"Retrato de um Homem Negro"

T. Géricault

"Retrato de um Homem Negro": o único Géricault nas colecções do Palácio Nacional da Ajuda.

Adquirido e incorporado nas Colecções Reais no século XIX, este é um retrato intimista e, à luz do seu tempo, de grande carácter humanista.

Encontra-se, sem coincidência, pendurado lado a lado com o retrato do Imperador Pedro II do Brasil, membro cadete da Casa Real de Portugal e, em 1888, libertador dos escravos do Brasil.

Vénus de Vidago

Vénus de Vidago, Museu da Região Flaviense

fotografia: Luís Carvalho Barreira

A Vénus de Vidago é uma peça escultórica em granito (40 cm de altura) encontrada na região de Vidago (na aldeia de Selhariz[1]) e patente no Museu da Região Flaviense. De um corpo monolítico feminino, sem cabeça, sobressaem seios avantajados envoltos pelos braços e mãos da figura reforçando um ventre volumoso. Todo o tronco é suportado por pernas fortes, cuja perna direita termina num desconcertante pé, representado de lado, conferindo-lhe uma curiosa estética de movimento. De ancas largas, reforçam a ideia de uma mulher supostamente grávida(?): dito na expressão transmontana, “boas parideiras”. Não é uma escultura de vulto redondo; as costas lisas e de forma paralelepipédica acompanham todo o corpo sem detalhe algum anatómico, o que indicia pertencer é um espaço arquitectónico mais complexo de adoração e ou de culto de uma divindade. A Vénus de Vidago à semelhança de outras figuras intituladas de vénus paleolíticas (neste período a produção de artefactos artísticos resume-se a esculturas, de pequena dimensão, tais como: Hohle Fels, Willendorf, Lespugue, Grimaldi, etc.[2]) não são mais do que o seguimento de práticas milenares de culto à Mãe-Natureza. Uma verdadeira comunhão entre a mulher que gera vida e a Natureza onde brota toda a vida indispensável ao sustento.  Iconograficamente estas esculturas apresentam as mesmas características: grandes seios, quadris largos, características fisiológicas de mulheres férteis. A Mãe-Natureza enquanto divindade personifica a generosidade da Natureza, a maternidade, a fertilidade, enquanto o falo[3] representado pelos menhires e estelas simbolizam a energia da criação.

Estela fálica, Museu da Região Flaviense[4]

E tudo terá começado – provavelmente – quando o Homem pré-histórico (período paleolítico) muito antes da revolução agrícola (c.10000 a.C.) encontra na vida dicotómica entre a vida e a morte, entre o dia e a noite, entre o renascimento e a fertilidade, entre a matéria mais directa e a sua existência. O Homem irá assistir a ciclos de vida que se regeneram segundo ritmos temporais constantes; repara na mudança do dia para a noite; observa o movimento dos astros (principalmente o Sol); presencia as estações do ano e em certos períodos anuais colhe os alimentos indispensáveis à sua vida. A noção de tempo circular, finito, vai ser o cerne da cogitação de todo o Homem, e do pré-histórico em particular, definido em ciclos de vida que se renovam todos os anos. Uma realidade entendível porque é observável e partilhável através do conhecimento empírico herdado do saber dos seus ancestrais e da partilha da comunidade onde está inserido. Esta noção de tempo esbarra quando tem consciência da finitude da sua existência: o desconhecimento e a morte. O desconhecimento será combatido paulatinamente pela experiência adquirida, pela ambição do saber e pelo entendimento de tudo aquilo que o envolve. A morte acrescenta uma nova unidade de tempo: o infinito, o absoluto, o sobrenatural, o divino. Esta ideia de absoluto, insondável mesmo nos dias de hoje, levá-lo-á a entregar-se ao livre-arbítrio de entidades sobrenaturais: os rituais divinos. Uma realidade especulativa e transcendental. Esta dual dimensão entre a matéria e o transcendente; entre o corpo, o seu corpo, e o divino; entre o conhecimento e a morte; fará com que os objectos produzidos reflictam esta interacção comunicacional entre ele e a ideia de Absoluto. E o único motivo que o homem encontra para se poder expressar é com o seu corpo. Porque o corpo encerra em si todo o mistério existencial e manifesta-se segundo valores formais conhecíveis que lhe diz respeito. O corpo, enquanto matéria, será o objecto eleito para enfatizar a ideia de absoluto entre a criação e o transcendente[5]. O homem conceberá a metafísica segundo modelos de uma realidade vivida. E é o corpo e com o corpo interagindo com a Natureza que os objectos ganham significado. A “arte” nasce, assim, de uma necessidade quase umbilical entre o Homem e a Natureza; entre a relação estabelecida entre a existência e a sua essência[6] (o que constitui a natureza do seu Ser), entre a pulsão criadora e o acto criativo que podemos passar a defini-lo como “o corpo poiético”. A criação antecede o instinto de sobrevivência. Assim, não é de estranhar que as primeiras manifestações de índole “criativa”, como as peças escultóricas, ou as pinturas e gravuras conhecidas, ou mesmo os monumentos megalíticos tenham para o Homem um carácter mágico. Os objectos criados personificados ou transformados em divindades tornam una a condição humana. O Homem cria para alimentar, sobretudo, o desejo de fertilidade. E a Mãe-Natureza será a primeira divindade aceite e conhecida, quer seja simbolizada através de monumentos megalíticos de forma fálica fecundando a terra (em que a Estela fálica, presente no Museu da Região de Chaves é um bom exemplo), quer seja em pequenas estatuetas, amuletos, como a “divindades”, as únicas que dão resposta cabal à inquietação do homem.

Regressemos ao passado para falar de um período de vários milhares de anos em que o Homem recolector vai gradualmente deixar de ter uma vida nómada para se fixar e “dominar” a natureza tendo por base uma economia produtora, proporcionando um maior controle das fontes de alimentação dando origem a comunidades, povos, e por vezes dando origem às grandes civilizações. O achado arqueológico, Vénus de Vidago, enquadra-se neste período das tribos celtibéricas[7] (Idade do Ferro: c.700 – 280 a.C.) e na inquietação das comunidades desenvolvidas neste local. Ela separa-se das suas ancestrais vénus paleolíticas, pelo tamanho, por ser esculpida em granito, pelo conceito estético-estilístico e pela suposta pertença a uma comunidade mais alargada. Para os Celtas a divindade máxima era feminina: a Deusa-Mãe cuja manifestação era a própria natureza. Doravante, a Mãe-Natureza terá outras representações e outros simbolismos consoante a vontade e a necessidade explicativa do homem ao longo da história da sua existência, porém, nunca deixará de ter subjacente os mesmos princípios que orientaram todas as representações: o corpo poiético – a criação, a comunicação, a manifestação, em suma, aquilo que hoje chamamos de objectos artísticos - estará intrinsecamente ligado à sexualidade, à abundância, mediada pelo receio do absoluto. Assim, jamais a condição humana separará a matéria do transcendente e o Corpo da Criação. 

 

Texto e fotografias: 1998-2025 © Luís Carvalho Barreira




Mapa: Vénus no Paleolítico


[1] Aquae Flaviae, pág 110. (Livro consultado no Museu da Região Flaviense)

[2] Ver mapa em anexo.

[3] Na Antiguidade Clássica ele era um símbolo apotropaico, ou seja, tinha o poder de afastar o azar e as influências maléficas, ao mesmo tempo em que simbolizava a protecção junto à ideia de fertilidade e vida.

[4] Casualmente descoberta em trabalhos de desassoreamento que no ano de 1980 se efectuaram junto da Ponte Romana, a Estátua-Menir de Chaves revela uma morfologia fálica esquadrada em quatro faces onde se insculpe um conjunto de atributos de carácter guerreiro com provável significação simbólica e ritual. A estela foi criada sobre o suporte de um bloco paralelepipédico, podendo ter resultado do reaproveitamento de um menir de cronologia mais recuada e onde a parte superior era destacada para dar a configuração geral de um falo. A peça, estudada em pormenor por Carlos Alberto Ferreira de Almeida e Vítor Oliveira Jorge (ALMEIDA; JORGE: 1980, p.5 - 24), é de um granito de boa qualidade, e apesar de algumas escoriações que resultaram da sua remoção do leito do rio Tâmega, encontra-se em bom estado de conservação.

[5] Aquilo que mais tarde Aristóteles definiu como Ethos / Pathos / Logos: Um apelo ao ethos depende da credibilidade, competência e reputação da pessoa que faz o argumento. O recurso para pathos é um argumento emocional. Argumentos dessa natureza podem ter como alvo sentimento comum, valores culturais compartilhados ou serem estruturados para manipular e provocar uma resposta emocional directa. A pessoa que faz o argumento procura fazer o ouvinte se identificar com ela. O recurso para logos é um argumento lógico. A credibilidade do argumento repousa sobre a sua coerência e estrutura interna, bem como a evidência apresentada no seu apoio. Um argumento pode ser de apenas um desses estilos, mas Aristóteles acreditava que um argumento eficaz mistura todas as três qualidades.

[6] Nota: para Platão um Ser é percebido a partir do espírito ou das Ideias que se sobrepõem às percepções sensoriais. Para Aristóteles a reunião das características comuns de cada Ser define a natureza intrínseca de cada Ser. Para S. Tomás de Aquino (Tomismo) a concepção geral de um Ser é percebida unicamente através do pensamento e eventualmente dissociada da realidade existencial, única e palpável.

[7] Tribos vindos do centro da europa principais responsáveis pela introdução e manufactura do ferro. Os celtas são considerados os introdutores da metalurgia do ferro na Europa, dando origem naquele continente à Idade do Ferro (culturas de Hallstatt e La Tène).