DAVID - miserere mei, Dei

"Livro dos Salmos, 51

1.      Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; apaga as minhas transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias.

2.      Lava-me completamente da minha iniquidade, e purifica-me do meu pecado.

3.      Porque eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim.

David de Bernini, 1624

Galleria Borghese, Roma

2023

Foto: Luís Carvalho Barreira

Ao longo da História inúmeras representações de David foram feitas e quase todas elas apresenta-nos David como herói saído do confronto contra Golias. Os dois representam a luta entre os Filisteus e Israelitas em que o gigante Golias desafia o mais temerário judeu a lutar contra ele, num confronto directo. O jovem pastor David oferceu-se, deu um passo em frente, e de um simples golpe arremessou um calhau rolado, desferido por uma funda, ferindo Golias (segundo a Bíblia, 1 Samuel 17:40). De seguida, David aproximou-se de Golias, atordoado, e com a espada desferiu-lhe um golpe mortal cortando-lhe a cabeça (1 Samuel 17:51). Nascia a lenda, rompia o herói escolhido dos judeus. É esta a história bíblica (Antigo Testamento), que os iluministas do século XVIII, tanto escarnaram, tentando enquadra-la como mito religioso. Se para estes racionalistas do século XVII e XVIII a igreja foi objecto de crítica e de luta, foi com redobrada atenção que o classicismo da arte Renascentista e Barroca era admirado (contribuído para o movimento neoclássico que se adivinhava). Na História da Arte o combate de David e Golias é responsável pelas incontáveis representações, sendo uma das histórias mais identificáveis na tradição judaico-cristã. Mas quem é este David? Quem é este homem que ao longo de dois séculos (período em análise) nos é apresentado (não só em forma escultórica, como pictórica) de formas diferentes?

David por: Donatello (1408 e 1440) | Verrocchio (1475) | Michelangelo (1504) | Bernini (1624)

No início do século XV, Donatello irá esculpir dois David: um em 1408, destinado à Catedral de Florença, já ao gosto renascentista clássico (rigor anatómico, proporção, harmonia) com a cabeça feminizada coroada de amaranto[1], um manto entrelaçado ao pescoço e um outro arrebanhado à cintura deixa a descoberto quase toda a perna esquerda. A erotização desta escultura só é comparável com uma outra, realizada em 1440 pelo mesmo escultor. Uma figura de carácter andrógina, de corpo frágil, numa pose naturalista[2], um corpo que suporta um chapéu com folhas de louro (símbolo dos vencedores) cobrindo a cabeça com um penteado enrolado em cachos (Peiot: cabelos laterais em forma de caracóis dos judeus ortodoxos). Ele pisa a cabeça de Golias, homem de grandes barbas e de elmo ainda posto [interpretação do artista duvidosa], enquanto que com a mão esquerda sustém uma pedra, na outra mão, a direita, o jovem David empunha uma espada reforçando o sentido do acto consumado.  

Verrochio, em 1475, apresenta-nos um David diferente: um homem, jovem, comum. Seguindo os mesmos preceitos clássicos. Porém, os detalhes iconográficos não reforçam a valentia de David apesar da cabeça de Golias permanecer degolada a seus pés. É um jovem pastor de cabisbaixo, empunhando simplesmente a espada na mão direita, enquanto que a outra mão repousa na anca, numa pose pouco convincente, em que o corpo é coberto por uma espécie de armadura em couro, seguramente numa tentativa de lhe conferir alguma valentia a esta personagem bíblica. É um David titubeante.  

Em 1504, Michelangelo, irá dar-nos a sua visão de David[3]. É uma escultura em mármore, arrebatadora, de maior escala e proporção, que acabou por ocupar uma praça (Palazzo Vecchio) em Florença. É um gigante. Se as anteriores representações nos mostram a valentia consumada de um pastor, aqui o David de Michelangelo é representado como herói concentrado na tarefa destinada. Ele tem o olhar tenso e fixo segurando um calhau rolado com a mão ao longo do corpo e com a outra agarra a funda que cai ao longo das costas. O naturalismo clássico é reforçado, quer pelo realismo anatómico, quer psicológico de David. Sentimos isso no olhar desviante; na testa e nas sobrancelhas arrebatadas; no olhar fixo e determinado; na tensão do pescoço; nas veias que sobressaem ao logo do braço, principalmente no braço e na mão direita. É um David sedutor balanceado entre o “corpo apolíneo” e o corpo escultórico verificado na modelagem de toda a anatomia, com especial detalhe no peito e no abdómen. É uma silhueta elegante, formada pelo movimento dos braços e das pernas, orientado por linhas paralelas indo ao encontro do renascer do nu clássico: com os quadris e os ombros em ângulos opostos faz com que o contrapposto[4] enfatize a direcção da cabeça e do seu olhar. Michelangelo apresenta-nos não só uma nova realidade estética, como um herói clássico. É um Nu clássico e de heroicidade grega à semelhança de Hércules indo ao encontro dos encomendadores (os poderosos Operai[5] da Guilda Arte della Lana) em oposição ao despotismo da família Médicis[6]. É, sobretudo, a preparação de um confronto decisivo, de um acto justo sem precisar do seu algoz.

Em 1624, Gian Lorenzo Bernini destaca o acto heroico de David realçando as qualidades físicas do jovem personagem bíblico: o jovem está nu, como uma estátua clássica, coberto apenas por um pano esvoaçante ao redor dos quadris. Em baixo pode-se ver o peitoral do rei Saul[7] e a cítara decorada com uma cabeça de águia[8]. É uma escultura em mármore em tamanho natural. Com o tronco torcido, de pernas abertas, dando-lhe estabilidade, é acompanhado pelo movimento oposto dos braços que seguram em tensão a funda armada, com uma pedra, concentrando toda a energia e força para arremessar o movimento fatal. Toda a energia se estabelece no sentido vertical de baixo para cima em forma espiral. Sentimos todos as forças a trabalhar até aos músculos faciais: sobrolho franzido, olhar concentrado, lábio inferior mordido transmite-nos toda a emoção do acto. Entre a brutalidade das consequências do gesto e a sublimação do corpo, Bernini não nos apresenta o Herói, mas sim o momento congelado, o instante histórico que antecede a morte de Golias. David de Bernini é uma escultura complexa que enfatiza o florescente movimento barroco do início do século XVII.

Mas, afinal, quem é este jovem herói sedutor?

Comecei este ensaio por citar as palavras misericordiosas de um Rei arrependido pelos seus pecados escandalosos [sedução, adultério e assassinato do marido de Bathsheba]: Uriah. Bathsheba que acabaria por casar com o Rei David. Estamos a falar do mesmo David, o herói que degolou Golias, o escolhido por Deus para conduzir os judeus: o Rei David. O rei que haveria de se penitenciar: miserere mei, Dei [Tende misericórdia de mim, Senhor] (salmo 51).

 Terminamos com música: uma versão musicada a cappella do salmo 51, miserere mei, Dei, feita pelo compositor italiano Gregorio Allegri, durante o papado de Urbano VIII (Maffeo Barberini), que era cantado na quarta e na sexta-feira santa.

 

 

Texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira





[1] O amaranto é reconhecido, desde há 5000 anos, pelas suas propriedades: é rico em potássio e o consumo de amaranto favorece a recuperação muscular.

[2] O Naturalismo clássico refere-se a um estilo realista enquanto ideal de beleza (Nu). O Naturalismo, Movimento, é um estilo realista que envolve a representação da natureza (incluindo as pessoas) com menor distorção possível.

[3] David estava destinado a decorar uma das fachadas de Santa Maria del Fiore. No entanto, após sua conclusão, a escultura foi posicionada em frente ao Palazzo della Signoria, sede do Governador de Florença, onde foi revelada ao público oficialmente em 8 de setembro de 1504. in wikipedia

[4] O contrapposto clássico é um termo utilizado em escultura para assinalar uma forma de representação humana que busca a naturalidade, em contraposição às representações rígidas e artificiais presentes na escultura até então. Essa característica, inovação grega, é constituída pela distribuição harmônica e natural do peso da figura representada em pé, com uma perna flexionada e a outra sendo a principal sustentação desse peso. Assim, a figura adquire um caráter de movimento natural tanto de frente quanto de lado, necessitando também de uma base específica sobre a qual age.

[5] Membros das Guildas.

[6] Cosme de Médicis ganhou o governo da cidade em 1434. Os Médicis mantiveram o controle de Florença até 1494. João de Médicis (mais tarde Papa Leão X) reconquistou a república em 1512.

[7] “Saul foi o primeiro rei de Israel. O seu nome, em hebraico significa "pedido a Deus". Como líder do povo, Saul teve um bom início, mas a sua trajetória bastante complicada conduziu-o a perder a coroa. Ele desobedeceu a Deus, tendo uma conduta reprovável. Saul tinha inveja de David e tentou matá-lo inúmeras vezes. Por fim, Saul cometeu o suicídio”. (Bíblia, 1 Samuel 9)

[8] Este símbolo faz parte da família do Cardeal Scipione Caffarelli-Borghese (Encomendador da obra de Bernini). In Galleria Borghese