Êxtase de Santa Teresa

Êxtase de Santa Teresa de Gian Lorenzo Bernini, 1647–1652

Igreja de Santa Maria della Vittoria

Roma, 2023

fotografia: © Luís Carvalho Barreira

À descoberta do pathos na obra de Bernini.

 

Gian Lorenzo Bernini teve uma longa e profícua vida artística. Existem várias obras que marcam a genialidade do artista. E uma delas tem origem numa encomenda do Cardeal Cornaro: uma capela dedicada a Santa Teresa d’Ávila, na Igreja de Santa Maria dela Vittoria, espaço escolhido para a última morada da sua família. Bernini ainda não se tinha restabelecido do humilhante desaire; após uma das duas torres sineiras projectadas para a fachada da Basílica de São Pedro ter ameaçado ruir e por consequência mandada demolir. Ferido no orgulho, vexado por ter sido o seu arqui-rival, Borromini, a atestar a sua incompetência como arquitecto, era agora um homem com a alma dilacerada. Perdera a bonomia do Papa (Inocêncio X) e deixara de ter as encomendas ambicionadas. O outrora il cavaliere que era bajulado por toda a Roma, sublimou o revés do projecto arquitectónico com o pathos colérico, quando mandou desfigurar a cara da sua amante (Costanza Bonarelli) por partilhar o leito, com o seu irmão Luigi. Conhecedor dos limiares da paixão e do amor carnal, reviu-se nos poemas místicos de Santa Teresa e no empreendimento solicitado pelo Cardeal Cornado. O brio do artista levá-lo-á a realizar uma das mais belas obras escultóricas do Barroco: o “êxtase de Santa Teresa”. É uma obra onde o espaço cénico dá lugar à melhor síntese da arquitectura barroca: duas colunas coríntias de cada lado do altar são acompanhadas à sua ilharga por pilastras da mesma ordem que sustentam um frontão, em arco quebrado, abrindo o espaço à claraboia onde a luz “congela” o preciso momento da Transverberação[1] de Santa Teresa. Todo a capela foi concebida como obra total. A decoração excessiva, com ornamentos vegetais, com putis e querubins, aliada à utilização de mármores de várias cores reforçam o desenho da capela explicando o sentido da arte barroca assente na teatralidade e sedução dos sentidos. É neste palco que o dramatismo do acontecimento nos é sugerida. É neste local que presenciamos a capacidade de uma obra de arte de evocar emoções intensas, empatia e identificação no observador fruidor. O "Êxtase de Santa Teresa" de Bernini é uma obra que busca provocar uma resposta emocional intensa no espectador, evocando empatia e identificação com a experiência mística de Santa Teresa. Bernini coloca toda a atenção nos detalhes. Os espectadores ordenados em dois balcões (membros da família Cornado) que ladeiam o proscénio, onde a acção se desenrola, trocam olhares como quem sussurra inconfidências, fazendo com que a nossa participação voyeurista seja pró-activa. O nosso tento deambula, numa primeira leitura, pela a envolvência arquitectónica da capela, para terminar no momento da levitação de Santa Teresa. É a arte da sedução exaltada num preciso momento. O espectador é preso ao desenrolar do acontecimento; o crente é aprisionado pela intensa espiritualidade. O legado testemunho poético da beata Teresinha d´Ávila é de uma paixão tão intensa que as palavras – segundo ela – teimam a não acompanhar os sentidos vividos. É um amor indizível. Bernini atento e conhecedor de amores terrenos retrata o momento em que a mística espanhola, Santa Teresa, experimenta a transverberação do amor divino. Bernini encontrou no “médium” poético de Santa Teresa, para expressar a paixão por Deus, a palavra do escopro que o levaria a materializar valores terrenos. O triunfo da arte. Bernini retira do tosco bloco de mármore branco de Carrara as formas, esculpindo cada palavra em gestos, talhando cada detalhe a exaltação vivida. Bernini trabalhou com grande minúcia na representação da carne, das roupas e dos elementos circundantes. Isso contribui para a sensação de maior realismo e intensifica a resposta emocional do espectador à cena. A composição ganha dramatismo quando o Serafim segura uma seta (ardente) de ouro em riste pronto a desferir aquela seta eleita / ervada em sulcos de amor[2]. Transforma o hábito da beata num revolto movimento deixando a descoberto um pé singelo. Teresa levita revelando os detalhes anatómicos que a aproximam de um realismo fisiológico e psicológico. A expressão facial de Santa Teresa capta o momento em que está imersa em êxtase, de olhos revirados e com a boca entreaberta, em pasmos de prazer: Me atingiu com sua seta, / Nos meigos braços do Amor / Minh'alma aninhou-se quieta[3]. O seu rosto reflecte uma expressão de arrebatamento corporal, transmitindo a intensidade da sua experiência mística. Essa revelação facial evoca empatia e identificação no observador, partilhando a comoção de santa Teresa. Por último, a iluminação vinda da claraboia acentua os contrastes e a sensação de movimento na obra aumentam o pathos, enfatizando a conexão espiritual profunda e emocional entre a paixão terrena e o amor divino. Bernini não se desvia do seu programa artístico, segue as determinações Tridentinas que exalta para uma arte religiosa inteligível e realista, e servir acima de tudo, como estímulo emocional à religiosidade. Estamos, seguramente, perante uma obra onde o pathos evoca emoções intensas, empatia e identificação no presente censor. Uma obra onde a paixão é vivenciada por todos aqueles que exaltam os sentidos e vivida segundo as suas certezas.

 

Dilectus meus mihi

(meu amado é para mim)

 

Entreguei-me toda e assim

Os corações se hão trocado

Meu Amado é para mim,

E eu sou para o meu Amado.

 

Me atingiu com sua seta,

Nos meigos braços do Amor

Minh'alma aninhou-se quieta.

E a vida em outra, seleta,

Totalmente se há trocado:

Meu amado é para mim,

E eu sou para meu Amado.

 

Era aquela seta eleita

Ervada em sulcos de amor,

E minha alma ficou feita

Uma com o seu Criador.

Já não quero eu outro amor,

Que a Deus me tenho entregado:

Meu Amado é para mim,

E eu sou para meu Amado.

 


 

[1] Fenómeno místico: de almas atingidas por setas incandescentes arremessadas por Serafins aos amantes de Cristo.

[2] Sobre Aquelas Palavras: Dilectus meus Mihi, PIII

[3] Sobre Aquelas Palavras: Dilectus meus Mihi, PIII

Virgem e o Menino [Santa Maria Maior, Roma]

Virgem e o Menino

ícone bizantino

Salus Populi Romani (protectora do povo romano)

Local: Santa Maria Maggiore, Roma

créditos: wikipedia

Papa Libério (r.352-366 AD)

No ano 354 oficializou os festejos natalícios, conseguindo, desta forma, assimilar as festas pagãs cristianizando-as. É nesta altura que o Papa Libério fixa a data de nascimento de Jesus Cristo: 25 de Dezembro.

A Basílica de Santa Maria Maior, construída em 450 AD, foi erigida no lugar da anterior Basílica Liberiana que foi destruída. No dia 5 de Agosto de cada ano uma chuva de pétalas de rosas brancas é lançada, durante a missa, no altar-mor, simbolizando a lenda ocorrida neste local: um nevão, em pleno Verão, terá sido o sinal da Virgem Maria. Este local também é conhecido por Nossa Senhora das Neves. É a maior igreja dedicada ao culto mariano e, por sua vez, à maternidade. Tendo sido objecto de reflexão sobre o papel de Maria, após o Concílio de Éfeso (431 AD), onde se discutiu com maior acuidade e veemência a figura de Maria saíram directizes muito precisas relevando a dignidade da representação de Maria a “Mãe de Deus”. Assim, Maria saiu reforçada na hierarquia da igreja católica onde foram dadas indicações precisas à maneira de representar “plasticamente” a “Mãe de Deus”. A Virgem deverá "receber um manto azul, um azul-escuro, maravilhoso e caro, condizente com a rainha do céu". (ver: ouro sobre azul).

Uma Basílica dedicada à mãe não poderia de não conter um teto coberto a ouro[1] a cobrir as verdadeiras relíquias à natalidade: a manjedoura de Jesus e o ícone bizantino de Maria, conhecido como Salus Populi Romani (protectora do povo romano, albergado na capela Paolina), juntamente com o sepulcro de São Jerónimo (o doutor da igreja, que traduziu a Bíblia - Vulgata - a única que expressa a verdadeira palavra divina) são as principais atrações religiosas desta basílica..

Em nota final, foram também sepultados em Santa Maria Maior, Paolina Bonaparte Borghese e Gian Lorenzo Bernini, figuras na arte objecto do nosso périplo por Roma, no mês de fevereiro de dois mil e vinte e três.


Planta da Basílica de Santa Maria Maggiore, Roma




[1] É voz corrente que o teto em caixotões foi dourado com o primeiro ouro trazido da América (carece de confirmação histórica), doado pelos Reis Católicos ao Papa, quando este era Alexandre VI, Bórgia.

 


 

Texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira

Escadaria dos Bórgias, Roma

Beco do Vilão (Alley Scellerato)

Gravura de 1850

créditos: wikipedia

Se fizer uma visita a Roma preste atenção aos calhaus da história e não tropece nas estórias das imagens.

Depois de ter visitado a Igreja de San Pietro in Vincoli dirija-se para a escadaria dos Bórgias e detenha-se por alguns momentos viajando na história e nas lendas deste lugar.

Reza a lenda-histórica que foi neste local que Lucius Tarquinius Superbus protagonizou uma das mais hediondas histórias passionais romanas. Lucius terá matado a mulher, o irmão, o sogro e casado com a cunhada tornando-se o último rei do período monárquico (a.C. 534-509). Os factos históricos confirmam que Servius Tullio (sexto Rei de Roma entre c.578 e 535 a.C.) tinha duas filhas chamadas Tullia: Tullia Major e Tullia Minor e casou-as com os filhos do seu predecessor[1](Lucius que casou com Tullia Major e Arruns com Tullia Minor[2]). Desta união familiar Tullia Minor (a mais nova) ambicionava ser rainha e para tal envolveu-se com o cunhado (Lucius) prometendo-lhe que casaria com ele depois de afastar os mais directos sucessores (o seu irmão, Arruns, a cunhada, Tullia Major e o sogro; o Rei Servius Tullio). Reza a lenda que Tullia Minor vendo o pai em agonia, espojado no solo, passou com o carro puxado por cavalos por cima do corpo inerte. Suas ações fizeram dela uma figura infame na cultura romana antiga. Não é por acaso que este lugar ficou conhecido pelo “O Beco do Vilão” (Alley Scellerato).

Esta rampa também é conhecida pela escadaria Bórgia e pelo túnel que atravessa o Palácio de Vannozza dei Cattanei, senhora de uma estalagem em Campo dei Fiori cuja principal função era de satisfazer favores sexuais dos seus frequentadores incluindo a do amante, Rodrigo Bórgia (Papa Alexandre VI) e pai dos seus quatro filhos. Do Palácio resta uma pequena varanda ao gosto de “loggia veneziana” que apesar de ser um simples apontamento arquitectónico não deixa de exercer a todos os transeuntes – conhecedores da história da cultura e das artes – momentos de recriação histórica e protagonistas por breves instantes.

Regressemos à Igreja de San Pietro in Vincoli, percorramos a escadaria dos Bórgias, deixemos o chão conspurcado de ambição, traição e sangue dos últimos momentos da monarquia romana. Deixemo-nos levar pela emoção pela luz divina em Moisés e pelo último desejo de Júlio II: a construção de um mausoléu para última morada encomendada em 1505 e finalizada em 1545.

No lado direito da igreja, junto ao altar-mor, o túmulo de Júlio II é um conjunto decorativo e arquitetónico concebido por Michelangelo. A controvérsia da figura de Moisés, com dois chifres (ver análise desta obra com maior detalhe, aqui), aleado à forma como Júlio II foi retratado, numa pose reclinada, sedutora, porém comprometedora, leva-nos a analisar com maior detalhe a iconografia daquele dedo mindinho da mão direita de Moisés (fazendo salientar o músculo junto ao cotovelo). O que Michelangelo conhecia com detalhe era o estudo de anatomia. E o que toda Itália escarnava era no comportamento do Papa Júlio II que teve vários filhos (dos quais sobreviveu Felice della Rovere a mulher com maior influência e poder na época renascentista) e do seu gosto por “jovens e belos amantes” – segundo o cronista veneziano Giroliamo Priuli – “ele era um grande fã do 'vício sodomita' e gostava mais do sexo quando assumia o papel de passivo”. A vida do Papa Júlio II não era segredo para ninguém, ele viveu no Palácio Papal com o seu amante, Francesco Alidiosi, nomeado cardeal. Nunca esconderam as manifestações, sempre presentes, de afecto entre os dois. Até o diplomata veneziano, Marin Sanudo, compôs um soneto para a homossexualidade do Papa Júlio II. Em setembro de 2018, num artigo do New York Times intitulado "O problema da Igreja Católica com o sexo", o nome de Júlio II estava novamente referido. “Júlio II contraiu sífilis durante o pontificado, doença com predileção pelos padres, principalmente pelos ricos, como diziam na época do Renascimento”, relata o jornal americano. “Papa Julius II, conhecido como o Terrível. Um Papa gay que adoeceu com sífilis, nomeou o seu amante, cardeal, e viveu em excesso”.

Michelangelo sabia-o. Michelangelo conhecia o poder da arte...

Túmulo do Papa Júlio II

escultor: Michelangelo

obra: 1545

 

Texto © Luís Carvalho Barreira


Notas:

[1] Lucius Tarquinius Priscus (c. 616–578 a.C.)

[2] Túlia Menor é uma figura semi-lendária da história romana que pode ser encontrada nos escritos de Lívio, Cícero e Dionísio de Halicarnasso.

Giulia Farnese

Rafael Sanzio

Retrato de uma Dama com Unicórnio

1505-6

Período: Renascimento

Galleria Borghese, Roma.

Quem é esta misteriosa dama com um precioso vestido do início do século XVI - la gamurra - com mangas largas de veludo vermelho e corpete de seda aguada? Que animal é este – unicórnio – e qual é o seu significado? Será esta a “La Bella Giulia” pintada por Rafael, a amante do Papa Alexandre VI?

O que o Retrato de uma Dama com Unicórnio esconde, a verdadeira identidade da personagem retratada é revelada à luz da história da vida privada.

Rafael empresta à pessoa retratada um ambiente renascentista quanto à sua organização espacial: duas colunas clássicas erguem-se lateralmente e com as bases assentes num muro, uma espécie de loggia, definindo através de linhas implícitas convergentes num ponto de fuga (perspectiva linear) orientando o olhar para o rosto da jovem. A parte superior do quadro é marcada pela presença de uma paisagem ao fundo, em tons azuis em gradação até aos cinzas, em pinceladas difusas, intensificando a perspectiva aérea concentrando o nosso olhar no retrato anunciado. É um retrato a ¾ de olhar fixo no observador (artifício estudado para que o olhar nos acompanhe em qualquer ponto que o observador se encontre) assente num triângulo conferindo estabilidade compositiva à semelhança do retrato de Monalisa de Leonardo da Vinci.

Recorrendo a uma paisagem para cenário do retrato, Rafael evidencia não só o domínio da perspectiva, mas também reflecte as correntes neoplatónicas de Marsílio Ficino que advogava que “a alma pode ser chamada o centro da natureza, a intermediária de todas as coisas, a corrente do mundo, a essência de tudo, o nó e a união do mundo”. Que se pode traduzir na arte renascentista entre a Ideia e a Matéria, entre o divino e o terreno, entre a fé e os sentidos. Os artistas renascentistas empenharam-se em encontrar o rácio geométrico, a harmonia formal e cromática, a sugestão da terceira dimensão e a importância dos elementos iconográficos. Para os pintores renascentistas foi uma obsessão a procura desta dimensão: a racionalidade na pintura:  segundo Leonardo da Vinci “a Pintura é uma coisa mental”. Tecnicamente, neste quadro de Rafael, traduz-se por uma pincelada firme e precisa, uma gradação (sfumato) aplicado com mestria e de cores vibrantes (onion) captando a nossa atenção. A tez branca do rosto, em contraste com as bochechas rosadas, um farto e bem afagado cabelo, confere doçura à jovem retratada. Iconograficamente, a jovem ostenta um pingente (rubi e safira) caído por uma pérola – scaramazza - símbolo do amor espiritual, cujas referências simbólicas são alusivas às virtudes conjugais e à candura virginal. E do mesmo modo se pode interpretar o unicórnio símbolo de castidade e pureza feminina (usado como emblemas por várias princesas e nobres, desde a Idade Média). O próprio colar de ouro, evidenciado pelo nó, é uma clara referência ao vínculo matrimonial.

Mas afinal, quem era esta jovem mulher? Ou será a filha de Giulia Farnese Orsini, Laura Orsini?


O que sabemos é que este quadro já foi uma Santa (Catarina) e aquando de um restauro realizado em meados do século XX foi revelado um cachorrinho, alterado, ainda por Rafael, para um unicórnio no aconchego do regaço. O manto que cobria a Santa Catarina foi retirado deixando a descoberto os ombros da enigmática jovem.

Será a Giulia Farnese? A mulher oriunda de Canino, província de Viterbo, que veio para Roma, em 1489, para casar com Orsino Orsini (uma das famílias com maior poder em Roma); ele era um homem “cego de um olho e de caráter débil e covarde”. Um perfil nada sedutor.

Giulia Farnese manteve uma relação extraconjugal com o cardeal Rodrigo Bórgia, mantendo-a mesmo quando foi nomeado Papa Alexandre VI. Esta relação de adultério não era alheia à família Orsini que discretamente mantivera silêncio, ou até o apoio por parte da sua sogra, Adriana de Milá, mãe de Orsino Orsini, defendendo os seus interesses e o da família Orsini. No mesmo ano, 1492, em que Rodrigo Bórgia foi nomeado Papa Alexandre VI nasceu Laura Orsini que, apesar da mãe (Giulia Farnese) afirmar que a paternidade pertencer ao Papa, este nunca a reconheceu, ao contrário da anterior amante, Vanozza dei Catanei, que teve quatro filhos (César, João, Lucrécia e Godofredo) todos eles perfilhados pelo pai, Papa Alexandre VI, Bórgia.

As disputas e alianças verificadas entre as principais famílias fizeram da Giulia Farnese a figura central dos conflitos, das paixões, dos dramas e da luxúria vivida. O nepotismo do Estado Papal no final do século XV foi palco de grande disputa política, religiosa entre as principais famílias: os Bórgias, os Orsinis, os Farneses e os della Rovere.

La Bella Giulia pelo “ardor particular” e pela ambição demonstrada ganhava cada vez maior protagonismo e influência junto do Papa Alexandre VI. Dessa maneira persuasiva e sedutora fez com que seu irmão Alessandro Farnese fosse nomeado cardeal, acabando por ser Papa (Paulo III) mais tarde, em 1534. Contudo, a família della Rovere desavinda com os Bórgias granjeou novos apoios políticos (Rei de França) e financeiros (como o de Jakob Fugger, o grande impulsionador da nova Basílica de São Pedro) conseguindo que Giuliano della Rovere fosse eleito Papa Júlio II em 1503[1].

Ao novo Papa não foi alheio ao ardor e à beleza, em particular, de Giulia tendo sugerido aos mais ilustres artistas (Rafael, Michelangelo, Pinturicchio)[2] para que Giulia servisse de modelo em várias pinturas religiosas.

Vários relatos chegaram até nós relativos à beleza de Giulia incluindo a do próprio filho do Papa Alexandre VI, César Bórgia, descrevendo-a como tendo “cor escura, olhos negros, rosto redondo e um ardor particular”. Esta descrição feita por César Bórgia não confere com o quadro em análise, pintado por Rafael em 1505 (ainda antes de ter vindo para Roma a convite do Papa Júlio II) e nesta altura Giulia Farnese, casada, tinha 31 anos e com uma filha de 13 anos.

A identidade da jovem tem sido alvo de grande debate e especulação. Há quem tenha dito que se pode tratar da irmã de Rafael, Elisabetta, nascida em 1491. Parece muito mais plausível que na verdade seja a filha de Giulia Farnese, Laura Orsini[3], que na época se casou com Niccolo della Rovere[4]. Um casamento organizado pelo Papa Júlio II della Rovere, tio do noivo e sucessor e inimigo de Alexandre VI, que desejava aliar-se às famílias Farnese e Orsini. Assim, a obra seria então encomendada a Rafael para o casamento, o que condiz com o facto de a menina originalmente segurar um cachorrinho, símbolo de fidelidade prontamente alterado para um unicórnio com duplo significado: símbolo de castidade e pureza feminina e insígnia da família Farnese.


Texto: 1990-2023 © Luís Carvalho Barreira

 

 

 

Notas:

Em 2 de abril de 1499, no Palazzo Farnese, Laura Orsini (com 7 anos), foi prometida em casamento a Federico Farnese, filho de Raimondo Farnese e sobrinho de Pier Paolo Farnese. O noivado foi posteriormente dissolvido.





[1] Após a morte do Papa Alexandre VI (envenenado?) foi eleito o Cardeal Alpedrinha, Jorge da Costa, que recusou o cargo, tendo sido eleito o Papa Pio III que esteve como sumo pontífice durante 26 dias.

[2] David Willey. «Fresco fragment revives Papal scandal»

[3] Ferdinand Gregorovius (1874). Lucrezia Borgia: secondo documenti e carteggi del tempo (in Italian). unknown library. Le Monnier.

[4] "FARNESE, Giulia in "Dizionario Biografico"". www.treccani.it 

 

Rafael, Escola de Atenas, 1506-10

A “Escola de Atenas”, cujo nome original Causarum Cognitio (Conhecer as Coisas) se manteve até ao século XVII, faz parte de um conjunto de quatro pinturas (frescos): “as quatro faculdades clássicas do espírito humano” – A Verdade, O Racional, O Bem e O Belo. Os frescos de Rafael, localizados na Sala da Assinatura outrora destinados à biblioteca privada do Papa Júlio II, assinalam de uma forma singular o pensamento neoplatónico renascentista.

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Numa das paredes o Bem está representado pelas Virtudes Teológicas da Lei e na parede contrária, por oposição, o Belo revelado por Apolo e as Musas no monte Parnaso. A Verdade teológica ilustrada pela "adoração ao Santíssimo Sacramento" ocupa a parede oposta à Escola de Atenas representando o pensamento Racional. Em suma, a Verdade é adquirida através da razão cujas personagens centrais, Platão aponta para o céu enquanto segura o seu livro “Timeo”, caminhando em diálogo com Aristóteles contendo a “Ética”, personificam os pensadores da Antiguidade Clássica e, simultaneamente, o tempo de Rafael. Todas as figuras estão dispostas em planos diferentes ganhando não só o destaque pretendido, como também reforçam a harmonia e o equilíbrio da composição pictórica. O desenho subjacente às formas, o realismo anatómico, põe a nu a perícia técnico-formal característica da pintura renascentista. O recurso ao claro-escuro das roupas reforça a tridimensionalidade das formas. Assim, Rafael sem recorrer à ilustração socorre-se de figuras alegóricas, técnica recorrente nos séculos XIV e XV, deambulando-se por um espaço arquitectónico, numa espécie de trompe l’oeil, onde destacamos um arco perfeito em toda a sua plenitude abrindo o espaço para uma perspectiva linear decorada com mais diversos elementos clássicos; desde as esculturas greco-romanas inseridas em nichos (Apolo à esquerda e Minerva à direita), a abóbada de berço, uma cúpula ao centro, terminando num arco de triunfo convocando o olhar para o infinito. Perante esta composição expansiva, o espectador é convocado a percorrer demoradamente todo o espaço onde se desenrola a acção. Toda esta atmosfera é explorada por Rafael submetendo o espaço pictórico às leis do plano permitindo que as personagens retratadas ganhem um estatuto especial segundo a iconografia apresentada. Além disso, Rafael fazendo a síntese entre a Verdade e o pensamento Racional, retrata as celebridades de modo a permitir observar a explicação: Pitágoras é representado de lado, deixando antever o diatessaron; reclinado nos degraus da escada, Diógenes sugere a leitura dos antigos filósofos gregos; à sua frente, Eráclito, o filósofo pessimista; à direita, Euclides ensina geometria enquanto Zaratustra segura o Globo Celestial e Ptolomeu o Globo Terrestre, junto a estes, quiçá, o próprio Rafael.

Por tudo isto, a “Escola de Atenas” é considerada uma obra icónica do renascimento.

 

1990 © Luís Carvalho Barreira