar uma das mais belas obras escultóricas do Barroco: o “êxtase de Santa Teresa”. É uma obra onde o espaço cénico dá lugar à melhor síntese da arquitectura barroca: duas colunas coríntias de cada lado do altar são acompanhadas à sua ilharga por pilastras da mesma ordem que sustentam um frontão, em arco quebrado, abrindo o espaço à claraboia onde a luz “congela” o preciso momento da Transverberação[1] de Santa Teresa. Todo a capela foi concebida como obra total. A decoração excessiva, com ornamentos vegetais, com putis e querubins, aliada à utilização de mármores de várias cores reforçam o desenho da capela explicando o sentido da arte barroca assente na teatralidade e sedução dos sentidos. É neste palco que o dramatismo do acontecimento nos é sugerida. É neste local que presenciamos a capacidade de uma obra de arte de evocar emoções intensas, empatia e identificação no observador fruidor. O "Êxtase de Santa Teresa" de Bernini é uma obra que busca provocar uma resposta emocional intensa no espectador, evocando empatia e identificação com a experiência mística de Santa Teresa. Bernini coloca toda a atenção nos detalhes. Os espectadores ordenados em dois balcões (membros da família Cornado) que ladeiam o proscénio, onde a acção se desenrola, trocam olhares como quem sussurra inconfidências, fazendo com que a nossa participação voyeurista seja pró-activa. O nosso tento deambula, numa primeira leitura, pela a envolvência arquitectónica da capela, para terminar no momento da levitação de Santa Teresa. É a arte da sedução exaltada num preciso momento. O espectador é preso ao desenrolar do acontecimento; o crente é aprisionado pela intensa espiritualidade. O legado testemunho poético da beata Teresinha d´Ávila é de uma paixão tão intensa que as palavras – segundo ela – teimam a não acompanhar os sentidos vividos. É um amor indizível. Bernini atento e conhecedor de amores terrenos retrata o momento em que a mística espanhola, Santa Teresa, experimenta a transverberação do amor divino. Bernini encontrou no “médium” poético de Santa Teresa, para expressar a paixão por Deus, a palavra do escopro que o levaria a materializar valores terrenos. O triunfo da arte. Bernini retira do tosco bloco de mármore branco de Carrara as formas, esculpindo cada palavra em gestos, talhando cada detalhe a exaltação vivida. Bernini trabalhou com grande minúcia na representação da carne, das roupas e dos elementos circundantes. Isso contribui para a sensação de maior realismo e intensifica a resposta emocional do espectador à cena. A composição ganha dramatismo quando o Serafim segura uma seta (ardente) de ouro em riste pronto a desferir aquela seta eleita / ervada em sulcos de amor[2]. Transforma o hábito da beata num revolto movimento deixando a descoberto um pé singelo. Teresa levita revelando os detalhes anatómicos que a aproximam de um realismo fisiológico e psicológico. A expressão facial de Santa Teresa capta o momento em que está imersa em êxtase, de olhos revirados e com a boca entreaberta, em pasmos de prazer: Me atingiu com sua seta, / Nos meigos braços do Amor / Minh'alma aninhou-se quieta[3]. O seu rosto reflecte uma expressão de arrebatamento corporal, transmitindo a intensidade da sua experiência mística. Essa revelação facial evoca empatia e identificação no observador, partilhando a comoção de santa Teresa. Por último, a iluminação vinda da claraboia acentua os contrastes e a sensação de movimento na obra aumentam o pathos, enfatizando a conexão espiritual profunda e emocional entre a paixão terrena e o amor divino. Bernini não se desvia do seu programa artístico, segue as determinações Tridentinas que exalta para uma arte religiosa inteligível e realista, e servir acima de tudo, como estímulo emocional à religiosidade. Estamos, seguramente, perante uma obra onde o pathos evoca emoções intensas, empatia e identificação no presente censor. Uma obra onde a paixão é vivenciada por todos aqueles que exaltam os sentidos e vivida segundo as suas certezas.

 

Dilectus meus mihi

(meu amado é para mim)

 

Entreguei-me toda e assim

Os corações se hão trocado

Meu Amado é para mim,

E eu sou para o meu Amado.

 

Me atingiu com sua seta,

Nos meigos braços do Amor

Minh'alma aninhou-se quieta.

E a vida em outra, seleta,

Totalmente se há trocado:

Meu amado é para mim,

E eu sou para meu Amado.

 

Era aquela seta eleita

Ervada em sulcos de amor,

E minha alma ficou feita

Uma com o seu Criador.

Já não quero eu outro amor,

Que a Deus me tenho entregado:

Meu Amado é para mim,

E eu sou para meu Amado.

 


 

[1] Fenómeno místico: de almas atingidas por setas incandescentes arremessadas por Serafins aos amantes de Cristo.

[2] Sobre Aquelas Palavras: Dilectus meus Mihi, PIII

[3] Sobre Aquelas Palavras: Dilectus meus Mihi, PIII

Bernini: sob o signo do pathos

Costanza Bonarelli [*], 1638-9. Museo Nazionale del Bargello, Florença

Há certas obras de arte que nos fazem estremecer. A arte tem esta capacidade de nos transformar, e quando isso acontece exaltamos o génio artístico. O génio é a nossa capacidade de espanto com as coisas e com os objectos que nos surpreende. Admiramos a busca incessante pela perfeição, a constante inquietação artística consagrada em cada trabalho apresentado. E é neste palco, neste espaço exuberante, que a arte Barroca se move apresentando-nos uma nova narrativa, congelando o momento, sublinhando os altos contrastes, sublimado o erotismo dos corpos, seduzindo os nossos sentidos através do Pathos (a paixão, o afeto, o excesso, até mesmo a dor e ou o sofrimento) pelo qual podemos experienciar. Perscrutamos em cada cinzelada a paixão dedicada; observamos em cada pincelada o sentimento denunciado; sublimamos nas notas musicais a harmonia sugerida; remimos as nossas culpas no detalhe demonstrado. E é neste enquadramento em particular que a obra de Gian Lorenzo Bernini se move. Uma arte centrada na estética clássica e no poder do erotismo, cujas obras mais significativas são o melhor exemplo: David, Apolo e Dafne, Rapto de Prosérpina [...] e num caso particular, que a torna única, o Êxtase de Santa Teresa. Mas há uma obra, um busto, que esconde uma paixão patológica entre Bernini e uma sedutora mulher com a qual manteve um relacionamento tórrido. Gian Lorenzo Bernini (Il Cavaliere, como era conhecido) tinha Roma a seus pés. O grande artista (escultor, arquitecto e pintor, entre outras artes) era um homem devoto, frequentador assíduo da igreja, circulava pelos corredores do Vaticano com a bonomia e a graça de todos Papas (que conheceu ao longo dos anos) e era também um assíduo frequentador dos palácios das famílias nobres. As encomendas abundavam e na sua oficina pululavam alguns dos melhores escultores assistentes. Absorto com tanto trabalho afirmava recorrentemente que não tinha tempo para pensar em casamento e os seus filhos eram as suas esculturas. Mas nem sempre foi assim.  Como muitos outros artistas, teve sua vida pessoal marcada por relações e emoções complexas. Uma das histórias mais conhecidas relacionadas com a vida amorosa de Bernini envolveu a paixão por Costanza Bonarelli, esposa de um de seus assistentes, Matteo Bonarelli. O busto de Costanza realizado por Bernini é único, porque não resulta de uma encomenda particular. É uma obra privada que o artista pretendeu imortalizar a paixão experimentada. A falta de decoro de uma mulher casada testemunha o afeto que o escultor colocou nos pequenos detalhes. O rosto é marcado por expressões intensas e realizado com grande realismo técnico e psicológico. Assim, o busto além de evidenciar um penteado descuidado, sem estar escovado, tem a testa franzida que evidencia os enormes olhos, vivos, reveladores da tensão vivida. São espectadores e ao mesmo tempo deixam perscrutar a cumplicidade envolvida. É um retrato cujo erotismo presente é patenteado na camisa de dormir desabotoada e no elevado movimento sensual do decote, reforçado pelos lábios carnudos entreabertos, denunciando a forte ligação amorosa mantida pelos dois amantes. É um retrato físico e tempestuoso mantido em segredo, só interrompido pela descoberta de infidelidade de Costanza com o seu irmão, Luigi Bernini. Encolerizado com a traição levou Gian Lorenzo Bernini a um ato tresloucado: Il Cavaliere quase matou o seu irmão e mandou desfigurar a sua amante. Mas o que é que pode justificar tal atitude? Nada, diremos muitos de nós. Costanza, condenada por adultério e fornicação foi obrigada a recolher-se numa ordem religiosa[1]; Luigi foi exilado em Bolonha; enquanto Bernini admoestado pelo Papa Urbano VIII foi obrigado a pagar uma multa e a casar com Caterina Tezio[2]. Foi um período conturbado vivido por Bernini que coincidiu com o maior desaire da sua vida profissional. O Papa Urbano VIII tinha encomendado ao escultor uma nova fachada da Basílica de São Pedro, que o escultor desenhou. Duas torres sineiras de proporções monumentais e, em última análise, desastrosas: uma das torres sineiras cedeu e temia-se ameaçar a integridade estrutural da fachada do edifício. O vexame foi devastador porque foi o seu arqui-rival, arquitecto Borromini, que denunciou através do estudo das evidencias estruturais e da impossibilidade construtiva da ambiciosa obra de Bernini. Foram demolidas. Com a morte do papa Urbano VIIII, em 1644, e a eleição de Inocêncio X, Bernini perdeu o seu lugar privilegiado no Vaticano para seu rival Borromini.

Em 1647, os ventos sopram de feição, Bernini recebeu uma encomenda do Cardeal Federico Cornaro para uma capela funerária, para a sua família, na Igreja Santa Maria dela Vittoria dedicada a Santa Teresa D’Ávila (carmelitas descalças) seguindo as determinações Tridentinas que a arte religiosa deveria ser inteligível e realista, e servir acima de tudo, como estímulo emocional à religiosidade. Bernini dominava todas artes e depois de ler os poemas místicos de Santa Teresa d’Ávila revelou, em obra escultórica, ter experienciado todo aquele sentimento na sua vida terrena com Costanza...

Êxtase de Santa Teresa de Bernini

Igreja Santa Maria dela Vittoria

Roma

©Luís Barreira, Roma, 2023

A escultura resultante, “O Êxtase de Santa Teresa”, inserida na arquitectura da capela, é reconhecida por muitos críticos de arte como talvez a conquista suprema do poder do erotismo na escultura religiosa do século XVII. 


[1] Domus Pia de Urbe (Mosteiro de Casa Pia)

[2] Mormando, Franco. Domenico Bernini: The Life of Gian Lorenzo Bernini: A Translation and Critical Edition, 2011.

[*]  Costanza Bonarelli foi uma nobre, comerciante e negociante de arte italiana, descendente de uma família nobre de Siena. Ela é conhecida por ser retratada pelo artista Gian Lorenzo Bernini no busto agora exibido no Museu Nacional de Bargello em Florença, criado entre 1636 e 1639.

Lou Andreas-Salomé

Lou Andreas-Salomé, Paul Rée e Friedrich Nietzsche


Ouse, ouse... ouse tudo!!

Não tenha necessidade de nada!

Não tente adequar sua vida a modelos,

nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.

Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.

Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la!

Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.

Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso:

algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!


Uma mulher livre, um homem romântico e o “anticristo”. Poderia ser a sinopse de um filme[1] ou de um romance, mas não é. É uma fotografia icónica, registada por Jules Bonnet, em Lucerna de uma mulher chamada Lou Andreas-Salomé (à esquerda); de Paul Rée (ao centro) e de Friedrich Nietzsche (do lado direito). Uma tríada de grandes vultos da cultura europeia do final do século XIX. Não deixa de ser irónico que Lou Salomé, famosa pela sua beleza e de notável inteligência, apareça nesta encenação fotográfica a desempenhar um papel cruel, de flageladora, perante os seus amigos. Lou Salomé tinha 22 anos quando foi a um estúdio fotográfico, na companhia dos seus “obedientes” amantes[2], fazendo-se retratar em cima de uma carroça, brandindo o látego. O gesto poderia indiciar, numa rápida interpretação, uma simples brincadeira. Mas o que esta fotografia revela não é zombaria, é uma imagem que descobre o poder de uma mulher capaz de influenciar espíritos brilhantes. Ela dirige, conduz mentes apaixonadas à semelhança do idílico cenário que lhe dá suporte em forma de trompe-l’oeil. É tudo uma encenação romântica, uma confidência de amor e os seus mistérios. Uma carroça, puxada por dois ilustres filósofos, serve de metáfora entre a exaltação apolínea e a força dionisíaca do pensamento. Quem conduz quem, e quem é conduzido por quem!? Os dois homens deixam-se conduzir pela sugestiva proposta apresentada por Lou Salomé: uma viagem, uma vida partilhada em comum – winterplan -, pelos grandes centros europeus divulgando o conhecimento gerado pela tríada formada. É um “Hino à Vida[3]” que Lou haveria de materializa-lo em poema e Nietzsche compôs a música (tendo sido esta a única partitura que publicou em vida).

 

Hymn to Life / Hino à Vida

Surely, a friend loves a friend the way
That I love you, enigmatic life —
Whether I rejoiced or wept with you,
Whether you gave me joy or pain.

I love you with all your harms;
And if you must destroy me,
I wrest myself from your arms,
As a friend tears himself away from a friend’s breast.

I embrace you with all my strength!
Let all your flames ignite me,
Let me in the ardor of the struggle
Probe your enigma ever deeper.

To live and think millennia!
Enclose me now in both your arms:
If you have no more joy to give me —
Well then—there still remains your pain.

 

Lebensgebet, Lou Andreas-Salomé

 

A fotografia podia servir para uma acção de marketing publicitário, mas o que ela revela, nos tons que teimam desvanecer, é um documentado compromisso entre os três amigos. É um pacto estabelecido entre eles a nível intelectual que foi profícuo, exercendo uma influência na filosofia, na história da cultura europeia, com repercussões, até, na arte moderna. Desde muito jovem que Lou Salomé, sedenta de independência e impaciente por viver, manifesta interesse em aprofundar o estudo em teologia, filosofia e literatura (francesa e alemã). Após a desolação com a morte do pai, a sua descrença em Deus, levá-la-á a recorrer a Hendrik Gillot, um pregador conhecido pelas suas ideias subversivas, para a ajudar a restabelecer a sua fé em Deus. Lou Salomé vai estudar teologia, filosofia e literatura (francesa e alemã) ministrada pelo Hendrik Gillot, por quem se apaixonou. Aliás, a paixão foi mútua. A intrepidez, a inteligência e a sede de aprender de Lou atraíram Gillot e, pouco tempo passado, pediu-a em casamento. Pedido fracassado; recusado por Lou. O fascínio pelo mestre gorou-se quando ele pretendeu ocupar o espaço conferido pelo casamento: para Lou, no seu universo, não havia lugar para o desejo, nem para o sexo em exclusividade. Lou Salomé desde muito cedo sonhava com uma sociedade liberta de falsas moralidades lutando incansavelmente contra os seus dogmas incluindo as amarras da religião. Defendia ousadamente os direitos das mulheres, assim como a importância da sua participação na sociedade. Em suma, era uma mente crítica que a guiava numa atitude de descrença na sociedade e, em particular, na religião. E ficava fascinada quando conhecia alguém, irreverente nas afirmações, firme nas convicções, sobretudo, com aquilo que ela gostaria de auscultar. Se as esperanças de pacificação com a religião e com Deus foi, inicialmente, um dos seus propósitos,  desapareceram quando, em 1880, Salomé, doente, na companhia de sua mãe, se mudaram para Zurique, na Suíça (um dos raros países tolerantes que aceitava mulheres nos cursos superiores) afim de ingressar na universidade e restabelecer a sua saúde física. A sua estada em Zurique durou dois anos e em 1882, tinha Lou 21 anos, foram para Roma onde conheceu Paul Rée e Friedrich Nietzsche. Um feliz encontro, uma comunhão intelectual em perfeita sintonia. Um triangulo amoroso estabelecido, uma vida intelectual partilhada que durou ao longo de três anos. Qualidades de referência verificáveis, certamente, por eles, em Lou como modelo cujo o brilho intelectual e a audácia os fascinavam. Afinidades intelectuais que uniram estes três amigos, atributos sempre presentes no pensamento nietzschiano. Durante este período, Lou terá exercido uma influência fundamental na obra de Nietzsche, reconhecida pelo filósofo no livro, Assim falava Zaratustra[4]. Mais tarde, num dos últimos livros de Nietzsche, Ecce Homo, escrito como se fosse as mnemografias da sua obra e da sua vida, dedicado a Lou Andreas-Salomé, chegou a afirmar ser “de longe, a pessoa mais brilhante que conheceu”. Mas quem é esta mulher? Será [ela] o Super-homem que Nietzsche se refere; o Homem hiperbóreo, aquele que se eleva mais alto e se supera a si mesmo? Uma espécie de alter-ego do seu pensamento? Há um nítido acatamento observável na fotografia de Jules Bonnet e não é somente estética: os homens que ocupam o lugar dos jumentos aparecem apoucados pela paixão brandida por Lou Salomé. É nessa exaltação que, segundo Nietzsche, reside a força vital impulsionadora, da acção, da criatividade e da busca pela excelência. Os dois homens baqueiam quando se aproximam de Lou. O coração [de Nietzsche] foi fraco, o espírito sucumbiu ao pedi-la em casamento: foi-lhe negado[5]. Não foi o primeiro, não será o último a ouvir as palavras que lhes dilaceraram a alma[6]. O homem hiperbóreo rende-se à mulher fatal. O amor fati de Nietzsche transforma-se em decepção e amargura. Torna-se mais taciturno. Entrega-se à embriaguez do ópio, o único que o salva dessa dor lancinante, ao ponto de pensar em suicídio. Refugia-se no locus horrendus das montanhas de Sils-Maria (Suíça) que ele tanto amava, exaltando-as: a filosofia é viver nas altas montanhas. É junto ao Lago Sils que, depois de amadurecida a experiência vivida, tem a revelação de Zaratustra[7], uma obra profética que ele virá a negar, esse estatuto de idolatria, em Ecce Homo. Porém, a ligação intelectual entre Lou e Nietzsche manteve-se até ao fim da vida. Paixões desavindas[8]; Nietzsche afasta-se de Paul Rée[9] que continua na vida de Lou. Uma lufada de amor fresco na vida do jogador compulsivo que foi Paul Rée, agora encontrando em Lou Salomé o seu porto de abrigo, não só de ternura e atenção redobrada, como de apaziguamento necessário à voracidade da sociedade que alimentava as histórias de escândalos da vida privada[10]. Em 1887, Lou Salomé casa-se com Friedrich Carl Andreas, um insigne orientalista. Um casamento duradouro, aberto, permitindo a Lou outros relacionamentos. Todavia, em 1897, Lou Andreas-Salomé conheceu (René) Rainer Maria Rilke, poeta e novelista, (talvez o mais amado?) com o qual manteve um amor poético, onde Lou, fascinada pela virilidade suavizada pela doçura, partilha a nível intelectual e emocional, em correspondência privada.

 

Nunca te vi, que não tivesse o desejo de te rezar. Nunca te ouvi, que não tivesse o desejo de acreditar em ti. Nunca te esperei, sem o desejo de sofrer por ti. Nunca te desejei, sem ter também o direito de me ajoelhar à tua frente. Sou para ti como o bastão para o caminhante, mas sem te apoiar. Sou para ti como o cetro é para o rei, mas sem te enriquecer. Sou para ti como a última pequena estrela é para a noite, ainda que a noite mal a distinguisse e ignorasse a sua cintilação. [11]” René

 

O homem romântico da fotografia, Paul Rée, encontra-se destroçado, irá dedicar-se a um trabalho altruísta na comunidade onde habita e, no local onde Lou Salomé lhe negou o último pedido de casamento, escorregou caindo pelo penhasco vindo a morrer (28 de Outubro de 1901). Rée havia declarado, não muito antes de sua morte, “Eu tenho que filosofar. Quando fico sem material sobre o qual filosofar, é melhor eu morrer[12]. Apesar de sua oposição ao casamento e de seus relacionamentos abertos com outros homens, Salomé e Andreas permaneceram casados de 1887 até sua morte em 1930. Depois destes atropelos na vida de Lou entregou-se à psicanálise o que levaria a um relacionamento intenso com Sigmund Freud. Após a morte de Friedrich Carl Andreas, em 1930, Salomé dedicou o resto da sua vida a promover o legado intelectual de Nietzsche e Freud. A brilhante ensaísta[13], autora de Die Erotik, foi a mulher que encantou a elite intelectual europeia. Na figura de Lou confundem-se, muita das vezes, a personagem histórica e a lenda. Lou era, sobretudo, uma sapiossexual e o seu erotismo estabelecia-se ao nível da maiêutica intelectual. O amor e a paixão foram, por vezes, atropelos na vida de Lou Salomé, cuja ousadia, propagada nas suas acções, levá-la-á a afirmar [nas suas Memórias] que para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento, cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. (...) O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser: é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe[14].

O brilhante registo fotográfico, que nos propusemos analisar, sintetiza em termos formais o triângulo amoroso, o pathos vivido por Lou Andreas-Salomé. Não seriam estes os únicos amores da sua vida, muitos outros se cruzaram na sua vida e com os quais Lou reafirmou, sempre, o seu espírito livre: “Sempre serei fiel às lembranças. Nunca o serei aos homens”.

 

 

Texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira

 

 


NOTAS:

[1] Há um filme sobre a vida de LOU Andreas-Salomé: a audácia de ser livre, de Cordula Kablitz-Post.

[2] Lou Salomé, Paul Rée e Friedrich Nietzsche viveram juntos desde 1882 a 1885.

[3] A composição (musical) Hino à Vida foi parcialmente feita por Nietzsche em agosto e setembro de 1882, apoiada pela segunda estrofe do poema Lebensgebet de Lou Andreas-Salomé”. in wikipedia

[4]  Notas sobre o Zaratustra de Nietzsche. Por André Vinícius Pessôa. Revista Garrafa v. 5, n. 14 (2007)

[5] O fim da relação de Nietzsche com Salomé foi expresso por ele, em dezembro de 1882, em carta dirigida a Overbeck, seu editor: “Minha relação com Lou está nos últimos e mais dolorosos momentos. Pelo menos assim o creio hoje. Mais tarde – se houver um mais tarde – quero dizer uma palavra a respeito. Compaixão, meu caro amigo, é uma espécie de inferno, digam o que quiserem os adeptos de Schopenhauer.”

[6] Lou Salomé, nas suas Memórias, deixou transparecer, fugiu de Gillot, que lhe surgia como um obstáculo à sua liberdade, exactamente como fugirá, mais tarde, de outras relações com Paul Rée, Nietzsche e Rilke, quando a pediram em casamento.

[7] Prideaux, Sue, Eu sou Dinamite!, A vida de Friedrich Nietzsche, Círculo de Leitores, 2018.

[8] https://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_Rée

[9] Uma carta de Rée, de novembro de 1897, sobre sua relação com Nietzsche, contém as seguintes frases condenatórias: “Nunca pude Lê-lo. Ele é rico em espírito e pobre em ideias”. “Todos fazem tudo por vaidade, mas a vaidade dele é patológica, irritantemente doentia. Ela o levou a produzir, quando são, grandes obras, de modo normal, já enquanto doente, podendo pensar e escrever com rara frequência, e temendo sobretudo não voltar a fazê-lo nunca mais, a todo custo queria conquistar a fama; Sua vaidade doentia produziu algo doentio, muitas vezes brilhante e belo, mas essencialmente deformado, patológico e demente; não um filosofar, mas sim um delirar!” in wikipedia 

[10] Histórias que remeteram Lou para um silêncio do qual não voltou a sair. (Mesmo quando Freud, muitos anos mais tarde, a instar a falar sobre o assunto, ela recusa). Respondeu sempre com um muro de silêncio que não a beneficiava, uma vez que não contribuía para clarificar a situação.

[11] Correspondência Amorosa, Rainer Maria Rilke e Lou Andreas-Salomé. Tradução Manuel Alberto, Relógio D’ Água Editores, 1994, Lisboa.

[12] Safranski 2002, p. 183.

[13] Ela foi uma das primeiras psicanalistas e uma das primeiras mulheres a escrever psicanaliticamente sobre a sexualidade feminina. Durante sua vida, ela escreveu muitos romances, peças de teatro e ensaios, incluindo “Hymn to Life”. A biografia escrita por Stéphane Michaud procura esclarecer os contornos que constituíram a personalidade controversa desta mulher que foi romancista, poeta, ensaísta, psicanalista e uma pioneira do modernismo europeu.

[14] Lou Andreas-Salomé

Há uma Beatriz de Dante... e outra depois

Giovanni di Paolo

Beatriz conduz Dante à porta do céu diante S. Pedro

Ilustração da Divina Comédia (45)

c.1440

créditos: wikimedia

Há coisas que recusamos memorizar. Creio que há um pacto entre a alma e a memória rejeitando liminarmente tudo aquilo que nos perturbe a atenção. O acordo que eu vos falo é a da minha dificuldade em memorizar nomes de pessoas, sobretudo, quando eles se transformaram simplesmente em memória sensorial. Posso descrevê-los a todos pelo seu aspecto físico, pela forma como se relacionam, pela maneira como interagem comigo e ou em grupo. Treino a memória visual. Promovo os sentidos como meio a sublinhar algo do interesse particular. Porém, não me peçam para dizer os seus nomes. Haverá sempre aqueles nomes de pessoas que estão muitas das vezes associados a imagens que emergem pela sua diferenciação. Ao longo do ano lectivo fui diversas vezes interpolado, testado, por uma aluna: -professor, já sabe o meu nome? Incomodado, sempre, com a pergunta, procurei desviar a atenção para outros assuntos que me pudessem justificar, digo, salvar. Socorria-me da “ironia como a expressão mais perfeita do pensamento” – citando Florbela Espanca. A situação repetiu-se por diversas vezes. Necessitava de uma mnemónica para decorar o seu nome. Ela era uma aluna responsável, aplicada, merecedora de melhor atenção. Não faço o culto da imagem, mas sempre que lhe dirigi a palavra aqueles olhos brilhantes pareciam reflectir toda a tensão verificada no seu rosto rosado. O corpo agitava-se dentro de um vestido branco vertido naquela fisionomia adolescente, bem disfarçado por um casaco (masculino), fazendo crer ter atingido a idade madura. Recordo os seus chinelos, com uma banda branca, que lhe escapavam dos pés ávidos de conhecer mundo. Por vezes desalinhados, indiciando [pormenores] algum nervosismo colocando a descoberto o verniz que lhe cobria as unhas dos pés de um vermelho amaranto descuidado. Os seus cabelos lisos presos, quase sempre, por um gancho, deixavam antever a vontade de abarcar todo o conhecimento. De vez enquanto soltava-os deixando cobrir o rosto, para logo de seguida voltar a prendê-los. Um gesto repetido e executado com alguma descrição. Fazia-o com a maior da naturalidade sem a carga erótica associada (por nós, os adultos) a tal movimento. Já havíamos falado sobre a importância iconográfica e do valor iconológico dos longos cabelos na arte: porque é que Maria Madalena é representada com longos cabelos, assim como o Nascimento de Vénus de Botticelli? A resposta a esta ou a outra pergunta era-lhe de fácil explicação. Ela era brilhante. Arrependo-me ter tirado o lado mais genuíno de uma adolescente agora formatada pela educação recebida. Creio, não, tenho a certeza, que ela não deu a importância à insignificante atitude. O nervosismo do seu balançar guarda as palavras que nunca ousou dizer. Observo atentamente o movimento entrópico dos seus apontamentos retirados na aula. São gatafunhos que percorrem a folha por ordem arbitrária limitadas por formas circulares que só ela consegue por ordem ao caos gestual e gráfico. Ela não escondia a ansiedade em conhecer mundo, tinha pressa de o viver. Era uma jovem, adolescente, que derramava alegria, com uma jovialidade contagiante. Amiga do seu amigo sem precisar de o alardear. Era, sobretudo, um ser bem formado assentes em valores humanistas que me apraz registar. Nunca lhe fiz sentir a admiração pelos valores mencionados. O gelo do desprendimento fingido, manifestado por mim com alguma eficácia, ocultava uma certa afeição. Juro conhecer todos os seus trejeitos e reconhecer todas as palavras afirmadas. A incógnita aluna passou a ter nome pronta a ser resgatado à minha memória. Sei-o [agora] porque está associado à Divina Comédia de Dante Alighieri e à importância da obra no humanismo renascentista. Há algum ruído visual na evocação do classicismo versus humanismo na Divina Comédia e do amor platónico protagonizado pela pureza de Beatriz. Tenho alguma dificuldade em compartimentar o ser humano quanto à sua natureza. Não tenho dúvidas em afirmar que a paixão (eros/pathos) é o corpo criativo de toda a arte. A Divina Comédia é um poema épico e teológico dividido em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Dante porá ênfase na beleza das ideias (no amor platónico, muito ao jeito da Sumula Teológica de São Tomás de Aquino) escolhendo Beatriz a conduzi-lo ao Paraíso. Sublinho a importância da imagem na memória. Recorro metaforicamente ao encontro de Beatriz e Dante que se conhecem fugazmente numa festa “Calendimaggio” em Florença. Segundo Dante, relatado em Vita Nuova, tinham 9 e 10 anos de idade e nunca esqueceu o vestido “vermelho sangue” que Beatriz usava[1]. Quanto à intrépida aluna chamava-se Beatriz, que eu nunca vou esquecer. Não esqueço porque somos um somatório de memórias e só algumas permanecem no nosso ideário imagético. São aquelas que dão sentido à vida. São, sobretudo, algumas pessoas que nos fazem sonhar, a qualquer professor, por momentos assim.

 

 

P.S. Quando forem a Florença não deixem de visitar a Chiesa di Santa Margherita (também conhecida por Chiesa di Dante) e numa alcofa ao lado da pedra tumular de Beatriz Portinari deixem uma carta de amor.

Pedra tumular de Beatriz Portinari na Igreja de Santa Margherita dei Cerchi, em Florença

Fotografia actualizada em 13.04.2024 © Luís Carvalho Barreira

 

Este texto é uma ficção e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, 2023 © Luís Carvalho Barreira

 

 

A natureza é a arte de Deus”. Dante Alighieri


[1] Mais tarde, haveriam de se encontrar numa situação bastante diferente, Beatriz, com 17 anos, era agora casada com Simone de’ Bardi. Aos 24 anos Beatriz morre (durante o parto?) e Dante demorará 6 anos até encontrar Gemma Donati, com quem teve 4 filhos. A obra A Divina Comédia foi escrita já Beatriz tinha morrido.

DAVID - miserere mei, Dei

"Livro dos Salmos, 51

1.      Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; apaga as minhas transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias.

2.      Lava-me completamente da minha iniquidade, e purifica-me do meu pecado.

3.      Porque eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim.

David de Bernini, 1624

Galleria Borghese, Roma

2023

Foto: Luís Carvalho Barreira

Ao longo da História inúmeras representações de David foram feitas e quase todas elas apresenta-nos David como herói saído do confronto contra Golias. Os dois representam a luta entre os Filisteus e Israelitas em que o gigante Golias desafia o mais temerário judeu a lutar contra ele, num confronto directo. O jovem pastor David oferceu-se, deu um passo em frente, e de um simples golpe arremessou um calhau rolado, desferido por uma funda, ferindo Golias (segundo a Bíblia, 1 Samuel 17:40). De seguida, David aproximou-se de Golias, atordoado, e com a espada desferiu-lhe um golpe mortal cortando-lhe a cabeça (1 Samuel 17:51). Nascia a lenda, rompia o herói escolhido dos judeus. É esta a história bíblica (Antigo Testamento), que os iluministas do século XVIII, tanto escarnaram, tentando enquadra-la como mito religioso. Se para estes racionalistas do século XVII e XVIII a igreja foi objecto de crítica e de luta, foi com redobrada atenção que o classicismo da arte Renascentista e Barroca era admirado (contribuído para o movimento neoclássico que se adivinhava). Na História da Arte o combate de David e Golias é responsável pelas incontáveis representações, sendo uma das histórias mais identificáveis na tradição judaico-cristã. Mas quem é este David? Quem é este homem que ao longo de dois séculos (período em análise) nos é apresentado (não só em forma escultórica, como pictórica) de formas diferentes?

David por: Donatello (1408 e 1440) | Verrocchio (1475) | Michelangelo (1504) | Bernini (1624)

No início do século XV, Donatello irá esculpir dois David: um em 1408, destinado à Catedral de Florença, já ao gosto renascentista clássico (rigor anatómico, proporção, harmonia) com a cabeça feminizada coroada de amaranto[1], um manto entrelaçado ao pescoço e um outro arrebanhado à cintura deixa a descoberto quase toda a perna esquerda. A erotização desta escultura só é comparável com uma outra, realizada em 1440 pelo mesmo escultor. Uma figura de carácter andrógina, de corpo frágil, numa pose naturalista[2], um corpo que suporta um chapéu com folhas de louro (símbolo dos vencedores) cobrindo a cabeça com um penteado enrolado em cachos (Peiot: cabelos laterais em forma de caracóis dos judeus ortodoxos). Ele pisa a cabeça de Golias, homem de grandes barbas e de elmo ainda posto [interpretação do artista duvidosa], enquanto que com a mão esquerda sustém uma pedra, na outra mão, a direita, o jovem David empunha uma espada reforçando o sentido do acto consumado.  

Verrochio, em 1475, apresenta-nos um David diferente: um homem, jovem, comum. Seguindo os mesmos preceitos clássicos. Porém, os detalhes iconográficos não reforçam a valentia de David apesar da cabeça de Golias permanecer degolada a seus pés. É um jovem pastor de cabisbaixo, empunhando simplesmente a espada na mão direita, enquanto que a outra mão repousa na anca, numa pose pouco convincente, em que o corpo é coberto por uma espécie de armadura em couro, seguramente numa tentativa de lhe conferir alguma valentia a esta personagem bíblica. É um David titubeante.  

Em 1504, Michelangelo, irá dar-nos a sua visão de David[3]. É uma escultura em mármore, arrebatadora, de maior escala e proporção, que acabou por ocupar uma praça (Palazzo Vecchio) em Florença. É um gigante. Se as anteriores representações nos mostram a valentia consumada de um pastor, aqui o David de Michelangelo é representado como herói concentrado na tarefa destinada. Ele tem o olhar tenso e fixo segurando um calhau rolado com a mão ao longo do corpo e com a outra agarra a funda que cai ao longo das costas. O naturalismo clássico é reforçado, quer pelo realismo anatómico, quer psicológico de David. Sentimos isso no olhar desviante; na testa e nas sobrancelhas arrebatadas; no olhar fixo e determinado; na tensão do pescoço; nas veias que sobressaem ao logo do braço, principalmente no braço e na mão direita. É um David sedutor balanceado entre o “corpo apolíneo” e o corpo escultórico verificado na modelagem de toda a anatomia, com especial detalhe no peito e no abdómen. É uma silhueta elegante, formada pelo movimento dos braços e das pernas, orientado por linhas paralelas indo ao encontro do renascer do nu clássico: com os quadris e os ombros em ângulos opostos faz com que o contrapposto[4] enfatize a direcção da cabeça e do seu olhar. Michelangelo apresenta-nos não só uma nova realidade estética, como um herói clássico. É um Nu clássico e de heroicidade grega à semelhança de Hércules indo ao encontro dos encomendadores (os poderosos Operai[5] da Guilda Arte della Lana) em oposição ao despotismo da família Médicis[6]. É, sobretudo, a preparação de um confronto decisivo, de um acto justo sem precisar do seu algoz.

Em 1624, Gian Lorenzo Bernini destaca o acto heroico de David realçando as qualidades físicas do jovem personagem bíblico: o jovem está nu, como uma estátua clássica, coberto apenas por um pano esvoaçante ao redor dos quadris. Em baixo pode-se ver o peitoral do rei Saul[7] e a cítara decorada com uma cabeça de águia[8]. É uma escultura em mármore em tamanho natural. Com o tronco torcido, de pernas abertas, dando-lhe estabilidade, é acompanhado pelo movimento oposto dos braços que seguram em tensão a funda armada, com uma pedra, concentrando toda a energia e força para arremessar o movimento fatal. Toda a energia se estabelece no sentido vertical de baixo para cima em forma espiral. Sentimos todos as forças a trabalhar até aos músculos faciais: sobrolho franzido, olhar concentrado, lábio inferior mordido transmite-nos toda a emoção do acto. Entre a brutalidade das consequências do gesto e a sublimação do corpo, Bernini não nos apresenta o Herói, mas sim o momento congelado, o instante histórico que antecede a morte de Golias. David de Bernini é uma escultura complexa que enfatiza o florescente movimento barroco do início do século XVII.

Mas, afinal, quem é este jovem herói sedutor?

Comecei este ensaio por citar as palavras misericordiosas de um Rei arrependido pelos seus pecados escandalosos [sedução, adultério e assassinato do marido de Bathsheba]: Uriah. Bathsheba que acabaria por casar com o Rei David. Estamos a falar do mesmo David, o herói que degolou Golias, o escolhido por Deus para conduzir os judeus: o Rei David. O rei que haveria de se penitenciar: miserere mei, Dei [Tende misericórdia de mim, Senhor] (salmo 51).

 Terminamos com música: uma versão musicada a cappella do salmo 51, miserere mei, Dei, feita pelo compositor italiano Gregorio Allegri, durante o papado de Urbano VIII (Maffeo Barberini), que era cantado na quarta e na sexta-feira santa.

 

 

Texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira





[1] O amaranto é reconhecido, desde há 5000 anos, pelas suas propriedades: é rico em potássio e o consumo de amaranto favorece a recuperação muscular.

[2] O Naturalismo clássico refere-se a um estilo realista enquanto ideal de beleza (Nu). O Naturalismo, Movimento, é um estilo realista que envolve a representação da natureza (incluindo as pessoas) com menor distorção possível.

[3] David estava destinado a decorar uma das fachadas de Santa Maria del Fiore. No entanto, após sua conclusão, a escultura foi posicionada em frente ao Palazzo della Signoria, sede do Governador de Florença, onde foi revelada ao público oficialmente em 8 de setembro de 1504. in wikipedia

[4] O contrapposto clássico é um termo utilizado em escultura para assinalar uma forma de representação humana que busca a naturalidade, em contraposição às representações rígidas e artificiais presentes na escultura até então. Essa característica, inovação grega, é constituída pela distribuição harmônica e natural do peso da figura representada em pé, com uma perna flexionada e a outra sendo a principal sustentação desse peso. Assim, a figura adquire um caráter de movimento natural tanto de frente quanto de lado, necessitando também de uma base específica sobre a qual age.

[5] Membros das Guildas.

[6] Cosme de Médicis ganhou o governo da cidade em 1434. Os Médicis mantiveram o controle de Florença até 1494. João de Médicis (mais tarde Papa Leão X) reconquistou a república em 1512.

[7] “Saul foi o primeiro rei de Israel. O seu nome, em hebraico significa "pedido a Deus". Como líder do povo, Saul teve um bom início, mas a sua trajetória bastante complicada conduziu-o a perder a coroa. Ele desobedeceu a Deus, tendo uma conduta reprovável. Saul tinha inveja de David e tentou matá-lo inúmeras vezes. Por fim, Saul cometeu o suicídio”. (Bíblia, 1 Samuel 9)

[8] Este símbolo faz parte da família do Cardeal Scipione Caffarelli-Borghese (Encomendador da obra de Bernini). In Galleria Borghese

Escadaria dos Bórgias, Roma

Beco do Vilão (Alley Scellerato)

Gravura de 1850

créditos: wikipedia

Se fizer uma visita a Roma preste atenção aos calhaus da história e não tropece nas estórias das imagens.

Depois de ter visitado a Igreja de San Pietro in Vincoli dirija-se para a escadaria dos Bórgias e detenha-se por alguns momentos viajando na história e nas lendas deste lugar.

Reza a lenda-histórica que foi neste local que Lucius Tarquinius Superbus protagonizou uma das mais hediondas histórias passionais romanas. Lucius terá matado a mulher, o irmão, o sogro e casado com a cunhada tornando-se o último rei do período monárquico (a.C. 534-509). Os factos históricos confirmam que Servius Tullio (sexto Rei de Roma entre c.578 e 535 a.C.) tinha duas filhas chamadas Tullia: Tullia Major e Tullia Minor e casou-as com os filhos do seu predecessor[1](Lucius que casou com Tullia Major e Arruns com Tullia Minor[2]). Desta união familiar Tullia Minor (a mais nova) ambicionava ser rainha e para tal envolveu-se com o cunhado (Lucius) prometendo-lhe que casaria com ele depois de afastar os mais directos sucessores (o seu irmão, Arruns, a cunhada, Tullia Major e o sogro; o Rei Servius Tullio). Reza a lenda que Tullia Minor vendo o pai em agonia, espojado no solo, passou com o carro puxado por cavalos por cima do corpo inerte. Suas ações fizeram dela uma figura infame na cultura romana antiga. Não é por acaso que este lugar ficou conhecido pelo “O Beco do Vilão” (Alley Scellerato).

Esta rampa também é conhecida pela escadaria Bórgia e pelo túnel que atravessa o Palácio de Vannozza dei Cattanei, senhora de uma estalagem em Campo dei Fiori cuja principal função era de satisfazer favores sexuais dos seus frequentadores incluindo a do amante, Rodrigo Bórgia (Papa Alexandre VI) e pai dos seus quatro filhos. Do Palácio resta uma pequena varanda ao gosto de “loggia veneziana” que apesar de ser um simples apontamento arquitectónico não deixa de exercer a todos os transeuntes – conhecedores da história da cultura e das artes – momentos de recriação histórica e protagonistas por breves instantes.

Regressemos à Igreja de San Pietro in Vincoli, percorramos a escadaria dos Bórgias, deixemos o chão conspurcado de ambição, traição e sangue dos últimos momentos da monarquia romana. Deixemo-nos levar pela emoção pela luz divina em Moisés e pelo último desejo de Júlio II: a construção de um mausoléu para última morada encomendada em 1505 e finalizada em 1545.

No lado direito da igreja, junto ao altar-mor, o túmulo de Júlio II é um conjunto decorativo e arquitetónico concebido por Michelangelo. A controvérsia da figura de Moisés, com dois chifres (ver análise desta obra com maior detalhe, aqui), aleado à forma como Júlio II foi retratado, numa pose reclinada, sedutora, porém comprometedora, leva-nos a analisar com maior detalhe a iconografia daquele dedo mindinho da mão direita de Moisés (fazendo salientar o músculo junto ao cotovelo). O que Michelangelo conhecia com detalhe era o estudo de anatomia. E o que toda Itália escarnava era no comportamento do Papa Júlio II que teve vários filhos (dos quais sobreviveu Felice della Rovere a mulher com maior influência e poder na época renascentista) e do seu gosto por “jovens e belos amantes” – segundo o cronista veneziano Giroliamo Priuli – “ele era um grande fã do 'vício sodomita' e gostava mais do sexo quando assumia o papel de passivo”. A vida do Papa Júlio II não era segredo para ninguém, ele viveu no Palácio Papal com o seu amante, Francesco Alidiosi, nomeado cardeal. Nunca esconderam as manifestações, sempre presentes, de afecto entre os dois. Até o diplomata veneziano, Marin Sanudo, compôs um soneto para a homossexualidade do Papa Júlio II. Em setembro de 2018, num artigo do New York Times intitulado "O problema da Igreja Católica com o sexo", o nome de Júlio II estava novamente referido. “Júlio II contraiu sífilis durante o pontificado, doença com predileção pelos padres, principalmente pelos ricos, como diziam na época do Renascimento”, relata o jornal americano. “Papa Julius II, conhecido como o Terrível. Um Papa gay que adoeceu com sífilis, nomeou o seu amante, cardeal, e viveu em excesso”.

Michelangelo sabia-o. Michelangelo conhecia o poder da arte...

Túmulo do Papa Júlio II

escultor: Michelangelo

obra: 1545

 

Texto © Luís Carvalho Barreira


Notas:

[1] Lucius Tarquinius Priscus (c. 616–578 a.C.)

[2] Túlia Menor é uma figura semi-lendária da história romana que pode ser encontrada nos escritos de Lívio, Cícero e Dionísio de Halicarnasso.