Há uma Beatriz de Dante... e outra depois

Giovanni di Paolo

Beatriz conduz Dante à porta do céu diante S. Pedro

Ilustração da Divina Comédia (45)

c.1440

créditos: wikimedia

Há coisas que recusamos memorizar. Creio que há um pacto entre a alma e a memória rejeitando liminarmente tudo aquilo que nos perturbe a atenção. O acordo que eu vos falo é a da minha dificuldade em memorizar nomes de pessoas, sobretudo, quando eles se transformaram simplesmente em memória sensorial. Posso descrevê-los a todos pelo seu aspecto físico, pela forma como se relacionam, pela maneira como interagem comigo e ou em grupo. Treino a memória visual. Promovo os sentidos como meio a sublinhar algo do interesse particular. Porém, não me peçam para dizer os seus nomes. Haverá sempre aqueles nomes de pessoas que estão muitas das vezes associados a imagens que emergem pela sua diferenciação. Ao longo do ano lectivo fui diversas vezes interpolado, testado, por uma aluna: -professor, já sabe o meu nome? Incomodado, sempre, com a pergunta, procurei desviar a atenção para outros assuntos que me pudessem justificar, digo, salvar. Socorria-me da “ironia como a expressão mais perfeita do pensamento” – citando Florbela Espanca. A situação repetiu-se por diversas vezes. Necessitava de uma mnemónica para decorar o seu nome. Ela era uma aluna responsável, aplicada, merecedora de melhor atenção. Não faço o culto da imagem, mas sempre que lhe dirigi a palavra aqueles olhos brilhantes pareciam reflectir toda a tensão verificada no seu rosto rosado. O corpo agitava-se dentro de um vestido branco vertido naquela fisionomia adolescente, bem disfarçado por um casaco (masculino), fazendo crer ter atingido a idade madura. Recordo os seus chinelos, com uma banda branca, que lhe escapavam dos pés ávidos de conhecer mundo. Por vezes desalinhados, indiciando [pormenores] algum nervosismo colocando a descoberto o verniz que lhe cobria as unhas dos pés de um vermelho amaranto descuidado. Os seus cabelos lisos presos, quase sempre, por um gancho, deixavam antever a vontade de abarcar todo o conhecimento. De vez enquanto soltava-os deixando cobrir o rosto, para logo de seguida voltar a prendê-los. Um gesto repetido e executado com alguma descrição. Fazia-o com a maior da naturalidade sem a carga erótica associada (por nós, os adultos) a tal movimento. Já havíamos falado sobre a importância iconográfica e do valor iconológico dos longos cabelos na arte: porque é que Maria Madalena é representada com longos cabelos, assim como o Nascimento de Vénus de Botticelli? A resposta a esta ou a outra pergunta era-lhe de fácil explicação. Ela era brilhante. Arrependo-me ter tirado o lado mais genuíno de uma adolescente agora formatada pela educação recebida. Creio, não, tenho a certeza, que ela não deu a importância à insignificante atitude. O nervosismo do seu balançar guarda as palavras que nunca ousou dizer. Observo atentamente o movimento entrópico dos seus apontamentos retirados na aula. São gatafunhos que percorrem a folha por ordem arbitrária limitadas por formas circulares que só ela consegue por ordem ao caos gestual e gráfico. Ela não escondia a ansiedade em conhecer mundo, tinha pressa de o viver. Era uma jovem, adolescente, que derramava alegria, com uma jovialidade contagiante. Amiga do seu amigo sem precisar de o alardear. Era, sobretudo, um ser bem formado assentes em valores humanistas que me apraz registar. Nunca lhe fiz sentir a admiração pelos valores mencionados. O gelo do desprendimento fingido, manifestado por mim com alguma eficácia, ocultava uma certa afeição. Juro conhecer todos os seus trejeitos e reconhecer todas as palavras afirmadas. A incógnita aluna passou a ter nome pronta a ser resgatado à minha memória. Sei-o [agora] porque está associado à Divina Comédia de Dante Alighieri e à importância da obra no humanismo renascentista. Há algum ruído visual na evocação do classicismo versus humanismo na Divina Comédia e do amor platónico protagonizado pela pureza de Beatriz. Tenho alguma dificuldade em compartimentar o ser humano quanto à sua natureza. Não tenho dúvidas em afirmar que a paixão (eros/pathos) é o corpo criativo de toda a arte. A Divina Comédia é um poema épico e teológico dividido em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Dante porá ênfase na beleza das ideias (no amor platónico, muito ao jeito da Sumula Teológica de São Tomás de Aquino) escolhendo Beatriz a conduzi-lo ao Paraíso. Sublinho a importância da imagem na memória. Recorro metaforicamente ao encontro de Beatriz e Dante que se conhecem fugazmente numa festa “Calendimaggio” em Florença. Segundo Dante, relatado em Vita Nuova, tinham 9 e 10 anos de idade e nunca esqueceu o vestido “vermelho sangue” que Beatriz usava[1]. Quanto à intrépida aluna chamava-se Beatriz, que eu nunca vou esquecer. Não esqueço porque somos um somatório de memórias e só algumas permanecem no nosso ideário imagético. São aquelas que dão sentido à vida. São, sobretudo, algumas pessoas que nos fazem sonhar, a qualquer professor, por momentos assim.

 

 

P.S. Quando forem a Florença não deixem de visitar a Chiesa di Santa Margherita (também conhecida por Chiesa di Dante) e numa alcofa ao lado da pedra tumular de Beatriz Portinari deixem uma carta de amor.

Pedra tumular de Beatriz Portinari na Igreja de Santa Margherita dei Cerchi, em Florença

Fotografia actualizada em 13.04.2024 © Luís Carvalho Barreira

 

Este texto é uma ficção e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, 2023 © Luís Carvalho Barreira

 

 

A natureza é a arte de Deus”. Dante Alighieri


[1] Mais tarde, haveriam de se encontrar numa situação bastante diferente, Beatriz, com 17 anos, era agora casada com Simone de’ Bardi. Aos 24 anos Beatriz morre (durante o parto?) e Dante demorará 6 anos até encontrar Gemma Donati, com quem teve 4 filhos. A obra A Divina Comédia foi escrita já Beatriz tinha morrido.