Giulia Farnese

Rafael Sanzio

Retrato de uma Dama com Unicórnio

1505-6

Período: Renascimento

Galleria Borghese, Roma.

Quem é esta misteriosa dama com um precioso vestido do início do século XVI - la gamurra - com mangas largas de veludo vermelho e corpete de seda aguada? Que animal é este – unicórnio – e qual é o seu significado? Será esta a “La Bella Giulia” pintada por Rafael, a amante do Papa Alexandre VI?

O que o Retrato de uma Dama com Unicórnio esconde, a verdadeira identidade da personagem retratada é revelada à luz da história da vida privada.

Rafael empresta à pessoa retratada um ambiente renascentista quanto à sua organização espacial: duas colunas clássicas erguem-se lateralmente e com as bases assentes num muro, uma espécie de loggia, definindo através de linhas implícitas convergentes num ponto de fuga (perspectiva linear) orientando o olhar para o rosto da jovem. A parte superior do quadro é marcada pela presença de uma paisagem ao fundo, em tons azuis em gradação até aos cinzas, em pinceladas difusas, intensificando a perspectiva aérea concentrando o nosso olhar no retrato anunciado. É um retrato a ¾ de olhar fixo no observador (artifício estudado para que o olhar nos acompanhe em qualquer ponto que o observador se encontre) assente num triângulo conferindo estabilidade compositiva à semelhança do retrato de Monalisa de Leonardo da Vinci.

Recorrendo a uma paisagem para cenário do retrato, Rafael evidencia não só o domínio da perspectiva, mas também reflecte as correntes neoplatónicas de Marsílio Ficino que advogava que “a alma pode ser chamada o centro da natureza, a intermediária de todas as coisas, a corrente do mundo, a essência de tudo, o nó e a união do mundo”. Que se pode traduzir na arte renascentista entre a Ideia e a Matéria, entre o divino e o terreno, entre a fé e os sentidos. Os artistas renascentistas empenharam-se em encontrar o rácio geométrico, a harmonia formal e cromática, a sugestão da terceira dimensão e a importância dos elementos iconográficos. Para os pintores renascentistas foi uma obsessão a procura desta dimensão: a racionalidade na pintura:  segundo Leonardo da Vinci “a Pintura é uma coisa mental”. Tecnicamente, neste quadro de Rafael, traduz-se por uma pincelada firme e precisa, uma gradação (sfumato) aplicado com mestria e de cores vibrantes (onion) captando a nossa atenção. A tez branca do rosto, em contraste com as bochechas rosadas, um farto e bem afagado cabelo, confere doçura à jovem retratada. Iconograficamente, a jovem ostenta um pingente (rubi e safira) caído por uma pérola – scaramazza - símbolo do amor espiritual, cujas referências simbólicas são alusivas às virtudes conjugais e à candura virginal. E do mesmo modo se pode interpretar o unicórnio símbolo de castidade e pureza feminina (usado como emblemas por várias princesas e nobres, desde a Idade Média). O próprio colar de ouro, evidenciado pelo nó, é uma clara referência ao vínculo matrimonial.

Mas afinal, quem era esta jovem mulher? Ou será a filha de Giulia Farnese Orsini, Laura Orsini?


O que sabemos é que este quadro já foi uma Santa (Catarina) e aquando de um restauro realizado em meados do século XX foi revelado um cachorrinho, alterado, ainda por Rafael, para um unicórnio no aconchego do regaço. O manto que cobria a Santa Catarina foi retirado deixando a descoberto os ombros da enigmática jovem.

Será a Giulia Farnese? A mulher oriunda de Canino, província de Viterbo, que veio para Roma, em 1489, para casar com Orsino Orsini (uma das famílias com maior poder em Roma); ele era um homem “cego de um olho e de caráter débil e covarde”. Um perfil nada sedutor.

Giulia Farnese manteve uma relação extraconjugal com o cardeal Rodrigo Bórgia, mantendo-a mesmo quando foi nomeado Papa Alexandre VI. Esta relação de adultério não era alheia à família Orsini que discretamente mantivera silêncio, ou até o apoio por parte da sua sogra, Adriana de Milá, mãe de Orsino Orsini, defendendo os seus interesses e o da família Orsini. No mesmo ano, 1492, em que Rodrigo Bórgia foi nomeado Papa Alexandre VI nasceu Laura Orsini que, apesar da mãe (Giulia Farnese) afirmar que a paternidade pertencer ao Papa, este nunca a reconheceu, ao contrário da anterior amante, Vanozza dei Catanei, que teve quatro filhos (César, João, Lucrécia e Godofredo) todos eles perfilhados pelo pai, Papa Alexandre VI, Bórgia.

As disputas e alianças verificadas entre as principais famílias fizeram da Giulia Farnese a figura central dos conflitos, das paixões, dos dramas e da luxúria vivida. O nepotismo do Estado Papal no final do século XV foi palco de grande disputa política, religiosa entre as principais famílias: os Bórgias, os Orsinis, os Farneses e os della Rovere.

La Bella Giulia pelo “ardor particular” e pela ambição demonstrada ganhava cada vez maior protagonismo e influência junto do Papa Alexandre VI. Dessa maneira persuasiva e sedutora fez com que seu irmão Alessandro Farnese fosse nomeado cardeal, acabando por ser Papa (Paulo III) mais tarde, em 1534. Contudo, a família della Rovere desavinda com os Bórgias granjeou novos apoios políticos (Rei de França) e financeiros (como o de Jakob Fugger, o grande impulsionador da nova Basílica de São Pedro) conseguindo que Giuliano della Rovere fosse eleito Papa Júlio II em 1503[1].

Ao novo Papa não foi alheio ao ardor e à beleza, em particular, de Giulia tendo sugerido aos mais ilustres artistas (Rafael, Michelangelo, Pinturicchio)[2] para que Giulia servisse de modelo em várias pinturas religiosas.

Vários relatos chegaram até nós relativos à beleza de Giulia incluindo a do próprio filho do Papa Alexandre VI, César Bórgia, descrevendo-a como tendo “cor escura, olhos negros, rosto redondo e um ardor particular”. Esta descrição feita por César Bórgia não confere com o quadro em análise, pintado por Rafael em 1505 (ainda antes de ter vindo para Roma a convite do Papa Júlio II) e nesta altura Giulia Farnese, casada, tinha 31 anos e com uma filha de 13 anos.

A identidade da jovem tem sido alvo de grande debate e especulação. Há quem tenha dito que se pode tratar da irmã de Rafael, Elisabetta, nascida em 1491. Parece muito mais plausível que na verdade seja a filha de Giulia Farnese, Laura Orsini[3], que na época se casou com Niccolo della Rovere[4]. Um casamento organizado pelo Papa Júlio II della Rovere, tio do noivo e sucessor e inimigo de Alexandre VI, que desejava aliar-se às famílias Farnese e Orsini. Assim, a obra seria então encomendada a Rafael para o casamento, o que condiz com o facto de a menina originalmente segurar um cachorrinho, símbolo de fidelidade prontamente alterado para um unicórnio com duplo significado: símbolo de castidade e pureza feminina e insígnia da família Farnese.


Texto: 1990-2023 © Luís Carvalho Barreira

 

 

 

Notas:

Em 2 de abril de 1499, no Palazzo Farnese, Laura Orsini (com 7 anos), foi prometida em casamento a Federico Farnese, filho de Raimondo Farnese e sobrinho de Pier Paolo Farnese. O noivado foi posteriormente dissolvido.





[1] Após a morte do Papa Alexandre VI (envenenado?) foi eleito o Cardeal Alpedrinha, Jorge da Costa, que recusou o cargo, tendo sido eleito o Papa Pio III que esteve como sumo pontífice durante 26 dias.

[2] David Willey. «Fresco fragment revives Papal scandal»

[3] Ferdinand Gregorovius (1874). Lucrezia Borgia: secondo documenti e carteggi del tempo (in Italian). unknown library. Le Monnier.

[4] "FARNESE, Giulia in "Dizionario Biografico"". www.treccani.it 

 

Rafael, Escola de Atenas, 1506-10

A “Escola de Atenas”, cujo nome original Causarum Cognitio (Conhecer as Coisas) se manteve até ao século XVII, faz parte de um conjunto de quatro pinturas (frescos): “as quatro faculdades clássicas do espírito humano” – A Verdade, O Racional, O Bem e O Belo. Os frescos de Rafael, localizados na Sala da Assinatura outrora destinados à biblioteca privada do Papa Júlio II, assinalam de uma forma singular o pensamento neoplatónico renascentista.

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Numa das paredes o Bem está representado pelas Virtudes Teológicas da Lei e na parede contrária, por oposição, o Belo revelado por Apolo e as Musas no monte Parnaso. A Verdade teológica ilustrada pela "adoração ao Santíssimo Sacramento" ocupa a parede oposta à Escola de Atenas representando o pensamento Racional. Em suma, a Verdade é adquirida através da razão cujas personagens centrais, Platão aponta para o céu enquanto segura o seu livro “Timeo”, caminhando em diálogo com Aristóteles contendo a “Ética”, personificam os pensadores da Antiguidade Clássica e, simultaneamente, o tempo de Rafael. Todas as figuras estão dispostas em planos diferentes ganhando não só o destaque pretendido, como também reforçam a harmonia e o equilíbrio da composição pictórica. O desenho subjacente às formas, o realismo anatómico, põe a nu a perícia técnico-formal característica da pintura renascentista. O recurso ao claro-escuro das roupas reforça a tridimensionalidade das formas. Assim, Rafael sem recorrer à ilustração socorre-se de figuras alegóricas, técnica recorrente nos séculos XIV e XV, deambulando-se por um espaço arquitectónico, numa espécie de trompe l’oeil, onde destacamos um arco perfeito em toda a sua plenitude abrindo o espaço para uma perspectiva linear decorada com mais diversos elementos clássicos; desde as esculturas greco-romanas inseridas em nichos (Apolo à esquerda e Minerva à direita), a abóbada de berço, uma cúpula ao centro, terminando num arco de triunfo convocando o olhar para o infinito. Perante esta composição expansiva, o espectador é convocado a percorrer demoradamente todo o espaço onde se desenrola a acção. Toda esta atmosfera é explorada por Rafael submetendo o espaço pictórico às leis do plano permitindo que as personagens retratadas ganhem um estatuto especial segundo a iconografia apresentada. Além disso, Rafael fazendo a síntese entre a Verdade e o pensamento Racional, retrata as celebridades de modo a permitir observar a explicação: Pitágoras é representado de lado, deixando antever o diatessaron; reclinado nos degraus da escada, Diógenes sugere a leitura dos antigos filósofos gregos; à sua frente, Eráclito, o filósofo pessimista; à direita, Euclides ensina geometria enquanto Zaratustra segura o Globo Celestial e Ptolomeu o Globo Terrestre, junto a estes, quiçá, o próprio Rafael.

Por tudo isto, a “Escola de Atenas” é considerada uma obra icónica do renascimento.

 

1990 © Luís Carvalho Barreira

circles

Luís BarreiraCircles #07 - 1990Desenho 60x50 cmAcrílico, grafite a/papelsérie: circles

Luís Barreira

Circles #07 - 1990

Desenho 60x50 cm

Acrílico, grafite a/papel

série: circles