Giotto - O Beijo de Judas

Giotto, O Beijo de Judas, 1304-6(pormenor)Fresco (200X185 cm)Capela de Scrovegni, Pádua

Giotto, O Beijo de Judas, 1304-6

(pormenor)

Fresco (200X185 cm)

Capela de Scrovegni, Pádua

Texto: 2002-2020 © Luís Carvalho Barreira

 

O beijo de Judas.

Vem-me à memória a música do filme Casablanca: A kiss is just a kiss / A sigh is just a sigh / The fundamental things apply / As time goes by... quando os amantes, Ilsa Lund Laszlo (Ingrid Bergman) e Richard Blane (Humphrey Bogart), se reencontram e recordam paixões que o tempo não apagou. Estas personagens dão corpo a um drama romântico. A realidade e a ficção invadem o nosso imaginário vivencial e é com dificuldade que separamos os homens das personagens. Foi sempre assim, em todas as histórias ou lendas mitológicas o Homem depositou as suas angústias, os seus medos, os seus desejos, nos deuses como forma de regrar a sua vida em sociedade.

É fascinante como a leitura feita a esta pintura, O Beijo de Judas, de Giotto, e ao seu significado, dependerem muito se nos posicionarmos do ponto de vista dos homens ou das personagens do Criador. Judas protagoniza esta dupla condição de homem e de personagem (bíblica) incumbido a difundir uma mensagem, traindo Jesus. Desde a primeira vez que tomamos contacto com esta obra, não pudemos deixar de nos interrogar sobre a mensagem humana que ela veicula. Esta pintura (fresco), para além de nos descrever uma passagem bíblica, propõe-nos reflectir, sem dúvida, sobre as relações humanas. Nas limitações dos homens. Na finitude e nos comportamentos do ser humano. Nos momentos de maior tensão que a fraqueza humana é tentada pela sua própria sobrevivência. Nos momentos aflitivos que a amizade, o amor, se manifesta no absoluto. Nas falsas idolatrias. Na prontidão para amar sem desapontar. E, sobretudo, no reconhecimento dos nossos erros como ponto de partida para alcançarmos o objectivo último: a perfeição. É tudo isto o que vemos n’O Beijo de Judas de Giotto pintado, a fresco, na capela de Scrovegni, em Pádua. Esta pintura apresenta-se aos nossos olhos com uma extraordinária tensão dramática e psicológica. Movemo-nos, seguramente, por ideais que possamos abraçar. Precisamos de tocar o outro. Precisamos de ser tangíveis no nosso semelhante sem o decepcionar. Precisamos, acima de tudo, questionar as nossas relações louvando o lado mais nobre do ser humano. É, segundo a mensagem implícita na obra pictórica em apreço, a comunhão entre a dimensão humana e a divina. Porventura, talvez possamos julgar esta pintura, com o passar do tempo e sem a carga teológica e emotiva de outrora (pelo menos para um agnóstico), segundo outros pontos de vista epistemológicos.

Giotto, O Beijo de Judas, 1304-6Fresco (200X185 cm)Capela de Scrovegni, Pádua

Giotto, O Beijo de Judas, 1304-6

Fresco (200X185 cm)

Capela de Scrovegni, Pádua

A passagem bíblica é conhecida: o beijo de Judas. Judas apresenta-se no centro da composição pictórica rodeado de várias personagens, ganhando destaque, ao denunciar a presença de Jesus: - “Salvé, Mestre! E beijou-o”. Beijou-o intensivamente, apaixonadamente, com ternura (Mateus, 26:47-50, tradução do verbo grego: kataphilein[1]) que só Ele o merece. Um gesto de amor, mas é um gesto vazio. O traidor havia combinado um sinal com eles (os judeus[2]): “Aquele a quem eu saudar com um beijo, é ele: prendam-no e levem-no em segurança” (Marcos, 14:4). Judas dá-se conta da sua finitude de homem, por ter de desempenhar uma tarefa escolhida por Deus. Da mágoa por trair o leal e dedicado amor e a amargura de ter de o denunciar, se enclausura na sua própria culpa. A culpa manifestada por Giotto, na pintura, pela inexistência da auréola. Na pintura de Giotto, o contacto visual entre Jesus e Judas é intenso, por oposição à multidão de homens armados em seu redor, gerando um efeito pungente. O céu nocturno, de azul cobalto, é tenso. Todo o ambiente celeste é recortado pelas varas, pelas tochas, pelas lanças, pelas alabardas, empunhadas numa forma de libertação ameaçadora do poder das trevas contra o Filho de Deus. O drama intensifica-se, quando Pedro (ostentando uma auréola) desembainha uma adaga e corta a orelha a Malco, o servo do sumo sacerdote[3], tendo sido prontamente impedido por duas figuras segurando as vestes com veemência. E Jesus terá praticado o seu último milagre, em vida, restituindo a aparência fisionómica de Malco, retorquindo: “guardai a espada! Pois todos os que empunham a espada, pela espada morrerão” (Mateus, 26:52). É a resposta pronta ao ódio e à violência por parte de Jesus que permanece firme e determinado diante a multidão que o persegue. É, sobretudo, uma mensagem dirigida à incapacidade dos homens em perdoar que as suas palavras são proferidas. Do lado direito, um grande número de armas empunhadas desfila ao ritmo de um corneteiro e de um dedo indicador apontado ordenando prisão “a Jesus [que] foi levado até Caifás” (João 18:24). A figura de Jesus mantem-se impávida, mas serena, resistindo ao rancor dos inimigos e às tentativas desesperadas dos fiéis amigos. Porém, Jesus deixa bem claro que a vontade do Pai era para que Ele sofresse, conforme havia sido revelado nas Escrituras (Mateus 26:52-54) e por incumbência a todos os homens feitos à sua imagem. 

Todo este enredo desenhado pelo seu Criador deixa-nos com dúvidas se Judas, de manto amarelo (a cor de deslealdade), será um traidor?





[1] https://religion.wikia.org/wiki/Kiss_of_Judas

[2] “De acordo com os evangelhos Jesus foi preso pela guarda do Templo de Jerusalém, e foi levado diante de Caifás e outros, por quem foi acusado de blasfémia. Após considerá-lo culpado, o Sinédrio entregou-o ao governador romano Pôncio Pilatos, por quem Jesus também foi acusado de sedição contra Roma”. in Wikipedia

[3] Caifás, no Novo Testamento, foi o Sumo Sacerdote judaico apontado pelos romanos para o cargo entre os anos 18 e 37.

William Turner, "Death on a pale horse", c.1825-30

William Turner, Death on a pale horse (?), c.1825-30

William Turner, Death on a pale horse (?), c.1825-30

Cavalgar em memórias revoltas.

No início da carreira artística, William Turner (1775-1851), pintou pitorescas paisagens inglesas arrecadando elogios dos seus comissários galeristas e coleccionadores de arte. A pintura e o sucesso artístico de Turner só tinham paralelo com as obras do seu contemporâneo John Constable (1776-1837): os grandes pintores românticos do Reino Unido. E, nas palavras de Simon Schama[1], “Turner é, acima de tudo, um dramaturgo da luz, o mais estupendo que a Inglaterra produziu”. Turner é, sem dúvida, um dos grandes pintores do século XIX, período de grandes transformações sociais e culturais. O romantismo brotou da interacção do indivíduo com a natureza, e com a sua natureza, como forma de expressão artística. A arte romântica testou os limites do eu, exacerbando-o. Ao mesmo tempo foi sondado o lado mais oculto do ser humano tornando-o mais evidente: o carácter, os sentimentos, a dor e a penosa existência do Ser. Esta vertente egocêntrica dos românticos levá-los-á a enveredar por caminhos solitários e sombrios: no refúgio contemplativo de, Caminhando sobre o mar de névoa (1818) de Caspar Friedrich; na complacência melancólica e soturna da música Robert Schumann (Traumerei Op. 15); na desilusão do ideal revolucionário na obra Guerra e Paz de Leo Tolstoy,  pelo Pierre Bezukhov inicialmente um adepto fervoroso dos ideais saídos da Revolução francesa[2]; nos horrores da guerra, de que Goya retrata com veemência as atrocidades em O Fuzilamento de 3 de Maio (1808); nas causas políticas d’ A Liberdade guiando o povo (1830) de Delacroix; no “morrer por amor”, recuperado do  medievalismo de Tristão e Isolda (ópera em três actos, 1865) de Richard Wagner; no assombro da natureza Entre as montanhas de Sierra Nevada, 1868 de Albert Bierstadt; no lânguido e doentio perfil romântico de O Pesadelo (1790-91) de Johan Heinrich Füssli; no simbolismo mórbido e extremado da Ilha dos Mortos, 1880, de Arnold Böcklin. Em suma, na dispersão do carácter individual constituindo-se como a principal leitmotiv da faculdade de espanto: o sublime. É nestas forças poderosas da natureza romântica que o sublime, podendo ser uma mescla de assombro, horror e deleite, se estabelece “na racionalidade necessária entre os homens e na certeza assustadora da morte[3]”. A Morte será, talvez, o tema mais perseguido pelos românticos: eles morrem erraticamente por causas. 

E é em Turner, na pintura em apreço, que a morte assume o ideal romântico com maior acuidade e originalidade. A morte apresenta-se como uma obra aberta, derrotada, inacabada, literalmente inacabada... em William Turner. Mas, o que terá levado Turner a pintar este quadro? O tema é seguramente a Morte. Supõe-se que terá sido pintado entre 1825 e 1830, período em que se sucederam vários infortúnios na vida do artista: a doença da mãe, internada num hospício, a morte do amigo Walter Fawkes, em 1825, e quatro anos mais tarde, em 1829, a morte do pai e, para completar o seu estado anímico, o facto do seu estado de saúde se ter agravado, recorrendo a “estramonina, substância narcótica extraída do estramónio, que excitava ainda mais sua imaginação sempre hiperactiva[4]”. Todos estes acontecimentos poderão ter concorrido para que Turner pintasse este quadro, que não está assinado, nem datado! O próprio título pelo qual é uma presunção a posteriori. Ao longo do tempo assistimos à transformação de um Turner figurativo, com preocupação pelos detalhes, para algo completamente diferente, uma pintura difusa a explorar cada vez mais a plasticidade, i.e., valorizando os materiais e a maneira como eles são utilizados.

De todas as pinturas observadas na Tate Gallery, em Londres (1988), este quadro foi o que mais nos impressionou. Não tanto pelo formalismo representativo, mas pela descontinuidade técnica e pictórica. Turner utilizava, normalmente, tinta a óleo, em camadas sucessivas dando corpo à pintura, em várias demãos, rasgando o espaço cromático em sulcos provocados pelas rápidas pinceladas. A utilização de outros materiais e ferramentas, como a espátula, ou mesmo recorrendo às unhas (ele tinha orgulho em mostrar as unhas encardidas cheias de tinta), adensam a tensão corpórea tornando a pintura pastosa, porém, luminosa e vibrante. À medida que o uso de cores quentes, nomeadamente os vermelhos, os ocres e os amarelos, ganham maior acuidade [nesta série de trabalhos] o seu carácter irascível é introduzido com agressividade nas suas telas, tornando-as cada vez mais ambiciosas e visionárias[5]. Nesta pintura apresenta um esboço de um cavalo sugerido pelas diversas velaturas finas e transparentes. A outra figura, um esqueleto, deitada no dorso do cavalo apresenta maior detalhe no desenho, podendo ser identificado como a Morte, o último dos quatro Cavaleiros do Apocalipse! Formalmente a composição ocupa praticamente a primeira parte superior do quadro deixando a outra metade num vazio [pouco compreensível a nível formal e estético], quiçá, ainda à procura de um fim. Adensado por uma paleta de cores muito próxima e pela anulação do detalhe [desenho] das figuras, reforça o efeito misterioso e terrífico, ao mesmo tempo. A morte, saída de uma atmosfera encoberta [utilizando uma mancha preta; forma recorrente para aglutinar a composição] encontra-se prostrada e de mãos caídas. Aparece aqui derrotada, caindo do dorso do cavalo como se fosse um fantasma. É uma luta entre a Morte e o artista. E quis o destino que este quadro não passasse de um esboço, de um transcendente borrão, conferindo-lhe contemporaneidade.

É uma sublime obra inacabada!


Texto: 1988-2020 © Luís Carvalho Barreira


 [1] O Poder da Arte, Companhia das Letras, São Paulo, 2010. pág. 288.

[2] Outros exemplos: na 5ª sinfonia, hino à alegria, de Ludwig van Beethoven que inicialmente a dedicou a Napoleão Bonaparte, inscrevendo seu nome na partitura e posteriormente rasurada, assim como na destruição do busto do imperador num acto de fúria; e, por fim, na obra de um ilustre pintor português, Domingos Sequeira (1768-1837), que foi, sucessivamente, partidário da invasão francesa pintando uma alegoria, Junot defendendo a cidade de Lisboa (1808), da aliança inglesa (Apoteose de Wellington, 1811), da revolução liberal (retratos de 33 deputados, 1821) e da Carta Constitucional (D. Pedro IV e Maria II, 1825). Uma época conturbada socialmente fazendo com que os desenhos das nações se fundamentassem por vínculos ao passado distante, medieval, como forma de legitimação das nações: os nacionalismos. 

[3] Schopenhauer, 1788-1860, p.59

[4] O Poder da Arte, Companhia das Letras, São Paulo, 2010. pág. 288.

[5] “Certa vez, sir George Beaumont o criticou por inaugurar “a escola branca”. Agora dizia-se que ele era vítima da “febre amarela”, caso de Mortlake Terrace (1827), paisagem sobre o Tamisa envolta numa luz dourada”. in O Poder da Arte, pág. 301.



Pandemias e outros males...

Médico do séc. XVIICharles de Lorme concebeu o traje para os médicos que lidavam com doenças infecciosas ou pestes.

Médico do séc. XVII

Charles de Lorme concebeu o traje para os médicos que lidavam com doenças infecciosas ou pestes.

Das boas práticas que Portugal falece* para enfrentarmos a pandemia do coronavírus e outros males contagiosos.  Estamos sob a ameaça viral transformada já em pandemia. O receio toma conta de nós. A ignorância contagia-nos. E o medo diz-nos para ficar em casa; por favor não sai de casa.

No séc. XIV, no grande surto da Peste Negra (1348), o médico pessoal do Papa Clemente VI, Guy de Chauliac, aconselhou-o a ter uma dieta saudável, quiçá fazer uma sangria se for necessário, e alimentar permanentemente a fogueira do seu quarto para afastar os maus cheiros. O dedicado médico, autor de Chirurgia Magna (1363), documento válido até ao séc. XVII, travou uma luta em duas frentes: a primeira, contra o obscurantismo dominante da sociedade referente à origem de tal enfermidade, atribuindo aos judeus o envenenamento dos poços e de serem hereges; a segunda, contra o surto epidémico, uma desgraça divina, pelo qual ele haveria de padecer. As pragas eram consideradas castigo divino e os escolhidos acarretavam o peso de pecaminosos. O povo em comunhão organizou-se e a receita não tardou em aparecer junto às piras redentoras. Assistem à queima dos judeus[1] e glorificam os benefícios do cilício no flagelo dos pecadores. Ganha força a ideia da auto-flagelação dentro de algumas comunidades cristãs: os Flagelantes[2]. Se a ordem social parece assegurada, o papel do médico tinha como principal tarefa, para além de cuidar das vítimas da peste, o de fazer o registo público das mortes. Segundo Byfield, também davam conselhos aos pacientes sobre a sua conduta antes da morte. E a pedido do moribundo, o médico podia recorrer ao bastão e ou à chibata para flagelar o corpo agonizante numa forma de expiação dos pecados terrenos.  Contudo, outros médicos, com práticas menos ortodoxas, cuidavam dos seus pacientes administrando-lhes alguns medicamentos, mezinhas, assim como colocavam rãs ou sanguessugas nas línguas para “reequilibrar os humores” (citando Byfield). Assim, ao longo de vários séculos as práticas médicas não se alteraram muito. No séc. XVI, Nostradamus defendia que os infectados deveriam permanecer de quarentena e os restantes deveriam apanhar ar fresco. Beber água potável (tomar um sumo de rosa mosqueta[3], para os mais afortunados) era fundamental. Os cadáveres deveriam ser removidos, enterrados e polvilhados (queimados) com cal. O médico não era um feiticeiro, nem a bruxa que tudo curava. A figura do médico ganha uma dimensão terrífica que ainda hoje permanece no nosso imaginário. Para tal a indumentária inventada por Charles de Lorme, séc. XVII, tornou-se essencial no combate à peste negra e popular no fantástico colectivo. Para aqueles que se lembram da figura do pai de Mozart, no filme Amadeus, aquela figura altiva, empunhando um bastão, que a dada altura aparece envolta de manto negro encerado, chapéu de abas largas, de máscara com aberturas deixando os olhos a descoberto e um enorme bico onde, supostamente, era colocado palha embebida com algumas essências perfumadas para o proteger do ar miasmático, não é mais do que uma espécie de pronúncio da morte; é a imagem do médico que mais não faz do que sentenciar a morte.

Amadeus de Milos Forman, 1985

Amadeus de Milos Forman, 1985

texto, 2020 © Luís Carvalho Barreira



[*] Falece. Termo utilizado por Francisco de Holanda: Da Fábrica que falece à cidade de Lisboa (1571).

[1] Judeus queimados vivos Crónica de Nuremberg, 1493.

[2] Os Flagelantes tinham de respeitar um ritual que constava de: viajar de terra em terra durante 33 dias; autoflagelar-se na praça pública; orar a Deus; viver da caridade; vestir o uniforme dos Flagelantes que consistia numa longa túnica negra com um capuz e andar descalço. in wikipedia

[3] “Óleo de rosa mosqueta ou rosa rubiginosa, como é chamada cientificamente, é de origem oriental e nasce em clima frio e chuvoso. A extração do óleo é feita com auxílio de uma prensa e sua composição é rica em ácidos gordos insaturados como: ácido oleico e linoleico. Oferece diversos benefícios terapêuticos para a pele. Possui também vitamina A e C”. (ver: wikipedia)

Barrete Frígio

14 JULHO

Barrete Frígio da Revolução Francesa

Barrete Frígio da Revolução Francesa

O barrete símbolo da Revolução Francesa (1789) tem a sua origem na Frígia, região situada na Ásia Menor, onde o seu povo lutou dignamente pela liberdade e independência. Do reino da Frígia chegaram-nos, através de histórias e lendas da Antiguidade Clássica, os seus reis lendários: Gordias, um camponês que a profecia do oráculo o fez rei, deixou-nos um nó górdio para alguém (Alexandre) desatar; e Midas, seu filho, onde tocava transformava tudo em ouro. Talvez seja esta a melhor metáfora para melhor caracterizar o “barrete frígio” simbolizando todos os audazes que "pensam fora da caixa" enfrentando os nós górdios da vida.

Ovo da Páscoa

Ovo, 1985

fotografia de Luís Carvalho Barreira


Muitos dos actuais símbolos ligados à Páscoa não são mais do que resquícios culturais, aglutinações existentes em algumas festividades pagãs ao longo da história da humanidade. Com o aparecimento do cristianismo, muitos desses rituais pagãos da celebração da passagem do Inverno para a Primavera foram adaptados, fundindo-se com a celebração da ressurreição de Cristo: a Páscoa.

Mas, porque costumamos presentear os nossos amigos e familiares com ovos na Páscoa? O que é que eles representam?

Todas estas actividades (rituais, festas, jogos) com ovos têm o seu significado e uma razão de ser, quer pelo seu carácter simbólico, quer pelo seu sinal metafórico. Ao longo de toda a história da humanidade, o Ovo foi sempre reconhecido como símbolo do renascimento, da esperança, da causa primeira, do gérmen, da origem e do princípio. Em suma, o Ovo confina em si o mistério da vida.

No século XVI, Cesare Ripa, no seu tratado de iconologia, descreve a “Fecundidade” (ver imagem) como uma “mulher coroada com folhas de zimbro que com as mãos aperta contra os seus seios um ninho de pintassilgos com os seus filhotes. Segundo Plínio, lib. X, cap. LXIII, o pintassilgo é um dos mais pequenos mas dos mais profícuos animais, pondo de cada vez doze ovos.

A seus pés, uma galinha com os pintos recém-nascidos, saindo de cada ovo. Do outro lado, uma lebre rodeada pelas crias.

O zimbro é a planta que possui sementes capazes de alimentar os animais. Os pintassilgos representam as crias, os filhos; as galinhas, os ovos e os coelhos anunciam a fertilidade, que é a maior bênção que uma mulher pode ter no casamento”. Toda esta imagem iconográfica (Mulher coroada com zimbro, acompanhada de Ovos, Pintassilgos, Coelhos, Galinhas) evidencia a aspiração ancestral do ser humano: o anseio de abastança, o desejo de fertilidade e de fecundidade.

Ancestralmente, certos povos pré-históricos efectuavam diversos rituais, por altura do equinócio da primavera, tendo como propósito nas suas preces o desejo de um ano novo, do renovar da esperança e sobretudo do desejo de abundância e fertilidade. Alguns destes costumes pagãos, apesar de aculturados, chegaram até nós com os mesmos propósitos de então. No Alentejo existe um ritual, em S. Pedro do Corval, onde as mulheres atiravam, e ainda atiram, calhaus rolados (supostamente ovos) para o topo de um aflorado rochoso, denominado “Rocha dos Namorados”, de configuração erecta, saído da terra procurando assim a fertilidade e a fecundidade desejadas. Segundo a tradição, ainda presente, as raparigas solteiras vão à “rocha dos namorados”, na segunda-feira de Páscoa, lançar uma pedra para cima do menhir procurando resposta sobrenatural em matéria do seu enlace: cada lançamento falhado representa mais um ano de espera do seu casamento.

Numa leitura mais atenta aos monumentos megalíticos circundantes, encontramos o Alinhamento ou Cromeleque dos Almendres (estas construções, únicas na Europa ocidental, estendem-se desde Inglaterra até Portugal), um recinto alongado, com cerca de uma centena de menhires, na sua maioria de forma ovoide, que constituiu, por certo, além de uma construção de carácter multifuncional capaz de organizar e estruturar a sociedade envolvente, uma estrutura de carácter religioso envolvendo, supostamente, rituais propiciatórios de fecundidade. Um dos menhires, situado na extremidade norte, exibe três imagens solares radiadas. Tal iconografia corresponde, provavelmente, ao momento final do Neolítico, quando na região se fizeram sentir as primeiras influências culturais das primeiras comunidades da idade dos metais, portadoras de uma nova estrutura religiosa. Esta religiosidade centrada numa divindade feminina, idealizada com grandes olhos solares, assumira-se como a grande deusa local, “ibérica”. Certamente que estas manifestações na Europa ocidental, feitas através de cerimónias de carácter sexual, com libações e outras ofertas corporais, não são alheias a um dos mais importantes rituais em honra de Ishtar, deusa da fertilidade, deusa dos arcádios. Esta divindade, Ishtar, não é mais do que a representação da deusa Inanna, herança dos seus antecessores povos sumérios; cognata da deusa Asterote dos filisteus; da deusa Isis dos egípcios; e da deusa Astarte dos Gregos. Mais tarde esta deusa, Ishtar, foi assumida também na mitologia Nórdica como Easter (Páscoa em Inglês), a deusa da fertilidade e da primavera.

Luís Barreira

Ishtar

British Museum, 2014

Fotografia

arquivo: 08_8477, 2014

No equinócio da primavera, os participantes em honra da deusa da fertilidade Easter pintavam e decoravam ovos escondendo-os em tocas nos campos, na sequência de anteriores práticas já exercitadas pelos Persas, Romanos, Judeus e Arménios.

Mais recentemente, os cristãos na Rússia czarista e a igreja ortodoxa, durante a celebração da Páscoa, tinham e ainda têm como costume, ao beijarem-se, dizer: "Cristo ressuscitou"… e ao mesmo tempo que recebem um presente, proclamavam: "Verdadeiramente, Cristo ressuscitou"…  Assim, quando o Czar Alexandre III encomendou, em 1885, ao célebre artista e ourives Peter Carl Fabergé uma obra de arte para presentear a imperatriz Maria Feodorovna na Páscoa, este criou uma série de ovos encaixáveis contendo no seu interior uma surpresa em ouro, prata e pedras preciosas sublimou artisticamente práticas culturais ancestrais.

Peter Carl Fabergé

Peter Carl Fabergé

Podemos encontrar outros ovos, embora mais modestos, mas também cheios de significado nos povos europeus de origem anglo-saxónica que os pintam escondendo-os nos jardins ou nas casas para que as crianças os possam encontrar. Na Inglaterra os jovens desenvolvem, durante a comemoração da Páscoa, uma actividade curiosa que consiste em fazer rolar os ovos por um plano inclinado até que um deles subsista intacto – o “egg rolling”. Prática semelhante pode ser encontrada na Ucrânia chamada de “KrepaK”, em que grupos de crianças visitam as casas pedindo ovos e depois num jogo/ritual os entrechocam, considerando-se vencedor o ovo cuja casca não se tenha quebrado.

E se o Ovo contém em si o mistério da vida celebremos a entrada da primavera e/ou a ressurreição de Cristo com alegria, com abundância, com fertilidade, com esperança na concretização dos nossos desejos e num futuro melhor.

 

Texto © Luís Barreira, 1991

Pietro Lorenzetti, Lamentação de Cristo (detalhe), 1310-1329FrescoBasilica de Assis, Itáliacréditos: wikipédia

Pietro Lorenzetti, Lamentação de Cristo (detalhe), 1310-1329

Fresco

Basilica de Assis, Itália

créditos: wikipédia

A serpente da Pena

«Ó homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo.»

Inscrição no oráculo de Delfos, atribuída aos Sete Sábios (c. 650a.C.-550 a.C.)

Virgil SolisApolo matando Píton, gravura de 1581, para a Metamorfoses, de Ovídio, livro I.créditos: wikipedia

Virgil Solis

Apolo matando Píton, gravura de 1581, para a Metamorfoses, de Ovídio, livro I.

créditos: wikipedia

No sopé do Monte Parnaso, em Delfos, brotam várias nascentes e uma das mais conhecidas é a Fonte Castália – em honra de uma das náiades (ninfas de água doce) – rodeada por um bosque de loureiros em honra de Apolo. A lenda e a mitologia versada na Metamorfoses de Ovídio diz que junto a esta fonte se reunião algumas divindades, musas, náiades que ao som da lira de Apolo cantavam incessantemente ao ritmo do jorro da “água falante”. Consta que das entranhas desta fonte emanavam vapores alucinogénios provocando ao oráculo de Delfos visões que lhe permitiam profetizar o futuro. Às sacerdotisas passaram a chamar-se pitonisas após Apolo ter desferido mortalmente a serpente gigantesca guardiã do oráculo de Témis (Deusa da justiça) Píton (Pytho). A Fonte Castália converteu-se em oráculo de Apolo. Terá sido a lenda mitológica a fonte de inspiração para a gruta da serpenta da Pena?

As imagens românticas da serra de Sintra estão todas impregnadas de poesia. Não há recanto, árvore, planta, caminho, gruta que não tenha saído da fantasia onírica do seu criador, mas não só. Já muito se falou do revivalismo do Palácio da Pena, das suas origens, dos elementos arquitetónicos que o definem como um palácio romântico; da flora trazida dos quatro cantos do mundo conferindo a este parque um exotismo luxuriante; dos caminhos enviesados que, ao sabor da orografia, vão deixando a descoberto novas figuras de espanto; dos calhaus rolados; da fauna que encontra/ou aqui o seu lugar de eleição… da paixão de D. Fernando II pela cantora de ópera Elise Hensler(mais tarde Condessa d´Edla e sua segunda esposa) que metaforicamente está aqui representado pelo Palácio da Pena e pelo Chalet da Condessa.

Serpente da PenaPalácio da Pena (Parque)foto: Luís Barreira

Serpente da Pena

Palácio da Pena (Parque)

foto: Luís Barreira

Contudo, há o lado clássico fruto do movimento neoclassicista do final do século XVIII e, sobretudo, do movimento literário da Arcádia que está bem presente no programa do idílico lugar que a serra Sintra esconde. Lugar onde reina a felicidade, a simplicidade, a paz e em perfeita comunhão com a natureza, como na lenda do “nobre selvagem”. O movimento neoclássico não terá sido alheio a D. Fernando II, pessoa culta e erudita. Assim, numa nascente de água que brota das entranhas da serra de Sintra uma serpente à semelhança da Píton de Apolo incumbida de defender o oráculo de Témis se esconde numa gruta. A serpente da Pena está lá. Será o oráculo de D. Fernando II?

 

texto: 2016 © Luís Carvalho Barreira

Rocha dos Namorados

Equinócio da Primavera

No século XVI, Cesare Ripa, no seu tratado de iconologia, descreve a “Fecundidade” (ver imagem) como uma “mulher coroada com folhas de zimbro que com as mãos aperta contra os seus seios um ninho de pintassilgos com os seus filhotes (pássaro que alguns confundem com o pardal). Segundo Plínio, lib. X, cap. LXIII, o pintassilgo é um dos mais pequenos mas dos mais profícuos animais, pondo de cada vez doze ovos.

A seus pés, uma galinha com os pintos recém-nascidos, saindo de cada ovo. Do outro lado, uma lebre rodeada pelas crias.

O zimbro é a planta que possui sementes capazes de alimentar os animais. Os pintassilgos representam as crias, os filhos; as galinhas, os ovos e os coelhos anunciam a fertilidade, que é a maior bênção que uma mulher pode ter no casamento”.

Toda esta imagem iconográfica (Mulher coroada com zimbro, acompanhada de Ovos, Pintassilgos, coelhos, galinhas) evidencia a aspiração ancestral do ser humano: o anseio de abastança, o desejo de fertilidade e de fecundidade.

Ancestralmente, certos povos pré-históricos efectuavam diversos rituais, por altura do equinócio da primavera, tendo como propósito nas suas preces o desejo de um ano novo, do renovar da esperança e sobretudo do desejo de abundância e fertilidade.

Alguns destes costumes pagãos, apesar de aculturados, chegaram até nós com os mesmos propósitos de então. No Alentejo existe um ritual, em S. Pedro do Corval, onde as mulheres atiravam, e ainda atiram, calhaus rolados (supostamente ovos) para o topo de uma formação rochosa, denominado “Rocha dos Namorados”, de configuração erecta (figura do órgão masculino), cravado na terra (símbolo da deusa mãe) procurando assim a fertilidade e a fecundidade desejadas. Segundo a tradição, ainda presente, as raparigas solteiras vão à “rocha dos namorados”, na segunda-feira de Páscoa, lançar uma pedra para cima do menhir procurando resposta sobrenatural em matéria do seu enlace: cada lançamento falhado representa mais um ano de espera do seu casamento.

Luís Barreira"Rocha dos namorados"  coordenadas: 38°26'43.6"N 7°28'32.7"W

Luís Barreira

"Rocha dos namorados"

coordenadas: 38°26'43.6"N 7°28'32.7"W

Numa leitura mais atenta aos monumentos megalíticos circundantes, encontramos o Alinhamento ou Cromeleque dos Almendres (estas construções, únicas na Europa ocidental, estendem-se desde Inglaterra até Portugal), um recinto alongado, com cerca de uma centena de menhires, na sua maioria de forma ovóide, que constituiu, por certo, além de uma construção de carácter multifuncional capaz de organizar e estruturar a sociedade envolvente, uma estrutura de carácter religioso envolvendo, supostamente, rituais propiciatórios de fecundidade. Um dos menhires, situado na extremidade norte, exibe três imagens solares radiadas. Tal iconografia corresponde, provavelmente, ao momento final do Neolítico, quando na região se fizeram sentir as primeiras influências culturais das primeiras comunidades da idade dos metais, portadoras de uma nova estrutura religiosa. Esta religiosidade centrada numa divindade feminina, idealizada com grandes olhos solares, assumira-se como a grande “deusa ibérica”. Certamente que estas manifestações na Europa ocidental, feitas através de cerimónias de carácter sexual, com libações e outras ofertas corporais, não são alheias a um dos mais importantes rituais em honra de Ishtar, deusa da fertilidade, deusa dos arcádios. Esta divindade, Ishtar, não é mais do que a representação da deusa Inanna, herança dos seus antecessores povos sumérios; cognata da deusa Asterote dos filisteus; da deusa Isis dos egípcios; e da deusa Astarte dos Gregos. Mais tarde esta deusa, Ishtar, foi assumida também na mitologia Nórdica como Easter (Páscoa em Inglês), a deusa da fertilidade e da primavera.

No equinócio da primavera, os participantes em honra da deusa da fertilidade Easter pintavam e decoravam ovos escondendo-os em tocas nos campos, na sequência de anteriores práticas já exercitadas pelos Persas, Romanos, Judeus e Arménios.

 

texto escrito em 1991 

O Sonho dos Reis Magos

O dia dos Reis: nascimento de Jesus.

Capitel românico

Segundo a profecia, Antigo Testamento (Miqueias 5,1), os reis magos guiados por uma estrela chegaram a Belém a tempo de adorarem o menino, o Messias. Porém, e ainda antes de O avistarem teriam passado por Jerusalém consultando o Rei Herodes perguntando-lhe se sabia quem era o Rei que tinha nascido; pois tinham vislumbrado a “sua estrela” no céu, prenuncio do nascimento do menino, o Rei dos Judeus. Herodes incrédulo e desconfiado ordenou aos Reis Magos que fossem de imediato ao encontro do menino e no regresso lhe dissessem o lugar exacto, para que ele o pudesse adorar também. Chegados diante do Menino os Reis Magos oferendaram-No com ouro, incenso e mirra. No regresso foram avisados em sonho pelo anjo do Senhor que lhes retorquiu para não dizer nada ao rei Herodes do nascimento de Cristo e assim apanharam outra estrada evitando passarem por Jerusalém. Herodes, irado, mandou matar todos os meninos com menos de dois anos.

O sonho dos Reis MagosCatedral de Autun, França

O sonho dos Reis Magos

Catedral de Autun, França

 


texto: 2016 © Luís Carvalho Barreira

Jano

Janus (Jano) deus romano

créditos: www.britishmuseum.org/

créditos: www.britishmuseum.org/

1 de Janeiro - Ano Novo

Em quase todo o mundo, pelo menos no ocidente, comemora-se o dia de ano novo no dia 1 de Janeiro. E a origem destas festividades devem-se a ao decreto do imperador romano Júlio César (em 46 a. C.), que fixou esta data como o dia do Ano Novo. Os romanos há muito que dedicavam este dia a Jano – deus da mudança - e também a um ciclo agrário que começava associado a uma abundância futura que se desejava. Jano, o deus das duas faces e das duas portas (entrada e saída) simbolizava o conhecimento e a partilha para que seja possível efectuar essa mudança. Jano era representado por duas faces, uma delas voltada para trás, visualizando o passado, e a outra virada para a frente, simbolizando o futuro. Conhecedor do passado e vaticinador dos inícios e das assertivas decisões estava ligado aos ciclos agrários que se iniciam em finais de Janeiro (fim do inverno) até às colheitas (outono). Este ciclo culmina com o solstício de inverno dando lugar à Saturnália, festividades romanas em honra ao deus Saturno que ocorria no mês de Dezembro e que se estendiam até 25 de Dezembro (sol invictus – sol vencedor).

Em Janeiro (Jano) um novo ano agrário e religioso começavam e a esperança e as expectativas eram renovadas.

O Rapto de Europa, Peter Paul Rubens

Peter Paul Rubens,Rapto de Europa, 1628/29Museo del Prado

Peter Paul Rubens,

Rapto de Europa, 1628/29

Museo del Prado

Amores proibidos com um final feliz. A bela Europa terá sido seduzida pela opulência de um toiro que se deitou aos seus pés com ar pacífico e de um olhar ternurento. Primeiro afagou-o, depois sentou-se-lhe no dorso e depois de algumas carícias trocadas o touro empreendeu um voo por cima do oceano. A pobre princesa fenícia ficou assustadíssima. Mas não tardou a perceber que o raptor só podia ser Zeus disfarçado, pois ao longo da sua viagem verificou que das ondas emergiam peixes, tritões e sereias a acenar-lhes num cortejo nupcial. Até Posídeon apareceu agitando o seu tridente. Da união de Zeus e Europa nasceram três filhos: o valente Sarpédon, o justo Radamanto e o lendário Minos, rei de Creta.

Europa coroada deu nome a todo o território a Ocidente…

Goya, La Maja desnuda, 1800

La Maja desnuda de Francisco Goya

Francisco de Goya (1746-1828)Pepita Tudó "La Maja desnuda", 1800Dimensões: 97 cm x 190 cmMaterial: Tinta a óleoLocalização: Museu do PradoCriação: 1797–1800

Francisco de Goya (1746-1828)

Pepita Tudó "La Maja desnuda", 1800

Dimensões: 97 cm x 190 cm

Material: Tinta a óleo

Localização: Museu do Prado

Criação: 1797–1800


Os mistérios de “La Maja desnuda, c.1800” uma “obra menor” no percurso artístico de Francisco Goya?!

 

Goya, aos dezassete anos, transferiu-se para Madrid onde estudou com Anton Raphael Mengs, pintor da corte espanhola. Depois de duas tentativas (1763-66) foi recusada a entrada na academia de Belas Artes. Mais tarde, em 25 de abril de 1785, depois da morte de Carlos III e da coroação de Carlos IV, foi nomeado "Primeiro Pintor da Câmara do Rei", tornando-se o pintor oficial do monarca e da sua família. É com este estatuto que Goya se torna num retratista da corte e da nobreza espanhola acompanhando o gosto do academicismo vigente. Goya realizou inúmeros retratos e, entre muitos, destacamos o da figura de Manuel Godoy representado, ao jeito neoclássico, como vencedor da “Guerra das laranjas” entre espanhóis e portugueses sem que tivesse grande oposição por parte dos seus beligerantes.

Manuel Godoy retratado por Goya, 1801

Manuel Godoy retratado por Goya, 1801

Quem foi Manuel Godoy?

Manuel Godoy foi primeiro-ministro de Carlos IV, Rei de Espanha. Durante as invasões francesas as suas posições dúbias tornaram-no no joguete de Napoleão acalentando a ideia de poder ser príncipe do sul de Portugal (Alentejo e Algarve), promessa feita por parte de Napoleão Bonaparte no Tratado de Fontainebleau (secreto, 1807).

A ascensão de Manuel Godoy na corte espanhola deveu-se muito ao romance que manteve com Maria Luísa de Parma, esposa de Carlos IV.

Godoy casou-se com Maria Teresa de Borbón y Villabriga, 1797 e divorciaram-se em 1808. Todavia, manteve um relacionamento escaldante com a andaluza Pepita Tudó (1779-1869) de 17 anos com quem viria a casar depois da morte de sua mulher. Feita condessa de Castillofiel, Pepita Tudó terá sido a modelo de La Maja desnuda de Goya (Tese defendida por Robert Hughes no livro Goya, 2003).

 

Mas como é que podemos enquadrar a pintura erótica de La Maja desnuda (única no percurso artístico de Goya) no movimento romântico?

A decadência das monarquias absolutistas – Ancien Régime – promovera o lado hedonista e intimista da nobreza europeia. O culto artístico no final do Barroco (O Rococó) era de um naturalismo erótico, muitas das vezes camuflados em histórias mitológicas. Os desejos dos seus promotores alicerçados na futilidade das suas ações, dos encontros amorosos e na sensualidade de uma vida ociosa, eram o enquadramento da sociedade nobre e burguesa do final do século XVIII. Assim, a encomenda feita de Manuel Godoy a Goya de um nu deitado enquadra-se no espírito da arte do Rococó onde os “Boucher’s”, os “Fragonard’s”, tinham lugar de destaque nos aposentos dos seus encomendadores.

La Maja desnuda… e mais tarde La Maja vestida serviram de ostentação privada na galeria do seu ministério a par de outras obras que Godoy tinha no seu gabinete. Segundo relato de Gonzalez de Sepúlveda (referência tirada da página do Museu do Prado), possuía «vários quadros que poderiam ser observados: Vénus ao espelho de Velasquez, Vénus de Ticiano e uma (vénus) de Goya».

Ticiano, Vénus de Urbino, 1538Velasquez, Vénus ao espelho, 1648Goya, Maja desnuda, 1800

Ticiano, Vénus de Urbino, 1538

Velasquez, Vénus ao espelho, 1648

Goya, Maja desnuda, 1800

Esta obra de Goya, La Maja desnuda, (que inicialmente deu pelo nome de Gitana, conforme descrito no inventário do palácio Godoy) ultrapassou todos os limites representativos do nu, do belo clássico enquanto metáfora do ideal de beleza. O nu de La Maja desnuda é carnal, é concupiscente, oferece-se ao observador deixando a descoberto todo o corpo nos seus mais íntimos detalhes. É provocante e ao mesmo tempo vulnerável. Não obstante, a nudez de La Maja não se esconde atrás de nenhuma divindade, é identificável, tem nome: Pepita Tudó. A vulnerabilidade da amante levou Manuel Godoy a encomendar outra pintura a Goya, La Maja vestida, com as mesmas dimensões, quiçá, para colocar no verso da primeira e assim poder alternar/ocultar a menos conveniente.

Esta pintura utiliza uma paleta de cores tonais contrastada pelo claro/escuro aqui reforçado pela ausência de outros elementos formais que possam alterar a dinâmica da composição. Um fundo quase monocromático intensifica a vulnerabilidade do nu reclinado com as mãos atrás da cabeça. Ao realismo retratado do nu, incluindo as zonas erógenas (nunca antes realizado), é contraposto uma maior expressividade dada ao tratamento do drapeado, do canapé e dos tecidos envolventes. Pinceladas rápidas, sobrepostas, confere-lhe alguma modernidade plástica afastando a pintura de Goya do neoclassicismo e do romantismo da época.

“La Maja Desnuda” pintada ainda antes de 1800 tornar-se-á na pintura mais controversa no universo artístico de Goya arrastando, ainda hoje, milhares de pessoas ao Museu do Prado, em Madrid, onde está exposta desde 1901.

A genialidade de Goya.

Goya, depois de abandonar a Academia de Belas Artes, após críticas à instituição de coartar a liberdade criativa dos artistas, refugia-se na “Quinta do Surdo”, a casa de campo que adquiriu em 1819, onde pintou as mais escuras e misteriosas pinturas.

Uma doença grave (1792) e as invasões napoleónicas deixaram um Goya revoltado com a ganância de alguns; amargurado com o desrespeito pelo sofrimento dos mais desfavorecidos; indignado com os comportamentos insanos dos seres humanos. Assim, entre os anos de 1810 e 1814, produziu a sua “obra maior”, começada com uma série de gravuras (Los Desastres de la Guerra) e desenvolvida numa pintura denunciando os horrores da guerra.

Estas pinturas utilizando cores fortes, contrastes herdados do barroco (claro/escuro), pinceladas rápidas em velaturas energicamente sobrepostas conferem expressão e dramaticidade às figuras reveladas: olhares desesperados, gritos, rostos disformes, gestos que traduzem, não só um imaginário, mas o mal-estar do autor com a realidade social espanhola. “Os fuzilamentos de três de Maio, 1808” será, talvez, a obra icónica conferindo à pintura de Goya uma modernidade dentro do contexto do movimento romântico. Goya experimenta uma linguagem plástica de índole expressionista (já abordada, de certa maneira, em El Greco e em Rembrandt) e depois prosseguida por William Turner acabando por ser assumida pelos movimentos expressionistas no período de transição do século XIX/XX.



Texto de Luís Barreira ©2005-2017

Ouro sobre azul

Madonna della Catena di San Silvestro al QuirinaleSéculo XIII

Madonna della Catena di San Silvestro al Quirinale

Século XIII

Ouro sobre azul

No decurso do Concílio de Éfeso, ano 431, foi defendido o valor da imagem, a sua representação, destacando o valor simbólico da cor. Neste encontro ecuménico saíram vencedoras as teses de que a maternidade divina de Maria é doutrina na Igreja ao invés dos nestorianos que sustentavam a ideia de Maria ser só mãe do Cristo-homem, porque lhes parecia absurdo uma criatura ser mãe do criador. Assim, Maria saiu reforçada na hierarquia da igreja católica e foram dadas indicações precisas à maneira de representar a “Mãe de Deus”: "recebe um manto azul, um azul-escuro, maravilhoso e caro, condizente com a rainha do céu". Estas directrizes são bem claras, não importa a semiótica da cor ou a mera reacção psicologia que cor possa provocar, Maria deveria ostentar as mais nobres cores: as mais raras, as mais dispendiosas.

É sabido que o primeiro pigmento azul estável usado no mundo antigo veio do lápis-lazúli (Mesopotâmia), uma pedra semipreciosa que os egípcios transformaram em pó combinando com o dourado para adornar as urnas dos faraós. A escassez deste mineral fez com que os egípcios descobrissem novos azuis, o azul egípcio. Estes pigmentos bastante saturados variavam desde o tom azul safira até o azul-turquesa. A raridade deste pigmento aliada à dificuldade na sua obtenção só tinha comparação com outro material precioso, o ouro, no que diz respeito ao seu valor monetário. É vulgar ouvir-se dizer que a perfeição é “ouro sobre azul”.

Texto: 1998 © Luís Carvalho Barreira

What’s your dirty fantasy?

Fomos surpreendidos pelo toque do telefone público no centro de uma esplanada de um dos cafés mais em voga no bairro do SOHO. Olhámos uns para os outros com um ar de espanto sem esboçarmos nenhuma reacção perante insólita situação. Estávamos avisados que em New York tudo pode acontecer… e o telefone voltou a tocar.

Estava uma noite ardente e húmida, típica das noites de verão nova-iorquinas, e à medida que algumas personalidades enigmáticas chegavam, os lugares mais próximos do telefone são cortejados. Chegámos cedo. Sentámo-nos, estrategicamente, numa mesa longe dos supostos olhares curiosos, preservando a nossa condição de forasteiros. O dia tinha sido longo. A vontade de alimentar o corpo era tão premente como a necessidade de nutrir as nossas fantasias culturais e artísticas. New York não dorme. New York é uma metrópole multicultural, local onde tudo pode suceder e a cultura anda e está na rua. É uma cidade erguida para o céu obrigando qualquer transeunte andar com o nariz empinado sem saber onde coloca os pés. E quando é chegado o ocaso, ela pulula alimentando os sonhos dos sedentos caminhantes.

Crysler BuildingNew YorkWilliam Van Alen (Arq.)

Crysler Building

New York

William Van Alen (Arq.)

Foi à noite, ao jantar, que partilhámos as experiências estéticas vividas: um edifício imponente destaca-se no horizonte arquitectónico nova-iorquino, o Chrysler Building. Reconhecido exemplo de Art Deco, com num pináculo em aço inoxidável em forma de espiral, com tamanho equivalente a sete andares, apresenta um conjunto harmonioso oito gárgulas, cabeças e asas de águia, similares à do capô do Chrysler Plymouth 1928. Uma autêntica obra de arte, concebido por William Van Alen é um ícone da glória da era moderna americana. O melhor local para observar o Chrysler Building é no topo do Empire State Building ao fim do dia antes do pôr-do-sol. Mas foi na bela forma e estranha do Flatiron Building que o nosso reparo se fez notar. Talvez pelo insólito verificado, o primeiro arranha-céus a ser construído em New York, servido de elevadores hidráulicos até ao 22º andar, fazia uns ruídos suspeitos não deixando indiferente o humor de um utente nova-iorquino: “someone flushed a toilet”. Esta frase ou a sua derivada (someone fell into… toilet) acompanhou-nos ao longo da nossa estada glosando com todas as situações estranhas detectadas. Não perdemos a nossa capacidade de espanto. Mas o nosso propósito, para tirar proveito da vida e do pulsar social, foi o de manter a discrição necessária para não sermos facilmente sinalizados. E não foi fácil.  

Luís BarreiraFlatiron Building (1902 - Daniel Burnham, arq.)New Yorkarquivo: FOLIO_524_20063, 2002

Luís Barreira

Flatiron Building (1902 - Daniel Burnham, arq.)

New York

arquivo: FOLIO_524_20063, 2002

Mas o que é que nos move numa singular esplanada em New York? Procuramos, sobretudo, dar largas à luxúria e à fantasia numa cidade única. Uma cidade a ser retratada. Uma máquina fotográfica ao tiracolo, uma jovem irrompendo através do foyer do Hotel Chelsea, um pedido autêntico “make me famous”, irá mudar todo o nosso destino na Big Apple. Ela foi responsável por termos deixado a rua. Introduziu-nos num círculo de amigos e de festas particulares. Deixámos os museus, os jardins, a Broadway, a 5ª avenida, passámos a viver o lado do “undergroud games”. Façam os possíveis por passarem por nativos, disse a Rita, numa entoação conselheira, como se fosse possível encontrar em New York pessoas legítimas com um longo perfil histórico que nos possa distinguir. Os EUA têm uma história recente e os americanos não fazem questão em sublinhar o seu passado. A terra prometida assenhoreada pela imigração tarde se viu liberta do jugo cultural europeu.

Tinha acabado de visitar o MoMA e de todo o seu acervo, numa perspectiva de encontrar a arte americana, tropecei na obra de Richard Long, gozei o grafismo de Jean-Michel Basquiat, estranhei a sopa de Andy Warhol, todavia, destaco uma obra do pintor francês Claude Monet, Water Lilies, 1914-26. Uma obra soberba, quer na sua dimensão, quer no seu impacto cromático. O domínio das cores e dos seus matizes acompanhados de um traço gestualista fazem desta pintura uma referência na pintura moderna. Confesso que nunca nenhuma obra de arte me tinha provocado um esmagamento dos sentidos.



Claude Monet, Water Lilies, 1914/26.

Claude Monet, Water Lilies, 1914/26.

Enquanto esperávamos pela nossa amiga Rita, o som da campainha saído daquele telefone público, situado mesmo ao nosso lado, voltou a tocar. Perfilando-se de uma maneira discreta e ordeira os utentes deste Bar atendiam o telefone. Os sorrisos trocados entre nós, perante insólita situação, e uma vontade de violar as estritas normas sociais provocaram suspeita entre os demais frequentadores. Afinal, toda a nossa intemperança não se comparava em nada com a atmosfera dos artistas da pop art dos anos 70. Quem não se lembra de Andy Warhol e da Factory, studio/superstar social club, situado 33 Union Square West junto do famoso Max's Kansas City por ele reactivado? Este local diletante e hedonista por excelência transformou os excessos cometidos num movimento artístico delegando-nos múltiplas obras de arte. Da imortalização das latas de sopa Campbell’s, aos múltiplos filmes de orgias realizadas na Factory, até aos Velvet Underground, banda de rock formada por Lou Reed, Sterling Morrison, John Cale, Nico, Angus MacAlise, tudo foi possível para consolar a mais misteriosa fantasia. O consumo transforma-se em Arte e a Arte converte-se em consumo.

Andy Warhol, Campbell's Soup I, 1968.

Andy Warhol, Campbell's Soup I, 1968.

Durante todo o tempo que estivemos a jantar o telefone público não parou de tocar. Chegada a Rita e esclarecida da nossa excitação, sorriu, gargalhou e disse: atendam e aceitem o convite!...

Alô… um compasso de espera, e do outro lado uma voz melada pergunta: - What’s your dirty fantasy?


Luís Barreira, New York, 1994*.

*extraído de uma longa viagem através dos Estados Unidos da América em 1994.