E tudo terá começado – provavelmente – quando o Homem pré-histórico (período paleolítico) muito antes da revolução agrícola (c.10000 a.C.) encontra na vida dicotómica entre a vida e a morte, entre o dia e a noite, entre o renascimento e a fertilidade, entre a matéria mais directa e a sua existência. O Homem irá assistir a ciclos de vida que se regeneram segundo ritmos temporais constantes; repara na mudança do dia para a noite; observa o movimento dos astros (principalmente o Sol); presencia as estações do ano e em certos períodos anuais colhe os alimentos indispensáveis à sua vida. A noção de tempo circular, finito, vai ser o cerne da cogitação de todo o Homem, e do pré-histórico em particular, definido em ciclos de vida que se renovam todos os anos. Uma realidade entendível porque é observável e partilhável através do conhecimento empírico herdado do saber dos seus ancestrais e da partilha da comunidade onde está inserido. Esta noção de tempo esbarra quando tem consciência da finitude da sua existência: o desconhecimento e a morte. O desconhecimento será combatido paulatinamente pela experiência adquirida, pela ambição do saber e pelo entendimento de tudo aquilo que o envolve. A morte acrescenta uma nova unidade de tempo: o infinito, o absoluto, o sobrenatural, o divino. Esta ideia de absoluto, insondável mesmo nos dias de hoje, levá-lo-á a entregar-se ao livre-arbítrio de entidades sobrenaturais: os rituais divinos. Uma realidade especulativa e transcendental. Esta dual dimensão entre a matéria e o transcendente; entre o corpo, o seu corpo, e o divino; entre o conhecimento e a morte; fará com que os objectos produzidos reflictam esta interacção comunicacional entre ele e a ideia de Absoluto. E o único motivo que o homem encontra para se poder expressar é com o seu corpo. Porque o corpo encerra em si todo o mistério existencial e manifesta-se segundo valores formais conhecíveis que lhe diz respeito. O corpo, enquanto matéria, será o objecto eleito para enfatizar a ideia de absoluto entre a criação e o transcendente[5]. O homem conceberá a metafísica segundo modelos de uma realidade vivida. E é o corpo e com o corpo interagindo com a Natureza que os objectos ganham significado. A “arte” nasce, assim, de uma necessidade quase umbilical entre o Homem e a Natureza; entre a relação estabelecida entre a existência e a sua essência[6] (o que constitui a natureza do seu Ser), entre a pulsão criadora e o acto criativo que podemos passar a defini-lo como “o corpo poiético”. A criação antecede o instinto de sobrevivência. Assim, não é de estranhar que as primeiras manifestações de índole “criativa”, como as peças escultóricas, ou as pinturas e gravuras conhecidas, ou mesmo os monumentos megalíticos tenham para o Homem um carácter mágico. Os objectos criados personificados ou transformados em divindades tornam una a condição humana. O Homem cria para alimentar, sobretudo, o desejo de fertilidade. E a Mãe-Natureza será a primeira divindade aceite e conhecida, quer seja simbolizada através de monumentos megalíticos de forma fálica fecundando a terra (em que a Estela fálica, presente no Museu da Região de Chaves é um bom exemplo), quer seja em pequenas estatuetas, amuletos, como a “divindades”, as únicas que dão resposta cabal à inquietação do homem.
Regressemos ao passado para falar de um período de vários milhares de anos em que o Homem recolector vai gradualmente deixar de ter uma vida nómada para se fixar e “dominar” a natureza tendo por base uma economia produtora, proporcionando um maior controle das fontes de alimentação dando origem a comunidades, povos, e por vezes dando origem às grandes civilizações. O achado arqueológico, Vénus de Vidago, enquadra-se neste período das tribos celtibéricas[7] (Idade do Ferro: c.700 – 280 a.C.) e na inquietação das comunidades desenvolvidas neste local. Ela separa-se das suas ancestrais vénus paleolíticas, pelo tamanho, por ser esculpida em granito, pelo conceito estético-estilístico e pela suposta pertença a uma comunidade mais alargada. Para os Celtas a divindade máxima era feminina: a Deusa-Mãe cuja manifestação era a própria natureza. Doravante, a Mãe-Natureza terá outras representações e outros simbolismos consoante a vontade e a necessidade explicativa do homem ao longo da história da sua existência, porém, nunca deixará de ter subjacente os mesmos princípios que orientaram todas as representações: o corpo poiético – a criação, a comunicação, a manifestação, em suma, aquilo que hoje chamamos de objectos artísticos - estará intrinsecamente ligado à sexualidade, à abundância, mediada pelo receio do absoluto. Assim, jamais a condição humana separará a matéria do transcendente e o Corpo da Criação.
Texto e fotografias: 1998-2025 © Luís Carvalho Barreira