risus paschalis

risus paschalis

 

Sabemos que o riso foi (quase) sempre encarado pela igreja fonte de contaminação da alma. “Muito riso pouco siso” é o ditado popular que faz jus à moral cristã. Porém, durante muitos séculos foram tolerados comportamentos desviantes (adjetivação minha) em certos rituais, festas, enraizadas na cultura popular dos povos cristãos. Uns advêm de festividades pagãs (Saturnália, Lupercália), outros foram integrados e tolerados nas práticas religiosas.

Para os cristãos a morte de Cristo não é o fim em si mesmo, mas sim a libertação, a alegria em absoluto. É o culminar da mensagem divina que fez do homem o seu semelhante. É o dar-se a conhecer à imagem do homem e orientar os nossos olhares para palavra de Deus verdadeiramente piedoso, temente a Deus, e preocupado com a sua salvação. A redenção de cristo é por isso um motivo de alegria. Para expressar a vida nova inaugurada pela Ressurreição, dizia esta tradição, nada melhor que apelar para a fonte de onde nasce a vida humana: a sexualidade e o prazer que a acompanha.

O Homem é o único animal que ri. Rir é uma forma de exorcização das imperfeições. O riso acompanha o choro que, quando de forma colectiva, dá lugar a formas de convivência entre o Drama e o Júbilo: as primeiras manifestações na Antiguidade Clássica são a Tragédia Grega e as Festas Dionisíacas. Nascia o Teatro conforme hoje o concebemos. Brota da representação do corpo que está ligada a este conceito idiossincrático da vida[1]. O riso acontece naturalmente com carácter transformador e redentor. Mas não é alegria estúpida, a gargalhada, – inepta laetitia, segundo, Hugo de São Vitor – acompanhada de movimentos exagerados do corpo ou que eles possam sugerir relações concupiscentes. O riso fora condenado durante a Idade Média porque ele contamina a alma. Porém, para São Bernardo de Claraval separa o que nos faz sorrir (risus) e a gargalhada (cachinatio) que teria uma conotação demoníaca. A alegria brilha com a explosão do amor espiritual em cada palavra, olhar: um riso pleno de honestidade. Não era este riso que durante muitos séculos se celebrava na segunda-feira pascal: o risus paschalis costume encontrado já em 852 em Reims, em França, e se estendeu por quase toda a Europa. Em 1911 na Alemanha ainda havia locais onde se verificava tais costumes.

Todos fiéis eram convidados a partilhar da alegria de Cristo ter ressuscitado celebrando a vida, que se renova todos os anos à semelhança da Natureza. Segundo a teóloga Maria Caterina Jacobelli esta festa significa a presença do prazer sexual no espaço do sagrado, na celebração da maior festa cristã, a da Páscoa. De acordo com Bakhtin, a tradição antiga permitia “o riso e as brincadeiras licenciosas no interior da igreja na época da Páscoa. Já do púlpito, o padre liberava aos fiéis toda a sorte de brincadeiras como histórias alegres com um tom carnavalesco referente à vida material e corporal. A alegria surgia como um meio de extravasar as energias acumuladas após um longo período de contenção, jejum e abstinência sexual: o riso era autorizado, da mesma forma que os alimentos até então interditos, bem como a vida sexual”. Estes costumes, mesmo que pontuais, durante a Idade Média eram lembradas através dos cachorrões (com figuras grotescas em posições sexuais nos beirais dos telhados) de muita das igrejas românicas que apelavam ao riso com carácter educativo. O riso brotava como uma significação positiva, como fonte regeneradora, capaz de restaurar, renovar. Era este o apelo e significado dado no risus paschalis onde o sacerdote recorrendo à verdade das verdades (veritas veritatum) e nada melhor que apelar para a fonte de onde nasce a vida humana: a sexualidade com o prazer que a acompanha[2].



Colegiata de San Pedro de Cervatos

texto, 1999 © Luís Carvalho Barreira



[1] Aristóteles, na Poética, já afirma que enquanto a tragédia se ocupa do sublime, dos homens elevados, a comédia trata dos homens vis e covardes.

[2] O padre, para celebrar a alegria da Ressurreição sobre a Morte, contava anedotas durante as celebrações, que ao final se utilizavam da moral da estória para realizar suas pregações com muito humor, assumindo a cultura dos fiéis em sua forma popularista, plebeia e obscena.