Brueghel - Luta entre o Carnaval e a Quaresma

Pieter Brueghel, o Velho, Combate entre o Carnaval e a Quaresma, 1559

Museu de História da Arte em Viena, Viena.

Em 1559, Brueghel, o Velho, pinta o quadro O Combate entre o Carnaval e a Quaresma. Segundo as melhores interpretações da História da Arte, Brueghel reproduz uma cena festiva, na praça de uma cidade, com os habituais festejos que marcam, supostamente, o fim da Quaresma e o advento da Páscoa. É uma pintura que retrata outra realidade para além do que o título nos possa sugerir. O combate simulado entre o Carnaval e a Quaresma, não são entre dois momentos festivos, um pagão e o outro cristão, são, sobretudo, a luta que se fazia sentir entre a Reforma Protestante e a Igreja Católica. Trata-se de uma sátira política e religiosa que os Países-baixos estavam envolvidos. A Holanda espanhola como era conhecida pela Pragmática Sanção[1] (1549) do Imperador do Sacro Império Romano Germânico, Carlos V, e agora administrado pelo seu sucessor Filipe II de Espanha, católico e adepto confesso da Contra-Reforma[2], encontra-se subjugada aos interesses espanhóis. Os flamengos procuraram sempre afirmar-se, quer ao nível político, quer religioso, levando-os, mais tarde em 1566, à revolta iconoclasta conhecida por Beeldenstorm (“tempestade das estátuas”). A destruição de imagens religiosas, estátuas, das igrejas católicas são o símbolo da afirmação de um povo, sob o domínio político, religioso e económico de um rei espanhol (católico) que procurou suprimir o calvinismo na Flandres. É neste contexto que nos devemos posicionar e observar atentamente a obra de Brueghel (uma leitura possível)...

O artista representa, aqui, uma metáfora sobre a ambiguidade do ser humano, sobretudo, do homem cristão, dividido entre as tentações dos prazeres mundanos e o compromisso com a moderação das paixões desenfreadas. É uma pintura caricatural de uma sociedade dividida entre a austeridade, que deveria caracterizar o homem católico, e os prazeres da gula e da carne. É entre a abastança e a indigência, a verificar pelos muitos mendigos, pobres, estropiados, que ocupam lugar de relevo na pintura. É essa a penúria, verificada, principalmente, à saída da igreja que procura caridade alheia. É esta a batalha da consciência humana que Brueghel retrata. Um confronto entre opositores sem armas, sem armaduras, sem cavalos; apenas com os atributos (satíricos) que fazem deles o foco da nossa atenção.

Do lado direito, um séquito encabeçado por uma figura masculina, magra, vestida com uma túnica e de cabeça coberta por lenço, suporta uma colmeia sinónimo de cooperação e de ordem. Ele é transportado, por um frade que deixa a tonsura a descoberto e uma freira, numa carriola vermelha empunhando uma pá com dois pequenos peixes. Na outra mão um ramo. À medida que a procissão passa ao som das matracas empunhadas por jovens seguidores, figuras de trajes diferenciados estendem a mão, doando algo, aos mendigos que fazem alas para “verem” o cortejo passar. Na cauda do desfile várias freiras; uma com um terço, outra com uma Bíblia, e as restantes empunhando ramos. Na cauda do cortejo, uma banca à entrada da igreja cobra algumas indulgências e até a figura de Cristo crucificado aparece deitado numa almofada com umas moedas à sua ilharga. Tudo e todos se servem da caridade alheia. Na penumbra da igreja ainda se pode descortinar um padre a abençoar um crente que acaba de se confessar. É o triunfo do divino; é a vitória sobre a imperfeição simbolizada pela saída desordenada das pessoas, de cabisbaixo, enquanto outras transportam cadeiras à cabeça saindo pela porta lateral da igreja. São [possivelmente] os hereges. São aqueles que teimam reformar a Igreja, das suas práticas e do seu sacerdócio. Brueghel não coloca o problema entre o Bem e o Mal, mas sim numa disputa social travada através do humor, da sátira, da alegria e do riso: um riso ritual como o enigmático casal que se passeia de costas no centro do quadro. Mas que linda metáfora. Ele faz-se acompanhar de uma espada e de uma adaga, enquanto a mulher leva à cintura uma lanterna.

É neste sentido que, no lado esquerdo da pintura, entre o gozo protagonizado pelo anafado taberneiro, que equilibra na cabeça uma tarte de galinha (a julgar pela sugestiva pintura), é puxado por um empregado em cima de um pipo de vinho que serve de charrua. É uma figura grotesca segurando um espeto com uma cabeça de porco, uma galinha e outras iguarias assadas. Ele é seguido por um séquito de outras personagens e todas elas oferecendo os prazeres da gula, os deleites da vida. A música é diferente, contrastando com o estalejar das matracas, os instrumentos são outros: ao som do sarronca e acompanhada à viola marcando o compasso de todos personagens que parecem anunciar os prazeres da vida. Se dignidade se encontra pela aparência da cabeça coberta ela transporta também os atributos sociais, ou, metaforicamente, o que lhes vai na cabeça. Todas figuras têm a cabeça coberta, ou quase todas: as crianças, os mendigos e uma mulher junto a uma tenda improvisada. Se a dignidade se pode ajuizar pela aparência não é por acaso que os pedintes descobrem a cabeça, num acto de submissão, assim como a velha megera que convida um cliente para dentro da sua tenda representando a luxúria por oposição à observância da Igreja. O quadro não estaria completo se não evidenciasse-mos as crianças que brincam, que jogam à panela de barro, lançam o pião; os homens que se entregam ao jogo de sorte ou azar; as mulheres que amanham o peixe junto ao poço; os curiosos à janela; o beijo roubado à janela da estalagem; o balde de água despejado na cabeça de um exibicionista bebendo; a autoridade cobrando impostos; a mão dada ao amado dentro de casa; a vida doméstica; o desfile de uma confraria transportando uma haste com um ramo, fazem parte de uma realidade que Brueghel nos quer contar. Há um ponto comum em toda esta discrição: o ramo, o Ramo de oliveira (o dia triunfal, a entrada de Cristo em Jerusalém).

O Carnaval (na pintura de Brueghel) é esse homo festivus[3] é um homo ridens que ganha importância no episódio "a Luta entre o Carnaval e a Quaresma".

Acreditamos que Brueghel aproveita, o “Domingo de Ramos” para nos registar a vida social em particular utilizando a força da sátira. O triunfo das ideias humanistas sobre o determinismo religioso e da opressão política. Em epílogo, Brueghel assina o quadro na pedra que serve de mesa ao jogo de dados. Quiçá, Brueghel é o homem que ostenta um capuz de carrasco...

 

1998-2023 © Luís Carvalho Barreira




Notas:

[1] É a designação tradicionalmente dada a toda a norma ou disposição legal promulgada de forma solene por um absoluto que disponha sobre aspectos fundamentais do Estado, regulando questões como a sucessão no trono, as matérias de religião de Estado e outras. Na história do Sacro Império Romano-Germânico refere-se mais especificamente a um édito emitido pelo imperador. In Wikipedia

[2] Concílio de Trento realizou-se entre 1545-1563.

[3] H. Cox, Las fiestas de los locos. Ensayo sobre el talante festivo y la fantasía, Madrid, Taurus, 1983.