Fillide Melandroni uma “cortigiana escandalosa”.

Fillide Melandroni pintada por Caravaggio[*]

Fillide Melandroni uma “cortigiana escandalosa”. Foi assim que a Diocese de Roma julgou Melandroni por recusar o sacramento. Seria a condenação de menor importância que a cortesã haveria de registar na sua vida. Desacatos e posse de arma proibida[1] constam nos registos das autoridades romanas[2]. Melandroni nasceu em Siena no ano 1581 e morreu em Roma com 37 anos (1618). Em Roma viveu no Ortaccio[3], um bairro de prostituição confinado por dois portões que, por ordem do Papa Pio V, era só aberto em determinadas horas durante o dia. Estavam proibidos o uso e o porte-de-armas neste local e as prostitutas apanhadas fora do Ortaccio eram açoitadas em praça pública. Melandroni envolveu-se com um jovem de família nobre, Ranuccio Tomassoni, que foi seu proxeneta. Esta cortesã que tinha Tomassoni como seu amante, também foi modelo do temperamental e irrascível Caravaggio. Em 1594, Caravaggio aventurou-se numa carreira de pintor independente[4] e pinta Os Trapaceiros chamando a atenção do Cardeal del Monte que o adquiriu ao comerciante de arte, Costantino. Foi um começo auspicioso. Com o auxílio de Prospero Orsi, um consagrado pintor maneirista, foram-lhe abertas as portas dos diversos mecenas e coleccionadores, do mundo da arte em Roma, como o banqueiro Vincenzo Giustiniani. Tudo se conjugava para uma vida sucesso. Apareceram novas encomendas, mas o pintor não suportava a mediocridade alheia criticando a originalidade da arte que era concebida nessa altura. A vontade de propor novas ideias estéticas era tão grande, quanto o de denegrir a pintura dos seus congéneres pintores. Ele esteve envolto em várias polémicas e insultos, nomeadamente com o pintor Giovanni Baglione, fazendo distribuir por Roma versos cáusticos caluniando a figura do pintor e da sua mulher (em tribunal negou a sua autoria, mas em vão). Foi condenado por difamação. Em resposta Baglione pinta um quadro, Amor sagrado versus Amor profano, 1602, mostrando-nos um Anjo (o amor vitorioso) afastando Cupido (o amor profano) do demónio, retratado com rosto de Caravaggio que, segundo Andrew Graham-Dixon, “poderá ser a acusação (um insulto) visual da homossexualidade de Caravaggio[5]”. Mais um vitupério, mais um afago no ego do artista Baglione? Caravaggio não primou na sua vida por uma conduta de cidadania exemplar, mas a sua genialidade reconhecida acompanhou a vida pungente do artista. Poderíamos chamar uma arte autobiográfica. Foi várias vezes condenado e preso fazendo constar no seu processo judicial o seu insulto distintivo: “frito-te os tomates em azeite”... frase proferida numa taberna quando o empregado interpolado por Caravaggio se recusou a esclarecer se as alcachofras estavam fritas em azeite ou em manteiga. Não faria sentido repetir tal impropério se não sublinhássemos o local vivenciado. O mesmo local, a taberna, que serve de cenário a um tema bíblico, Invocação de São Mateus[6], 1599. A arte de Caravaggio tem esta capacidade de nos convocar, não só como espectador, mas de nos fazer participar no momento bíblico e histórico. É uma arte que habita os mesmos espaços comuns. É também este o lugar, da vida dissoluta e difícil, que Melandroni partilha e se cruza com o “realismo caravagiano”: é uma escolha estética que o pintor transporta para a tela recorrendo aos modelos retirados do quotidiano. Caravaggio sentia-se um deles e era para eles, os filhos de Deus, que são aqueles que melhor podiam enobrecer as suas personagens bíblicas: os pobres descalços, de unhas encardidas, de pele escura e enrugada, de tez queimada e de vestes descuidadas. Era aqui no seio do povo que Caravaggio recrutava as personagens que melhor ilustravam – segundo o artista – a mensagem de Cristo: “é mais difícil um rico entrar no Reino de Deus do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha” (Mateus, 19:23-26). Os traços e as marcas da indigência, a rudeza da vida, os rostos da pobreza são revelados nos seus quadros através de uma técnica pictórica de alto-contraste (claro/escuro) conferindo-lhes a atenção devida do leitor. Afastando-se do idealismo clássico maneirista o artista concentra-se nas pessoas que o rodeiam. O realismo pictórico de Caravaggio abandona a perfeição renascentista do sfumato e de outras técnicas “lambidas” para conferir às suas obras, a matéria, a rugosidade, o vigor da sua arte. Tal e qual, a força que advém da pincelada rude e expressiva, Caravaggio legitima a sua pintura através da protérvia realidade que nos incomoda. Constatamos esta repulsa no quadro A Morte de Maria (1602-6) destinada à igreja das Carmelitas[7] e que o clero considerou desprovida de santidade e ofensiva para a igreja católica, recusando a obra. Foram estas as críticas mais veementes ouvidas para justificar a rejeição deste trabalho. Porém, o que mais escandalizava não era a Virgem Maria ser retratada com demasiada simplicidade, nem a justificação teológica de que a Maria não morreu, mas sim, ascendeu ao céu num sono profundo. O que mais indignou, aos encomendadores e à igreja, foi o de reconhecerem em Maria outra identidade: a de Melandroni coberta com um vestido vermelho decotado. O realismo de Caravaggio foi longe de mais. Apresenta-nos uma verdade que não nos permite escapulir do mundo terreno. Paradoxalmente, não encontramos nada de tenebroso[8] na pintura de Caravaggio. Descobrimos uma realidade crua de vidas esquecidas. De existências que teimamos em apagar. E quase toda a pintura de Caravaggio, realizada em Roma, está directa, ou indirectamente, ligada ao mundo de Fillide Melandroni. Não se conhece nenhuma ligação sentimental entre Caravaggio e Melandroni além da amizade profissional. Todavia, a cortesã serviu de modelo (reconhecidos) em quatro quadros: Marta e Maria Madalena, 1598, Santa Catarina de Alexandria, 1598-9, Judith e Holofernes, 1602-4 e a Morte de Maria, 1602-6. A disputa da mesma mulher, dívidas[9], insultos recíprocos, serviram de “pomo de discórdia” entre Caravaggio e Tomassoni. Um “jogo de ténis” agendado, foi palco [actual Piazza di Firenza] e pretexto para o último confronto, num duelo que terminou em ferimentos graves em Caravaggio e a morte[10] de Tomassoni. O pintor, ferido, calcorreia as ruas em direcção à Piazza Navona refugiando-se no palácio do Cardeal del Monte (actual Palácio Madama) que lhe deu guarida. Depois escondeu-se nas propriedades da família Colonna[11]. Durante este período Caravaggio pinta dois quadros (Êxtase de Maria Madalena[12], 1606, e A Última Ceia de Emaús[13], 1606). Perseguido pela justiça (condenado à morte por decapitação, pelo Papa) leva-o a fugir para Nápoles, Malta e Sicília. A sentença levá-lo-á a penitenciar-se realizando vários quadros com decapitações bíblicas nas quais ele personifica a figura do mártire. Um auto-retrato degolado, um último e desesperado pedido de perdão. No regresso a Roma morrerá (15 de Agosto de 1610) doente no porto de Ercole.

Em 1612 Melandroni foi forçada a deixar Roma pela família do poeta veneziano Strozzi, que era seu atual protector e amante. Dois anos depois regressaria a Roma na mesma altura em que deixa em testamento o seu retrato[14] a Giulio Strozzi; segurando um ramo de flores de jasmim, símbolo do amor erótico[15]. Melandroni morreu em 1618, aos trinta e sete anos. A Igreja recusou-se a dar-lhe um enterro cristão.

 

 Texto, 1999-2023 © Luís Carvalho Barreira



[*] Quadro destruído pelo fogo no Kaiser-Friedrich-MuseumBerlinin 1945

[1] Varriano, John. Caravaggio: The Art of Realism. Penn State Press, 2010. Pág. 90.

 “Em 11 de fevereiro de 1599, houve a denúncia de uma festa barulhenta na casa de Melandroni e que os homens presentes estavam armados. Como o porte de armas era proibido no Ortaccio, as autoridades foram até a casa. No momento da chegada, havia apenas Melandroni e três homens presentes, um dos quais era Tomassoni, que usava uma espada. Melandroni e Tomassoni foram presos.”

[2] Robb, Peter. M: The Man Who Became Caravaggio. Macmillan. 2001. Pág. 90

[3] Este local situava-se a sul do actual museu “ara pacis”, entre o Tibre, a Via di Ripetta, a Piazza Monte d'Oro e a Piazza degli Schiavoni.

[4] Frequentou o atelier de Giuseppe Cesari d’Arpino um consagrado pintor.

[5] Andrew Graham-Dixon, Caravaggio: A life sacred and profane, Penguin, 2011. Pág. 4

[6] Este quadro encontra-se na capela Contarelli da igreja São Luís dos Franceses, Roma.

[7] Obra encomendada por Laerzio Alberti Cherubini, advogado do Papa, para a sua capela na igreja das Carmelitas de Santa Maria della Scalaem, em Roma. A Morte de Maria, 1602, de Caravaggio, encontra-se no Museu do Louvre.

[8] Tenebrismo: [tenebroso, em volto em trevas, muito escuro, sombrio, misterioso] foi a designação que os românticos encontraram para caracterizar a pintura de Caravaggio.

[9] Ibidem, pág. 342

[10] A morte de Tomassoni ocorreu a 28 de Maio de 1606. In Mancini, Baglione & Bellori 2019, p. 56.

[11] Ibidem, pág. 342

[12] Colecção privada. Pertence a um colecionador particular de Roma e que geralmente é chamada de cópia "Klain”.

[13] Pinacoteca de BreraMilão.

[14] Robb 2001, p. 494. Retrato realizado por Caravaggio a pedido do poeta Giulio Strozzi.

[15] Segundo John Gash as flores de jasmim são o símbolo do amor erótico.


BIBLIOGRAFIA

·        Andrew Graham-Dixon, Caravaggio: A life sacred and profane, Penguin, 2011

·        Baglione, Giovanni (1642). Le Vite De' Pittori, Scultori Et Architetti (em italiano). Rome: Nella stamperia d'Andrea Fei. p. 138

·        Domínguez, Javier Bacariza; Fernández, Luis Nieto; Ledesma, Andrés Sánchez; Thyssen-Bornemisza, Museo (2008). Caravaggism and classicism in Italian painting at the Thyssen- Bornemisza Museum: a technical and historical study. Rayxart Investigación. 

·        Erhardt, Michelle; Morris, Amy (2012). Mary Magdalene, Iconographic Studies from the Middle Ages to the Baroque. BRILL. 

·        Graham-Dixon, Andrew (2011). Caravaggio: A Life Sacred and Profane. Penguin Books Limited. 

·        Hunt, Patrick (2004). Caravaggio. Haus Pub. 

·        Mancini, Giulio; Baglione, Giovanni; Bellori, Giovanni Pietro (2019). Lives of Caravaggio. Getty Publications. 

·        Milner, Catherine (2 June 2002). "Red-blooded Caravaggio killed love rival in bungled castration attempt". The Telegraph. Retrieved 17 April 2020.

·        Neret, Gilles (2010). Caravaggio. Taschen. 

·        Pullan, Brian (2016). Tolerance, regulation and rescue: Dishonoured women and abandoned children in Italy, 1300–1800. Manchester University Press. 

·        Robb, Peter (2001). M: The Man Who Became Caravaggio. Macmillan. 

·        Spike, John T.; Caravaggio, Michelangelo Merisi da (2010). Caravaggio: Catalogue of Paintings. Abbeville Press. 

·        Varriano, John (2010). Caravaggio: The Art of Realism. Penn State Press. 

Os Trapaceiros, 1594

Caravaggio

Os Trapaceiros

1594

Pintura de Género (Período Barroco)

Museu de Arte Kimbell

Em 1594, Caravaggio aventura-se numa carreira de pintor independente[1] e pinta Os Trapaceiros chamando a atenção do Cardeal del Monte que adquiriu ao comerciante de arte, Costantino. Os Trapaceiros é uma pintura de género apresentando três jogadores de cartas: um jovem rico hesitando quanto à vaza, o adversário trapaceiro e um outro que através de sinais denuncia as cartas do oponente. Com o auxílio de Prospero Orsi, um consagrado pintor maneirista, foram-lhe abertas as portas dos diversos mecenas, coleccionadores, do mundo da arte como o banqueiro Vincenzo Giustiniani.


texto, 1998 © Luís Carvalho Barreira


[1] Frequentou o atelier de Giuseppe Cesari d’Arpino, um consagrado pintor.

Brueghel - Luta entre o Carnaval e a Quaresma

Pieter Brueghel, o Velho, Combate entre o Carnaval e a Quaresma, 1559

Museu de História da Arte em Viena, Viena.

Em 1559, Brueghel, o Velho, pinta o quadro O Combate entre o Carnaval e a Quaresma. Segundo as melhores interpretações da História da Arte, Brueghel reproduz uma cena festiva, na praça de uma cidade, com os habituais festejos que marcam, supostamente, o fim da Quaresma e o advento da Páscoa. É uma pintura que retrata outra realidade para além do que o título nos possa sugerir. O combate simulado entre o Carnaval e a Quaresma, não são entre dois momentos festivos, um pagão e o outro cristão, são, sobretudo, a luta que se fazia sentir entre a Reforma Protestante e a Igreja Católica. Trata-se de uma sátira política e religiosa que os Países-baixos estavam envolvidos. A Holanda espanhola como era conhecida pela Pragmática Sanção[1] (1549) do Imperador do Sacro Império Romano Germânico, Carlos V, e agora administrado pelo seu sucessor Filipe II de Espanha, católico e adepto confesso da Contra-Reforma[2], encontra-se subjugada aos interesses espanhóis. Os flamengos procuraram sempre afirmar-se, quer ao nível político, quer religioso, levando-os, mais tarde em 1566, à revolta iconoclasta conhecida por Beeldenstorm (“tempestade das estátuas”). A destruição de imagens religiosas, estátuas, das igrejas católicas são o símbolo da afirmação de um povo, sob o domínio político, religioso e económico de um rei espanhol (católico) que procurou suprimir o calvinismo na Flandres. É neste contexto que nos devemos posicionar e observar atentamente a obra de Brueghel (uma leitura possível)...

O artista representa, aqui, uma metáfora sobre a ambiguidade do ser humano, sobretudo, do homem cristão, dividido entre as tentações dos prazeres mundanos e o compromisso com a moderação das paixões desenfreadas. É uma pintura caricatural de uma sociedade dividida entre a austeridade, que deveria caracterizar o homem católico, e os prazeres da gula e da carne. É entre a abastança e a indigência, a verificar pelos muitos mendigos, pobres, estropiados, que ocupam lugar de relevo na pintura. É essa a penúria, verificada, principalmente, à saída da igreja que procura caridade alheia. É esta a batalha da consciência humana que Brueghel retrata. Um confronto entre opositores sem armas, sem armaduras, sem cavalos; apenas com os atributos (satíricos) que fazem deles o foco da nossa atenção.

Do lado direito, um séquito encabeçado por uma figura masculina, magra, vestida com uma túnica e de cabeça coberta por lenço, suporta uma colmeia sinónimo de cooperação e de ordem. Ele é transportado, por um frade que deixa a tonsura a descoberto e uma freira, numa carriola vermelha empunhando uma pá com dois pequenos peixes. Na outra mão um ramo. À medida que a procissão passa ao som das matracas empunhadas por jovens seguidores, figuras de trajes diferenciados estendem a mão, doando algo, aos mendigos que fazem alas para “verem” o cortejo passar. Na cauda do desfile várias freiras; uma com um terço, outra com uma Bíblia, e as restantes empunhando ramos. Na cauda do cortejo, uma banca à entrada da igreja cobra algumas indulgências e até a figura de Cristo crucificado aparece deitado numa almofada com umas moedas à sua ilharga. Tudo e todos se servem da caridade alheia. Na penumbra da igreja ainda se pode descortinar um padre a abençoar um crente que acaba de se confessar. É o triunfo do divino; é a vitória sobre a imperfeição simbolizada pela saída desordenada das pessoas, de cabisbaixo, enquanto outras transportam cadeiras à cabeça saindo pela porta lateral da igreja. São [possivelmente] os hereges. São aqueles que teimam reformar a Igreja, das suas práticas e do seu sacerdócio. Brueghel não coloca o problema entre o Bem e o Mal, mas sim numa disputa social travada através do humor, da sátira, da alegria e do riso: um riso ritual como o enigmático casal que se passeia de costas no centro do quadro. Mas que linda metáfora. Ele faz-se acompanhar de uma espada e de uma adaga, enquanto a mulher leva à cintura uma lanterna.

É neste sentido que, no lado esquerdo da pintura, entre o gozo protagonizado pelo anafado taberneiro, que equilibra na cabeça uma tarte de galinha (a julgar pela sugestiva pintura), é puxado por um empregado em cima de um pipo de vinho que serve de charrua. É uma figura grotesca segurando um espeto com uma cabeça de porco, uma galinha e outras iguarias assadas. Ele é seguido por um séquito de outras personagens e todas elas oferecendo os prazeres da gula, os deleites da vida. A música é diferente, contrastando com o estalejar das matracas, os instrumentos são outros: ao som do sarronca e acompanhada à viola marcando o compasso de todos personagens que parecem anunciar os prazeres da vida. Se dignidade se encontra pela aparência da cabeça coberta ela transporta também os atributos sociais, ou, metaforicamente, o que lhes vai na cabeça. Todas figuras têm a cabeça coberta, ou quase todas: as crianças, os mendigos e uma mulher junto a uma tenda improvisada. Se a dignidade se pode ajuizar pela aparência não é por acaso que os pedintes descobrem a cabeça, num acto de submissão, assim como a velha megera que convida um cliente para dentro da sua tenda representando a luxúria por oposição à observância da Igreja. O quadro não estaria completo se não evidenciasse-mos as crianças que brincam, que jogam à panela de barro, lançam o pião; os homens que se entregam ao jogo de sorte ou azar; as mulheres que amanham o peixe junto ao poço; os curiosos à janela; o beijo roubado à janela da estalagem; o balde de água despejado na cabeça de um exibicionista bebendo; a autoridade cobrando impostos; a mão dada ao amado dentro de casa; a vida doméstica; o desfile de uma confraria transportando uma haste com um ramo, fazem parte de uma realidade que Brueghel nos quer contar. Há um ponto comum em toda esta discrição: o ramo, o Ramo de oliveira (o dia triunfal, a entrada de Cristo em Jerusalém).

O Carnaval (na pintura de Brueghel) é esse homo festivus[3] é um homo ridens que ganha importância no episódio "a Luta entre o Carnaval e a Quaresma".

Acreditamos que Brueghel aproveita, o “Domingo de Ramos” para nos registar a vida social em particular utilizando a força da sátira. O triunfo das ideias humanistas sobre o determinismo religioso e da opressão política. Em epílogo, Brueghel assina o quadro na pedra que serve de mesa ao jogo de dados. Quiçá, Brueghel é o homem que ostenta um capuz de carrasco...

 

1998-2023 © Luís Carvalho Barreira




Notas:

[1] É a designação tradicionalmente dada a toda a norma ou disposição legal promulgada de forma solene por um absoluto que disponha sobre aspectos fundamentais do Estado, regulando questões como a sucessão no trono, as matérias de religião de Estado e outras. Na história do Sacro Império Romano-Germânico refere-se mais especificamente a um édito emitido pelo imperador. In Wikipedia

[2] Concílio de Trento realizou-se entre 1545-1563.

[3] H. Cox, Las fiestas de los locos. Ensayo sobre el talante festivo y la fantasía, Madrid, Taurus, 1983.

Escadaria dos Bórgias, Roma

Beco do Vilão (Alley Scellerato)

Gravura de 1850

créditos: wikipedia

Se fizer uma visita a Roma preste atenção aos calhaus da história e não tropece nas estórias das imagens.

Depois de ter visitado a Igreja de San Pietro in Vincoli dirija-se para a escadaria dos Bórgias e detenha-se por alguns momentos viajando na história e nas lendas deste lugar.

Reza a lenda-histórica que foi neste local que Lucius Tarquinius Superbus protagonizou uma das mais hediondas histórias passionais romanas. Lucius terá matado a mulher, o irmão, o sogro e casado com a cunhada tornando-se o último rei do período monárquico (a.C. 534-509). Os factos históricos confirmam que Servius Tullio (sexto Rei de Roma entre c.578 e 535 a.C.) tinha duas filhas chamadas Tullia: Tullia Major e Tullia Minor e casou-as com os filhos do seu predecessor[1](Lucius que casou com Tullia Major e Arruns com Tullia Minor[2]). Desta união familiar Tullia Minor (a mais nova) ambicionava ser rainha e para tal envolveu-se com o cunhado (Lucius) prometendo-lhe que casaria com ele depois de afastar os mais directos sucessores (o seu irmão, Arruns, a cunhada, Tullia Major e o sogro; o Rei Servius Tullio). Reza a lenda que Tullia Minor vendo o pai em agonia, espojado no solo, passou com o carro puxado por cavalos por cima do corpo inerte. Suas ações fizeram dela uma figura infame na cultura romana antiga. Não é por acaso que este lugar ficou conhecido pelo “O Beco do Vilão” (Alley Scellerato).

Esta rampa também é conhecida pela escadaria Bórgia e pelo túnel que atravessa o Palácio de Vannozza dei Cattanei, senhora de uma estalagem em Campo dei Fiori cuja principal função era de satisfazer favores sexuais dos seus frequentadores incluindo a do amante, Rodrigo Bórgia (Papa Alexandre VI) e pai dos seus quatro filhos. Do Palácio resta uma pequena varanda ao gosto de “loggia veneziana” que apesar de ser um simples apontamento arquitectónico não deixa de exercer a todos os transeuntes – conhecedores da história da cultura e das artes – momentos de recriação histórica e protagonistas por breves instantes.

Regressemos à Igreja de San Pietro in Vincoli, percorramos a escadaria dos Bórgias, deixemos o chão conspurcado de ambição, traição e sangue dos últimos momentos da monarquia romana. Deixemo-nos levar pela emoção pela luz divina em Moisés e pelo último desejo de Júlio II: a construção de um mausoléu para última morada encomendada em 1505 e finalizada em 1545.

No lado direito da igreja, junto ao altar-mor, o túmulo de Júlio II é um conjunto decorativo e arquitetónico concebido por Michelangelo. A controvérsia da figura de Moisés, com dois chifres (ver análise desta obra com maior detalhe, aqui), aleado à forma como Júlio II foi retratado, numa pose reclinada, sedutora, porém comprometedora, leva-nos a analisar com maior detalhe a iconografia daquele dedo mindinho da mão direita de Moisés (fazendo salientar o músculo junto ao cotovelo). O que Michelangelo conhecia com detalhe era o estudo de anatomia. E o que toda Itália escarnava era no comportamento do Papa Júlio II que teve vários filhos (dos quais sobreviveu Felice della Rovere a mulher com maior influência e poder na época renascentista) e do seu gosto por “jovens e belos amantes” – segundo o cronista veneziano Giroliamo Priuli – “ele era um grande fã do 'vício sodomita' e gostava mais do sexo quando assumia o papel de passivo”. A vida do Papa Júlio II não era segredo para ninguém, ele viveu no Palácio Papal com o seu amante, Francesco Alidiosi, nomeado cardeal. Nunca esconderam as manifestações, sempre presentes, de afecto entre os dois. Até o diplomata veneziano, Marin Sanudo, compôs um soneto para a homossexualidade do Papa Júlio II. Em setembro de 2018, num artigo do New York Times intitulado "O problema da Igreja Católica com o sexo", o nome de Júlio II estava novamente referido. “Júlio II contraiu sífilis durante o pontificado, doença com predileção pelos padres, principalmente pelos ricos, como diziam na época do Renascimento”, relata o jornal americano. “Papa Julius II, conhecido como o Terrível. Um Papa gay que adoeceu com sífilis, nomeou o seu amante, cardeal, e viveu em excesso”.

Michelangelo sabia-o. Michelangelo conhecia o poder da arte...

Túmulo do Papa Júlio II

escultor: Michelangelo

obra: 1545

 

Texto © Luís Carvalho Barreira


Notas:

[1] Lucius Tarquinius Priscus (c. 616–578 a.C.)

[2] Túlia Menor é uma figura semi-lendária da história romana que pode ser encontrada nos escritos de Lívio, Cícero e Dionísio de Halicarnasso.

Reforma vs Contra-Reforma

Pasquale Cati (1550-1620)

O Concílio de Trento em 1545 e 1563

Fresco, 1588-1589

Igreja de Santa Maria em Trastevere, Roma

imagem: Wikipedia

Não foram só as práticas religiosas, os motivos de divergências entre Protestantes reformistas e Católicos. Os conflitos políticos entre autoridade da Igreja Católica Romana e os governantes das monarquias europeias em ascensão acentuaram-se. A Europa dos Estados começa a ganhar força de uma nova realidade política. Governados por monarquias absolutistas, estes desejavam para si, além do poder político, o poder espiritual e ideológico da Igreja e do Papa, muitas vezes para legitimar o direito divino dos reis.

A cobiça pelo quinhão despendido pelos crentes, com bulas e indulgências, fizeram com que as teses protestantes recolhessem o apoio de quase toda a sociedade incluindo a nobreza. Assim, a burguesia em crescimento, capitalista, sentia-se mais confortável aderindo às teses protestantes, que não olhavam para a usura como um comportamento ético condenável ao contrário da Igreja Católica Romana e os mais pobres viam nas teses protestantes uma nova liberdade espiritual. A Reforma Protestante exorta o regresso aos valores cristãos de cada "indivíduo". Segundo Bernard Cottret, "a reforma cristã, em toda a sua diversidade, aparece centrada na teologia da salvação. A salvação, no Cristianismo, é forçosamente algo de individual, diz mais respeito ao indivíduo do que à comunidade", ao invés da pregação romana que defende a salvação na igreja. Assim, Martinho Lutero, no dia 31 de Outubro de 1517, proferiu três sermões contra a "avareza e o paganismo" na Igreja romana, condenando as indulgências, a riqueza ostentatória da igreja católica romana, e foram pregadas as 95 Teses na porta da Catedral de Wittenberg. Este facto é considerado como o início da Reforma Protestante.

Após a Reforma Protestante protagonizada por Martinho Lutero na Alemanha (Luteranismo), Calvino em Genebra (Calvinismo), Menno Simons em Zurique (Anabistas) e Henrique VIII em Inglaterra (Anglicanismo), o Papa Paulo III viu-se obrigado a convocar o Concílio de Trento como resposta à Reforma Protestante que se expandia no território europeu.

Contra a crescente disseminação das ideias protestantes, nomeadamente no centro e norte da europa, provocando a maior divisão no seio do cristianismo, a Igreja Católica Romana convocou o Concílio de Trento, que resultou no início da Contra-reforma ou Reforma Católica, na qual os Jesuítas tiveram um papel importante. O Concílio de Trento, realizado de 1545 a 1563, é conhecido como Concílio da Contra-Reforma. Neste Concílio tridentino todo um corpo de doutrinas católicas havia sido discutido à luz das críticas protestantes. Após dezoito anos de trabalho, interrompido várias vezes, os teólogos elaboraram os decretos que depois foram discutidos pelos bispos em sessões privadas, tendo sido promulgadas solenemente em sessão pública em 1562.

O Concílio de Trento não só condenou, como definiu o pecado original recuperando entre outras medidas o Tribunal do Santo Ofício (inquisição) e a criação do Index Librorum Prohibitorum (Lista dos Livros proibidos) com uma relação de livros proibidos pela igreja. Outras medidas incluíram a reafirmação da autoridade papal, a manutenção do celibato, a supressão de abusos envolvendo indulgências e a adopção da Vulgata como tradução oficial da Bíblia.

A Arte, a partir de então, deverá estar sob controlo da Igreja Católica com directrizes bastante rígidas apelando à compaixão, ao sofrimento, à dor, à tristeza, à caridade, ao amor por Deus. A arte Barroca será dominada pelo esmagamento do observador perante a teatralidade e a imponência dos espaços. O corpo renascido da Antiguidade Clássica dará lugar ao corpo elegíaco do Barroco.

Fyllis e Aristóteles

Lucas Cranach, o Velho

Phyllis e Aristóteles, 1530

Durante a Idade Média eram muito populares os contos de carácter moralista (cautionary tales[1]) que satirizavam principalmente comportamentos sociais. A popularidade destes contos, nomeadamente a lenda de Aristóteles e Phyllis, estão representados em inúmeros desenhos, gravuras, litogravuras e mesmo em esculturas desta época. Estas imagens comungam da mesma mensagem: que o pecado original quando associado ao poder e à sedução feminina subjuga, humilha, castiga o homem. Segundo São Paulo (5-67 d.C.) na primeira Carta a Timóteo, diz: A mulher deve aprender em silêncio e ser submissa - Não admitido que a mulher dê lições ou ordens ao homem. Esteja calada, pois, Adão foi criado primeiro e Eva depois. Adão não foi seduzido pela serpente; a mulher foi e cometeu a transgressão[2]. São Tomás de Aquino (1225 – 1274) repete e amplia o mesmo pensamento discriminador: O homem está acima da mulher, como Cristo está acima do homem. É um estado de coisas imutáveis que a mulher esteja destinada a viver sob a influência do homem[3] acentuando assim a misoginia medieval e a culpabilidade da mulher.

Em 1386, o poeta inglês John Gower incluiu um resumo do conto no Confessio Amantis[4] uma colecção de histórias de amor imorais. Gower ironiza dizendo que a lógica e os silogismos do filósofo (Aristóteles) não o salvam.

I syh there Aristotle also,
Whom that the queene of Grece so
Hath bridled, that in thilke time
Sche made him such a Silogime,
That he foryat al his logique;
Ther was non art of his Practique,
Thurgh which it mihte ben excluded
That he ne was fully concluded
To love, and dede his obeissance

A lenda de Aristóteles e Phyllis tem vários relatos e interpretações, mas o conteúdo moralista permanece em todas elas: Aristóteles aconselhou Alexandre (O Grande), seu aluno, a evitar a amante sedutora Phyllis[5] — que ele trouxera da Índia numa das suas conquistas — porque o distraía na sua aprendizagem.

Phyllis sentiu-se preterida e desencadeou um jogo de sedução ao mestre, Aristóteles. Phyllis passou a deambular no jardim com umas vestes transparentes deixando a descoberto o corpo esbelto despertando o desejo do velho mestre. Seduzido e enlouquecido por amor e desejo, Aristóteles cedeu à tentação de Phyllis. Então, Phyllis propôs ao velho mestre, como prova de amor, que gostaria de montá-lo, como se fosse um cavalo e ela pudesse desempenhar o papel de “dominatrix”; para tal, deveria gatinhar e relinchar quando ela brandisse o chicote nas suas nádegas. Embrutecido pelo ardor concupiscente, Aristóteles concordou com a proposta. A cilada estava montada, Phyllis tinha secretamente dito a Alexandre que testemunhou o acto vexante. Estupefacto com a ousadia do mestre, Alexandre terá retorquido: — Quem fazeis vós nesses propósitos? (acompanhado por risos de troça de todos observadores).

Aristóteles terá respondido: — De nada serve o conhecimento, a razão, nem a provecta idade perante uma jovem sedutora que quis provar que os encantos de uma mulher poderiam superar o intelecto masculino do filósofo. Meu estimado príncipe, se um velho homem foi enganado por causa do amor (eros) veja o que lhe pode acontecer nas mãos de uma mulher.

 

George Pencz, Aristóteles e Fyllis. 1530

George Pencz, Aristóteles e Fyllis. 1530

Woodcut of Aristotle ridden by Phyllis by Hans Baldung, 1515

Woodcut of Aristotle ridden by Phyllis by Hans Baldung, 1515

Aquamanile in the Form of Aristotle and Phyllis, late 14th or early 15th century, Metmuseum

Aquamanile in the Form of Aristotle and Phyllis, late 14th or early 15th century, Metmuseum

texto: 2018 © Luís Carvalho Barreira


[1] A cautionary tale is a tale told in folklore, to warn its listener of a danger. There are three essential parts to a cautionary tale, though they can be introduced in a large variety of ways. First, a taboo or prohibition is stated: some act, location, or thing is said to be dangerous. Then, the narrative itself is told: someone disregarded the warning and performed the forbidden act. Finally, the violator comes to an unpleasant fate, which is frequently related in expansive and grisly detail. in Wikipedia

[2] Timóteo 2: 11-14.

[3] Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica. VOL II. São Paulo: Edições Loiola Edição bilíngue, 2002, 1.92.1 p 611.

[4] Aparece no poema sobre Apolónio de Tiro (Livro 8, 271-2018).

[5] Phyllis também é descrita como amante de Alexandre, ou possivelmente esposa, em vez da esposa de seu pai.


Quentin Matsys, O Usurário e sua Esposa, 1514

Quentin Matsys (Leuven, 1466 — Antuérpia, 1530)O Usurário e sua Esposa, 1514Pintor Flamengo

Quentin Matsys (Leuven, 1466 — Antuérpia, 1530)

O Usurário e sua Esposa, 1514

Pintor Flamengo

Um dos grandes pintores do fim do século XV início do século XVI que se caracterizava por um grande sentimento religioso misturado de um realismo crítico patenteado nas formas grotescas apresentadas. Muitas das suas obras enfatizam a caricatura como forma de crítica exposta na expressão melancólica das figuras, nos gestos brutais dos carrascos ou na actividade usurária dos banqueiros.

O usurário e a sua mulher” não representa somente a actividade económica de um prestamista, ele é também uma sátira religiosa, pondo em confronto os mandamentos da Lei de Deus, que condenava a usura, representada neste quadro pela Bíblia que a esposa atentamente folheia, e a bondade do trabalho do marido. As muitas obras de Quentin Matsys retratando as respeitáveis actividades de cambistas, ourives e banqueiros, eram acompanhadas de um sentido crítico que podemos adivinhar num dos seus retratos mais famosos: A Duquesa Grotesca, quiçá, o quadro mais conhecido do pintor. A improbabilidade deste retrato não ser verdadeiro, ou melhor, corresponder à beleza retratada, é-nos sugerida pelo lado grotesco da pessoa representada que alguns historiadores atribuem a uma caricatura de Margareth, Condessa do Tirol.

Será?...

Quentin MatsysDuquesa grotesca (A Grotesque old woman), 1513óleo em carvalho (64.2 × 45.4 cm)National Gallery

Quentin Matsys

Duquesa grotesca (A Grotesque old woman), 1513

óleo em carvalho (64.2 × 45.4 cm)

National Gallery

O Inferno

Autor desconhecido, O Inferno, século XVI.Óleo sobre madeira de carvalho, 119X217.5 cm.Museu Nacional de Arte AntigaDe autor desconhecido. É uma pintura a óleo em suporte de madeira de carvalho. Proveniente de Convento extinto em 1834. Esta pintura …

Autor desconhecido, O Inferno, século XVI.

Óleo sobre madeira de carvalho, 119X217.5 cm.

Museu Nacional de Arte Antiga

De autor desconhecido. É uma pintura a óleo em suporte de madeira de carvalho. Proveniente de Convento extinto em 1834. Esta pintura foi já atribuída, por vários historiadores, a Jorge Afonso ou ao Mestre da Lourinhã. Apontamos para outras geografias. Seguramente obra do início do século XVI e dado os materiais e técnicas utilizadas, a modelação formal e estética das figuras, na representação da perspectiva aérea (colocando o observador num ponto de vista superior), assim como toda a iconografia apresentada parece-nos mais próximas da pintura flamenga[*] da altura (transição do século XV/XVI).


[*] Muitos pintores, discípulos e seguidores, inspiravam-se, ou copiavam, os grandes mestres da pintura flamenga dada a crescente procura e popularidade das suas obras. O rei Filipe II (Filipe I de Portugal) guardava no seu acervo 30 obras de Bosch.

A carga apologética que a pintura “O Inferno” veicula, deverá ser lida numa perspectiva temporal (entre o início da Idade Média até ao Renascimento) onde o dialéctica moralista termina quase sempre num “Juízo final”. Fruto das novas organizações políticas resultante da queda do Império Romano as práticas e comportamentos sociais ancestrais, decorrentes de condutas pagãs, foram vistas como ameaça à coesão social e ao poder evangélico da Igreja Católica. Assim, o corpo e a sexualidade foram considerados como factores de desagregação da célula comunitária: a família. Esta preocupação não é nova. Poderíamos evocar o decreto do senado romano senatus consultum de Bacchanalibus[1] (186 a.C.) a proibir os Bacanais (festividades), ou, ainda, Santo Agostinho (354 d.C. a 430 d.C.), um dos principais doutores da igreja, desvalorizando o corpo: “sede de tentações, da animalidade e do pecado”. A sexualidade permanecerá associada ao sentimento de culpa, de pecado, e ficará ligado sempre à mulher. Procedente da herança greco-romana e do mito de Pandora[2], potenciado pelo pecado original da Eva (judaísmo/cristianismo), a mulher transformou-se numa ameaça à alma passando a ser um distrate ao exercício da razão. Assim, na Idade Média a mulher está intimamente ligada quer ao mal, quer ao erotismo, e será o elo entre a sensualidade e o mundo mágico. A mulher medieval passou, então, a habitar este espaço de desejo e de condenação. 

A importância dada à coesão social, por parte da Igreja Católica, fez com que passasse a condenar com maior veemência comportamentos ligados ao maior dos “sete pecados mortais”: a Luxúria. Os outros pecados (Gula, Avareza, Preguiça – Ira, Inveja e a Soberba) foram hierarquizados segundo o género e a importância social; os primeiros assacados aos homens e os últimos às mulheres. Paralelamente, numa época assolada por várias calamidades como a fome, a peste negra, as guerras, reforçaram o temor; o temor divino. Não admira que a figura do Inferno e do Diabo ganhe um potencial moralizador nos indivíduos, nas famílias, nas sociedades e, por último, nas comunidades, através do medo. Nas artes o Medo ganha corpo, um corpo imagético através do risível; na literatura é a figura do Louco[3] (e a loucura) que ganha protagonismo; e na música (as letras e a poesia) foi introduzida a sátira de mãos dadas com os prazeres mundanos, que o codex buranus[4] é o principal exemplo conhecido. É toda uma imagética que se desenvolve em torno do Grotesco, do Louco e da Mulher, onde toda a cultura medievo ocidental assenta, dando ênfase, segundo Bakhtin, “nas partes do corpo em que ele se abre para o mundo exterior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz[5]”. É toda uma iconografia de índole erótico/pornográfico que se desenvolve na ornamentação escultórica (nomeadamente nos cachorrões) de algumas igrejas românicas; é no grotesco presente nas ilustrações (iluminuras) e gravuras dos livros; é no absurdo, no fantástico, no imaginário, que a pintura apresenta numa desarmonia do gosto (disgusto) ganhando acuidade na provocação do riso, do espanto, do horror e da repulsa. As pinturas como a doHieronymus Bosch e Pieter Brueguel enquadram-se dentro realismo grotesco popular, que rompe barreiras, que não é perfeito, que ultrapassa os limites, tornando-se “uma radiografia do real, desconstruindo as representações ideais, apresentando o conflito entre a cultura e a corporalidade[6]”. É uma realidade tornada verosímil, tão real e credível que o inferno passou a existir com todos os seus seres saídos do imaginário humano. É partindo destes pressupostos que olhamos para o nosso quadro, o Inferno, exposto no MNAA.

No centro do quadro um caldeirão cheio de frades, identificados pelo tipo “tonsura[7]”, deixa-nos apreensivos quanto ao destinatário a censurar. Frades franciscanos? Talvez os Goliardos (clerici vagantes) egressos das comunidades religiosas. Estes Goliardos, Frades vagabundos, de espírito transgressivo e provocador frequentavam as tavernas onde declamavam os seus poemas satíricos, denunciando os abusos da própria igreja, ou poemas eróticos bastantes ousados. Os seus dotes de oratória eram convincentes, principalmente quando dava lugar ao festim (ver: in taberna quando sumus: Carmina Burana). Talvez sejam os principais visados nesta condenação... e no Inferno (pintura) o mal está concentrado num espaço escuro, inventariado, e exibido num espectáculo de tortura quase teatral. Vários seres demoníacos habitam este espaço de castigo e tortura. Contámos oito, entre os quais dois são femininos: quiçá, os súcubos, muito populares na Idade Média, que atacavam os homens durante os seus sonhos para a prática de sexo. Os restantes demónios, os íncubos, que são geralmente descritos, na literatura medieval, como seres baixos, peludos e com rosto, por vezes, de animal. Estas figuras ganham destaque e importância iconográfica no contexto pictórico.

Deixemo-nos perder pelo olhar: três jovens penduradas de cabeça para baixo deixam a descoberto os longos cabelos afagados pelo fogo há cadência da trompa de um demónio, provavelmente o verdadeiro demónio. Enquanto tiramos algumas notas e realizamos um rápido esboço dos corpos lascivos, interrogamo-nos: será que tais personagens aparecem só para censurar o corpo e, por conseguinte, levar estes pecadores à condenação? Não. A leitura feita por qualquer humilde católico causticado pelos instintos sexuais, ligando a carne ¾ corpo ¾ não passa de ensinamentos recebidos pela Igreja que mais não fez do que exacerbar o pecado por intermédio da culpa. Um sentimento de culpa omnipresente testemunhado por um demónio sentado num trono. Sob a sua vigilância atenta, adornado de penas garridas e coroa de plumas, presencia, perversamente, o desenrolar das diversas torturas de uns tantos pecadores. À medida que vão caindo novos penitentes no inferno, por uma forma circular no canto superior direito, um outro demónio, arreado de penas, surge do lado direito carregando outro frade para o caldeirão deixando-nos perplexos em vislumbrar os misteriosos pecados cometidos. Se a figura dos frades ganha uma importância central nesta pintura, ela não deixa de evocar todos os pecados mortais representados por figuras femininas e masculinas que estão a ser torturados por entes demoníacos: o Mal. Assim, no canto superior esquerdo, três mulheres nuas penduradas numa trave, de cabeça para baixo, são queimadas lentamente sobre um fogareiro ateado pelo fole de um demónio, representando, supostamente, a ira, a inveja e a soberba. Sendo estes pecados aqueles que provêm de estados de “alma”, de condenações morais são, a maior parte das vezes, associados às mulheres.

Distribuídos com um superior realismo, encontram-se mais três figuras masculinas nuas, agrilhoadas pelo pescoço, a serem torturados por Demónios, ou figuras femininas demoníacas. Ao lado do fogareiro, objecto de suplício já referido, um Demónio enfia moedas pela boca de um nu masculino deitado; um outro, segurando um fole de carneira, despeja o conteúdo, provavelmente vinho, por um funil que conduzirá à boca do outro pecador; por último, em primeiro plano, um terceiro Demónio tortura um corpo jovem deitado em sentido inverso com a cabeça rapada e reclinada (representando a falta de dignidade e honra, característico dos que nunca se esforçaram) dando-lhe um ar sonolento e adormecido próprio daqueles que nunca experimentaram a incomodidade e o sofrimento. Cada uma delas apresenta na metodologia da tortura notas distintivas dos respectivos pecados que representam: avareza, gula e preguiça que são um dos mais censuráveis por parte da Igreja e estão associadas aos pecados dos homens. 

Há medida que o tempo passa assistimos ao desenlace pecaminoso, no lado oposto (canto inferior direito), destaca-se uma jovem mulher nua, de longos e ondulados cabelos, seios gentis, reclinada sob o cotovelo esquerdo que repousa sobre no peito de um frade, mostrando o seu ócio com o qual se fomenta em grande parte o desejo. Aparece, também, presa pelo braço esquerdo a um homem, o que manifesta a contagiosa libidinosidade desta figura, provocando um aumento e uma excitação da luxúria daquele que lhe está amarrado: o amante. O plano destacado que esta figura assume no conjunto da composição quer pela representação estilística, quer pela interpretação iconográfica, resulta da Luxúria ser incitadora e a via de acesso ao Inferno constituindo a escola onde se aprendem todos os crimes e onde se perdem todas as virtudes. Empurrada por um Demónio (de aparência feminina) a Luxúria aparece como o pior dos pecados (é de salientar que o Nu - Luxúria - aparece substantivamente na composição como o Pecado) aquele que é mais difícil dominar por contraposição aos restantes pecadores representados que, esses sim, por serem encarnações humanas aparecem dominados e castigados por diferentes formas. A Luxúria encarna o desejo desenfreado que leva à destruição e à morte do próprio objecto desejado - domínio dos sentidos sobre a razão. Assim, os pecados sexuais fazem parte do mundo dos rejeitados que muito dificilmente poderiam ascender ao novo além - o Purgatório. O pecado da carne tem o seu território, tanto na terra como no Inferno e, segundo Jacques Le Goff, é “filha do Diabo e limita-se a ser prostituta que Satanás oferece a todos”. O sistema dos sete pecados mortais instaura em última instância a unificação dos pecados da carne que passa a ter um nome - O INFERNO. 

 

 Texto extraído da Tese de Mestrado (Teorias da Arte, FBAUL), 1999

1999-2015 © Luís Carvalho Barreira


[1] Em 186 a.C. o senado romano promulgou um decreto (senatus consultum de Bacchanalibus) a proibir as Bacanais, festividades em rápida propagação que, segundo Tito Lívio (c. 59 a.C. — 17 d.C.), era um culto no qual ocorriam as mais grotescas vulgaridades, bem como todo tipo de crimes e conspirações políticas nas suas sessões nocturnas. O incumprimento deste decreto, do Senado romano, proibindo estas festividades em toda Itália, com a excepção de casos particulares aprovados pelo Senado, levou à perseguição e condenação de muitos dos praticantes. Apesar do castigo ser severo, reservado aos prevaricadores, (segundo, Tito Lívio, houve mais execuções do que encarceramentos) as festas sobreviveram, principalmente, no sul de Itália.

[2] Na concepção grega, Pandora, fora um presente dado aos homens por Zeus, foi a razão de todos os males na terra.

[3] Stultifera Navis (A Nave dos Loucos), de Sebastian Brant. 1494; Navicula stulterum mulierum (1498), de Josse Bade; La Nef des Folles (c. 1500), de Jehan Drouyn

[4] Carmina Burana (Códice séc. XI-XIII). Um manuscrito de 254 poemas e textos dramáticos, datados, em sua maioria, dos séculos XI e XII, sendo alguns do século XIII.  As peças são, em geral, picantes, irreverentes e satíricas.

·     Carmina moralia et satirica (1-55), de caráter satírico e moral;

·     Carmina veris et amoris (56-186), cantos primaveris e de amor;

·     Carmina lusorum et potatorum (187-228), cantos orgiásticos e festivos;

·     Carmina divina, de conteúdo moralístico-sacro (parte que provavelmente foi adicionada já no início do século XIV).

·     Ludi, jogos religiosos.

·     Supplementum, suplemento com diferentes versões dos carmina.

[5] BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no renascimento: O Contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 5 ed. São Paulo: Annablume, 2002. Pag. 23.

[6] SODRÉ, 2002. Pág. 60

[7] De acordo com a Enciclopédia Católica existiam três tipos diferentes, cada um ligado a um apóstolo específico: o romano, ou o de São Pedro, quando a parte de cima da cabeça é raspada deixando apenas um círculo de cabelo em baixo e na frente; o grego, ou de São Paulo, quando toda a cabeça é raspada; o celta, ou de São João, quando apenas uma parte de cabelo é raspada na frente da cabeça.

[1] Muitos pintores, discípulos e seguidores, inspiravam-se, ou copiavam, Bosch dada a crescente procura e popularidade das suas obras. O rei Filipe II guardava no seu acervo 30 obras de Bosch.

François Clouet, Carta de amor, 1570

François Clouet foi considerado o maior pintor e desenhista francês da segunda metade do século XVI e um dos maiores nomes da Escola de Fontainebleau. François Clouet, pintor da corte de Francisco I, afirmou-se como retratista e também de obras de carácter histórico e mitológico.

“A carta de amor” é um dos quadros mais intrigantes e mais belo de François Clouet. A relação que se estabelece entre as personagens e a própria carta (objecto da atenção do observador) atribui-nos o papel principal na pintura: a de participante. “A carta de amor” terá sido escrita por nós?

François Clouet, Carta de amor. 1570

François Clouet, Carta de amor. 1570

Rafael, Escola de Atenas, 1506-10

A “Escola de Atenas”, cujo nome original Causarum Cognitio (Conhecer as Coisas) se manteve até ao século XVII, faz parte de um conjunto de quatro pinturas (frescos): “as quatro faculdades clássicas do espírito humano” – A Verdade, O Racional, O Bem e O Belo. Os frescos de Rafael, localizados na Sala da Assinatura outrora destinados à biblioteca privada do Papa Júlio II, assinalam de uma forma singular o pensamento neoplatónico renascentista.

1506-10_Rafael_Academia-neoplatonica.jpg

Numa das paredes o Bem está representado pelas Virtudes Teológicas da Lei e na parede contrária, por oposição, o Belo revelado por Apolo e as Musas no monte Parnaso. A Verdade teológica ilustrada pela "adoração ao Santíssimo Sacramento" ocupa a parede oposta à Escola de Atenas representando o pensamento Racional. Em suma, a Verdade é adquirida através da razão cujas personagens centrais, Platão aponta para o céu enquanto segura o seu livro “Timeo”, caminhando em diálogo com Aristóteles contendo a “Ética”, personificam os pensadores da Antiguidade Clássica e, simultaneamente, o tempo de Rafael. Todas as figuras estão dispostas em planos diferentes ganhando não só o destaque pretendido, como também reforçam a harmonia e o equilíbrio da composição pictórica. O desenho subjacente às formas, o realismo anatómico, põe a nu a perícia técnico-formal característica da pintura renascentista. O recurso ao claro-escuro das roupas reforça a tridimensionalidade das formas. Assim, Rafael sem recorrer à ilustração socorre-se de figuras alegóricas, técnica recorrente nos séculos XIV e XV, deambulando-se por um espaço arquitectónico, numa espécie de trompe l’oeil, onde destacamos um arco perfeito em toda a sua plenitude abrindo o espaço para uma perspectiva linear decorada com mais diversos elementos clássicos; desde as esculturas greco-romanas inseridas em nichos (Apolo à esquerda e Minerva à direita), a abóbada de berço, uma cúpula ao centro, terminando num arco de triunfo convocando o olhar para o infinito. Perante esta composição expansiva, o espectador é convocado a percorrer demoradamente todo o espaço onde se desenrola a acção. Toda esta atmosfera é explorada por Rafael submetendo o espaço pictórico às leis do plano permitindo que as personagens retratadas ganhem um estatuto especial segundo a iconografia apresentada. Além disso, Rafael fazendo a síntese entre a Verdade e o pensamento Racional, retrata as celebridades de modo a permitir observar a explicação: Pitágoras é representado de lado, deixando antever o diatessaron; reclinado nos degraus da escada, Diógenes sugere a leitura dos antigos filósofos gregos; à sua frente, Eráclito, o filósofo pessimista; à direita, Euclides ensina geometria enquanto Zaratustra segura o Globo Celestial e Ptolomeu o Globo Terrestre, junto a estes, quiçá, o próprio Rafael.

Por tudo isto, a “Escola de Atenas” é considerada uma obra icónica do renascimento.

 

1990 © Luís Carvalho Barreira

Madonna amamenta o menino

À direita
S. Jerónimo. 
A preparação literária e a ampla erudição permitiram que Jerónimo fizesse a revisão e a tradução de muitos textos bíblicos. Assim, constitui a chamada "Vulgata", o texto oficial da Igreja latina, que foi reconhecido como tal pelo Concílio de Trento e que, depois da recente revisão, permanece o texto oficial da Igreja de língua latina.
São Jerónimo é conhecido não apenas pela tradução da Bíblia mas também por sua obra em defesa do Dogma da Virgindade Perpétua da Virgem Maria. 

À esquerda
Ecce Agnus Dei, ecce Qui tollit peccatum mundi (Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo): Expressão usada por S. João Batista.

Andrea del Brescianino (século XVI)Madonna amamenta o meninoMuseo d'Arte SacraSiena

Andrea del Brescianino (século XVI)

Madonna amamenta o menino

Museo d'Arte Sacra

Siena

Desenho, a mãe de todas as artes

Apresento-vos um desenho da “Virgem e do menino” feito por Miguel Ângelo. Tendo como base o Desenho, a mãe de todas as artes, Miguel Ângelo segue os cânones clássicos valorizando as etapas subsequentes desta disciplina: a Ideia, o esquisso, o modelo, o desenho do modelo e o claro/escuro

MICHELANGELO Buonarroti, desenho, 1522.

MICHELANGELO Buonarroti, desenho, 1522.

O primeiro registo da palavra Desenho com o sentido de projecto foi em 1548 na obra Diálogos em Roma do pintor e humanista português, Francisco de Holanda. ''O desenho, a que e outro nome se chamam debuxo, nele consiste e é a fonte e o corpo da pintura e da escultura e da arquitetura e de todo outro gênero de pintar e a raiz de todas as ciências.*" 


*(HOLANDA, Francisco de, "Diálogos em Roma", Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p.61)