Les demoiselles d'Avignon, 1907
What’s your dirty fantasy?
Fomos surpreendidos pelo toque do telefone público no centro de uma esplanada de um dos cafés mais em voga no bairro do SOHO. Olhámos uns para os outros com um ar de espanto sem esboçarmos nenhuma reacção perante insólita situação. Estávamos avisados que em New York tudo pode acontecer… e o telefone voltou a tocar.
Estava uma noite ardente e húmida, típica das noites de verão nova-iorquinas, e à medida que algumas personalidades enigmáticas chegavam, os lugares mais próximos do telefone são cortejados. Chegámos cedo. Sentámo-nos, estrategicamente, numa mesa longe dos supostos olhares curiosos, preservando a nossa condição de forasteiros. O dia tinha sido longo. A vontade de alimentar o corpo era tão premente como a necessidade de nutrir as nossas fantasias culturais e artísticas. New York não dorme. New York é uma metrópole multicultural, local onde tudo pode suceder e a cultura anda e está na rua. É uma cidade erguida para o céu obrigando qualquer transeunte andar com o nariz empinado sem saber onde coloca os pés. E quando é chegado o ocaso, ela pulula alimentando os sonhos dos sedentos caminhantes.
Foi à noite, ao jantar, que partilhámos as experiências estéticas vividas: um edifício imponente destaca-se no horizonte arquitectónico nova-iorquino, o Chrysler Building. Reconhecido exemplo de Art Deco, com num pináculo em aço inoxidável em forma de espiral, com tamanho equivalente a sete andares, apresenta um conjunto harmonioso oito gárgulas, cabeças e asas de águia, similares à do capô do Chrysler Plymouth 1928. Uma autêntica obra de arte, concebido por William Van Alen é um ícone da glória da era moderna americana. O melhor local para observar o Chrysler Building é no topo do Empire State Building ao fim do dia antes do pôr-do-sol. Mas foi na bela forma e estranha do Flatiron Building que o nosso reparo se fez notar. Talvez pelo insólito verificado, o primeiro arranha-céus a ser construído em New York, servido de elevadores hidráulicos até ao 22º andar, fazia uns ruídos suspeitos não deixando indiferente o humor de um utente nova-iorquino: “someone flushed a toilet”. Esta frase ou a sua derivada (someone fell into… toilet) acompanhou-nos ao longo da nossa estada glosando com todas as situações estranhas detectadas. Não perdemos a nossa capacidade de espanto. Mas o nosso propósito, para tirar proveito da vida e do pulsar social, foi o de manter a discrição necessária para não sermos facilmente sinalizados. E não foi fácil.
Mas o que é que nos move numa singular esplanada em New York? Procuramos, sobretudo, dar largas à luxúria e à fantasia numa cidade única. Uma cidade a ser retratada. Uma máquina fotográfica ao tiracolo, uma jovem irrompendo através do foyer do Hotel Chelsea, um pedido autêntico “make me famous”, irá mudar todo o nosso destino na Big Apple. Ela foi responsável por termos deixado a rua. Introduziu-nos num círculo de amigos e de festas particulares. Deixámos os museus, os jardins, a Broadway, a 5ª avenida, passámos a viver o lado do “undergroud games”. Façam os possíveis por passarem por nativos, disse a Rita, numa entoação conselheira, como se fosse possível encontrar em New York pessoas legítimas com um longo perfil histórico que nos possa distinguir. Os EUA têm uma história recente e os americanos não fazem questão em sublinhar o seu passado. A terra prometida assenhoreada pela imigração tarde se viu liberta do jugo cultural europeu.
Tinha acabado de visitar o MoMA e de todo o seu acervo, numa perspectiva de encontrar a arte americana, tropecei na obra de Richard Long, gozei o grafismo de Jean-Michel Basquiat, estranhei a sopa de Andy Warhol, todavia, destaco uma obra do pintor francês Claude Monet, Water Lilies, 1914-26. Uma obra soberba, quer na sua dimensão, quer no seu impacto cromático. O domínio das cores e dos seus matizes acompanhados de um traço gestualista fazem desta pintura uma referência na pintura moderna. Confesso que nunca nenhuma obra de arte me tinha provocado um esmagamento dos sentidos.
Enquanto esperávamos pela nossa amiga Rita, o som da campainha saído daquele telefone público, situado mesmo ao nosso lado, voltou a tocar. Perfilando-se de uma maneira discreta e ordeira os utentes deste Bar atendiam o telefone. Os sorrisos trocados entre nós, perante insólita situação, e uma vontade de violar as estritas normas sociais provocaram suspeita entre os demais frequentadores. Afinal, toda a nossa intemperança não se comparava em nada com a atmosfera dos artistas da pop art dos anos 70. Quem não se lembra de Andy Warhol e da Factory, studio/superstar social club, situado 33 Union Square West junto do famoso Max's Kansas City por ele reactivado? Este local diletante e hedonista por excelência transformou os excessos cometidos num movimento artístico delegando-nos múltiplas obras de arte. Da imortalização das latas de sopa Campbell’s, aos múltiplos filmes de orgias realizadas na Factory, até aos Velvet Underground, banda de rock formada por Lou Reed, Sterling Morrison, John Cale, Nico, Angus MacAlise, tudo foi possível para consolar a mais misteriosa fantasia. O consumo transforma-se em Arte e a Arte converte-se em consumo.
Durante todo o tempo que estivemos a jantar o telefone público não parou de tocar. Chegada a Rita e esclarecida da nossa excitação, sorriu, gargalhou e disse: atendam e aceitem o convite!...
Alô… um compasso de espera, e do outro lado uma voz melada pergunta: - What’s your dirty fantasy?
Luís Barreira, New York, 1994*.
*extraído de uma longa viagem através dos Estados Unidos da América em 1994.