Há coisas que recusamos memorizar. Creio que há um pacto entre a alma e a memória rejeitando liminarmente tudo aquilo que nos perturbe a atenção. O acordo que eu vos falo é a da minha dificuldade em memorizar nomes de pessoas, sobretudo, quando eles se transformaram simplesmente em memória sensorial. Posso descrevê-los a todos pelo seu aspecto físico, pela forma como se relacionam, pela maneira como interagem comigo e ou em grupo. Treino a memória visual. Promovo os sentidos como meio a sublinhar algo do interesse particular. Porém, não me peçam para dizer os seus nomes. Haverá sempre aqueles nomes de pessoas que estão muitas das vezes associados a imagens que emergem pela sua diferenciação. Ao longo do ano lectivo fui diversas vezes interpolado, testado, por uma aluna: -professor, já sabe o meu nome? Incomodado, sempre, com a pergunta, procurei desviar a atenção para outros assuntos que me pudessem justificar, digo, salvar. Socorria-me da “ironia como a expressão mais perfeita do pensamento” – citando Florbela Espanca. A situação repetiu-se por diversas vezes. Necessitava de uma mnemónica para decorar o seu nome. Ela era uma aluna responsável, aplicada, merecedora de melhor atenção. Não faço o culto da imagem, mas sempre que lhe dirigi a palavra aqueles olhos brilhantes pareciam reflectir toda a tensão verificada no seu rosto rosado. O corpo agitava-se dentro de um vestido branco vertido naquela fisionomia adolescente, bem disfarçado por um casaco (masculino), fazendo crer ter atingido a idade madura. Recordo os seus chinelos, com uma banda branca, que lhe escapavam dos pés ávidos de conhecer mundo. Por vezes desalinhados, indiciando [pormenores] algum nervosismo colocando a descoberto o verniz que lhe cobria as unhas dos pés de um vermelho amaranto descuidado. Os seus cabelos lisos presos, quase sempre, por um gancho, deixavam antever a vontade de abarcar todo o conhecimento. De vez enquanto soltava-os deixando cobrir o rosto, para logo de seguida voltar a prendê-los. Um gesto repetido e executado com alguma descrição. Fazia-o com a maior da naturalidade sem a carga erótica associada (por nós, os adultos) a tal movimento. Já havíamos falado sobre a importância iconográfica e do valor iconológico dos longos cabelos na arte: porque é que Maria Madalena é representada com longos cabelos, assim como o Nascimento de Vénus de Botticelli? A resposta a esta ou a outra pergunta era-lhe de fácil explicação. Ela era brilhante. Arrependo-me ter tirado o lado mais genuíno de uma adolescente agora formatada pela educação recebida. Creio, não, tenho a certeza, que ela não deu a importância à insignificante atitude. O nervosismo do seu balançar guarda as palavras que nunca ousou dizer. Observo atentamente o movimento entrópico dos seus apontamentos retirados na aula. São gatafunhos que percorrem a folha por ordem arbitrária limitadas por formas circulares que só ela consegue por ordem ao caos gestual e gráfico. Ela não escondia a ansiedade em conhecer mundo, tinha pressa de o viver. Era uma jovem, adolescente, que derramava alegria, com uma jovialidade contagiante. Amiga do seu amigo sem precisar de o alardear. Era, sobretudo, um ser bem formado assentes em valores humanistas que me apraz registar. Nunca lhe fiz sentir a admiração pelos valores mencionados. O gelo do desprendimento fingido, manifestado por mim com alguma eficácia, ocultava uma certa afeição. Juro conhecer todos os seus trejeitos e reconhecer todas as palavras afirmadas. A incógnita aluna passou a ter nome pronta a ser resgatado à minha memória. Sei-o [agora] porque está associado à Divina Comédia de Dante Alighieri e à importância da obra no humanismo renascentista. Há algum ruído visual na evocação do classicismo versus humanismo na Divina Comédia e do amor platónico protagonizado pela pureza de Beatriz. Tenho alguma dificuldade em compartimentar o ser humano quanto à sua natureza. Não tenho dúvidas em afirmar que a paixão (eros/pathos) é o corpo criativo de toda a arte. A Divina Comédia é um poema épico e teológico dividido em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Dante porá ênfase na beleza das ideias (no amor platónico, muito ao jeito da Sumula Teológica de São Tomás de Aquino) escolhendo Beatriz a conduzi-lo ao Paraíso. Sublinho a importância da imagem na memória. Recorro metaforicamente ao encontro de Beatriz e Dante que se conhecem fugazmente numa festa “Calendimaggio” em Florença. Segundo Dante, relatado em Vita Nuova, tinham 9 e 10 anos de idade e nunca esqueceu o vestido “vermelho sangue” que Beatriz usava[1]. Quanto à intrépida aluna chamava-se Beatriz, que eu nunca vou esquecer. Não esqueço porque somos um somatório de memórias e só algumas permanecem no nosso ideário imagético. São aquelas que dão sentido à vida. São, sobretudo, algumas pessoas que nos fazem sonhar, a qualquer professor, por momentos assim.
P.S. Quando forem a Florença não deixem de visitar a Chiesa di Santa Margherita (também conhecida por Chiesa di Dante) e numa alcofa ao lado da pedra tumular de Beatriz Portinari deixem uma carta de amor.
Este texto é uma ficção e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, 2023 © Luís Carvalho Barreira
“A natureza é a arte de Deus”. Dante Alighieri
[1] Mais tarde, haveriam de se encontrar numa situação bastante diferente, Beatriz, com 17 anos, era agora casada com Simone de’ Bardi. Aos 24 anos Beatriz morre (durante o parto?) e Dante demorará 6 anos até encontrar Gemma Donati, com quem teve 4 filhos. A obra A Divina Comédia foi escrita já Beatriz tinha morrido.