Goya, La Maja desnuda, 1800

La Maja desnuda de Francisco Goya

Francisco de Goya (1746-1828)Pepita Tudó "La Maja desnuda", 1800Dimensões: 97 cm x 190 cmMaterial: Tinta a óleoLocalização: Museu do PradoCriação: 1797–1800

Francisco de Goya (1746-1828)

Pepita Tudó "La Maja desnuda", 1800

Dimensões: 97 cm x 190 cm

Material: Tinta a óleo

Localização: Museu do Prado

Criação: 1797–1800


Os mistérios de “La Maja desnuda, c.1800” uma “obra menor” no percurso artístico de Francisco Goya?!

 

Goya, aos dezassete anos, transferiu-se para Madrid onde estudou com Anton Raphael Mengs, pintor da corte espanhola. Depois de duas tentativas (1763-66) foi recusada a entrada na academia de Belas Artes. Mais tarde, em 25 de abril de 1785, depois da morte de Carlos III e da coroação de Carlos IV, foi nomeado "Primeiro Pintor da Câmara do Rei", tornando-se o pintor oficial do monarca e da sua família. É com este estatuto que Goya se torna num retratista da corte e da nobreza espanhola acompanhando o gosto do academicismo vigente. Goya realizou inúmeros retratos e, entre muitos, destacamos o da figura de Manuel Godoy representado, ao jeito neoclássico, como vencedor da “Guerra das laranjas” entre espanhóis e portugueses sem que tivesse grande oposição por parte dos seus beligerantes.

Manuel Godoy retratado por Goya, 1801

Manuel Godoy retratado por Goya, 1801

Quem foi Manuel Godoy?

Manuel Godoy foi primeiro-ministro de Carlos IV, Rei de Espanha. Durante as invasões francesas as suas posições dúbias tornaram-no no joguete de Napoleão acalentando a ideia de poder ser príncipe do sul de Portugal (Alentejo e Algarve), promessa feita por parte de Napoleão Bonaparte no Tratado de Fontainebleau (secreto, 1807).

A ascensão de Manuel Godoy na corte espanhola deveu-se muito ao romance que manteve com Maria Luísa de Parma, esposa de Carlos IV.

Godoy casou-se com Maria Teresa de Borbón y Villabriga, 1797 e divorciaram-se em 1808. Todavia, manteve um relacionamento escaldante com a andaluza Pepita Tudó (1779-1869) de 17 anos com quem viria a casar depois da morte de sua mulher. Feita condessa de Castillofiel, Pepita Tudó terá sido a modelo de La Maja desnuda de Goya (Tese defendida por Robert Hughes no livro Goya, 2003).

 

Mas como é que podemos enquadrar a pintura erótica de La Maja desnuda (única no percurso artístico de Goya) no movimento romântico?

A decadência das monarquias absolutistas – Ancien Régime – promovera o lado hedonista e intimista da nobreza europeia. O culto artístico no final do Barroco (O Rococó) era de um naturalismo erótico, muitas das vezes camuflados em histórias mitológicas. Os desejos dos seus promotores alicerçados na futilidade das suas ações, dos encontros amorosos e na sensualidade de uma vida ociosa, eram o enquadramento da sociedade nobre e burguesa do final do século XVIII. Assim, a encomenda feita de Manuel Godoy a Goya de um nu deitado enquadra-se no espírito da arte do Rococó onde os “Boucher’s”, os “Fragonard’s”, tinham lugar de destaque nos aposentos dos seus encomendadores.

La Maja desnuda… e mais tarde La Maja vestida serviram de ostentação privada na galeria do seu ministério a par de outras obras que Godoy tinha no seu gabinete. Segundo relato de Gonzalez de Sepúlveda (referência tirada da página do Museu do Prado), possuía «vários quadros que poderiam ser observados: Vénus ao espelho de Velasquez, Vénus de Ticiano e uma (vénus) de Goya».

Ticiano, Vénus de Urbino, 1538Velasquez, Vénus ao espelho, 1648Goya, Maja desnuda, 1800

Ticiano, Vénus de Urbino, 1538

Velasquez, Vénus ao espelho, 1648

Goya, Maja desnuda, 1800

Esta obra de Goya, La Maja desnuda, (que inicialmente deu pelo nome de Gitana, conforme descrito no inventário do palácio Godoy) ultrapassou todos os limites representativos do nu, do belo clássico enquanto metáfora do ideal de beleza. O nu de La Maja desnuda é carnal, é concupiscente, oferece-se ao observador deixando a descoberto todo o corpo nos seus mais íntimos detalhes. É provocante e ao mesmo tempo vulnerável. Não obstante, a nudez de La Maja não se esconde atrás de nenhuma divindade, é identificável, tem nome: Pepita Tudó. A vulnerabilidade da amante levou Manuel Godoy a encomendar outra pintura a Goya, La Maja vestida, com as mesmas dimensões, quiçá, para colocar no verso da primeira e assim poder alternar/ocultar a menos conveniente.

Esta pintura utiliza uma paleta de cores tonais contrastada pelo claro/escuro aqui reforçado pela ausência de outros elementos formais que possam alterar a dinâmica da composição. Um fundo quase monocromático intensifica a vulnerabilidade do nu reclinado com as mãos atrás da cabeça. Ao realismo retratado do nu, incluindo as zonas erógenas (nunca antes realizado), é contraposto uma maior expressividade dada ao tratamento do drapeado, do canapé e dos tecidos envolventes. Pinceladas rápidas, sobrepostas, confere-lhe alguma modernidade plástica afastando a pintura de Goya do neoclassicismo e do romantismo da época.

“La Maja Desnuda” pintada ainda antes de 1800 tornar-se-á na pintura mais controversa no universo artístico de Goya arrastando, ainda hoje, milhares de pessoas ao Museu do Prado, em Madrid, onde está exposta desde 1901.

A genialidade de Goya.

Goya, depois de abandonar a Academia de Belas Artes, após críticas à instituição de coartar a liberdade criativa dos artistas, refugia-se na “Quinta do Surdo”, a casa de campo que adquiriu em 1819, onde pintou as mais escuras e misteriosas pinturas.

Uma doença grave (1792) e as invasões napoleónicas deixaram um Goya revoltado com a ganância de alguns; amargurado com o desrespeito pelo sofrimento dos mais desfavorecidos; indignado com os comportamentos insanos dos seres humanos. Assim, entre os anos de 1810 e 1814, produziu a sua “obra maior”, começada com uma série de gravuras (Los Desastres de la Guerra) e desenvolvida numa pintura denunciando os horrores da guerra.

Estas pinturas utilizando cores fortes, contrastes herdados do barroco (claro/escuro), pinceladas rápidas em velaturas energicamente sobrepostas conferem expressão e dramaticidade às figuras reveladas: olhares desesperados, gritos, rostos disformes, gestos que traduzem, não só um imaginário, mas o mal-estar do autor com a realidade social espanhola. “Os fuzilamentos de três de Maio, 1808” será, talvez, a obra icónica conferindo à pintura de Goya uma modernidade dentro do contexto do movimento romântico. Goya experimenta uma linguagem plástica de índole expressionista (já abordada, de certa maneira, em El Greco e em Rembrandt) e depois prosseguida por William Turner acabando por ser assumida pelos movimentos expressionistas no período de transição do século XIX/XX.



Texto de Luís Barreira ©2005-2017

Paisagem, 1991

Luís Barreirapaisagem, 1991acrílico s/tela40x60 cmcolecção privada: Paula Teixeira

Luís Barreira

paisagem, 1991

acrílico s/tela

40x60 cm

colecção privada: Paula Teixeira

entropia

Nos anos 80 entre o mergulho no caos e o chafurdar na desordem, a entropia da arte encerrava em si um movimento de redescoberta da harmonia. O expressionismo gestual da pintura, que rompe em sucessivas camadas de tinta, dá lugar ao rasgar de espaços fruto do reenquadramento da máquina fotográfica. A fotografia como veículo, instrumento, das artes plásticas.

Luís Barreiraprojecto: entropia & arte (1982-1989)6 fotografias / trabalhos expostos na I Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira, 1989Série: entropia

Luís Barreira

projecto: entropia & arte (1982-1989)

6 fotografias / trabalhos expostos na I Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira, 1989

Série: entropia

pintura, 1991

Pintura

Luís Barreira, s/título, 1991Pragal300x250 cmacrílico s/gessoPINTURAcolecção particular

Luís Barreira, s/título, 1991

Pragal

300x250 cm

acrílico s/gesso

PINTURA

colecção particular

isto não é uma Margarida, 1984

Em 1984 fiz os primeiros retratos marcado pela influência Dadaísta - Surrealista. Man Ray e Marcel Duchamp eram as minhas principais referências artísticas numa altura em que a manipulação da imagem passava, quase em exclusivo, pelo recorte e colagem da imagem. A Dama Dada e mais tarde a Daisy Dada foram ensaios fotográficos e plásticos realizados nos finais dos anos 80 e início dos anos 90 (nunca publicados) a génese de La Femme - surrèaliste,  trabalho (re)começado em 2012.

Luís BarreiraDama Dada,isto não é uma Margarida, 1984FotografiaGelatin-Silver Print

Luís Barreira

Dama Dada,

isto não é uma Margarida, 1984

Fotografia

Gelatin-Silver Print

Os novos instrumentos colocados à disposição da fotografia digital são agora assumidos distanciando o real do imaginário poético. Neste sentido, La Femme - surrèaliste aparece como um novo projecto fotográfico e plástico.

Luís BarreiraMémoire d'une femme, 2015série: La Femme - surrèalisteFotografia digital

Luís Barreira

Mémoire d'une femme, 2015

série: La Femme - surrèaliste

Fotografia digital

O Divino e a Fertilidade

O Corpo pré-histórico – o Divino e a fertilidade.

E tudo terá começado – provavelmente – quando o Homo sapiens encontra na terra e na sua fertilidade a matéria mais directa da sua existência, muito antes da revolução agrícola (c. 10000 a.C.). Estamos a falar de um período de vários milhares de anos em que o Homem vai gradualmente deixar de ter uma vida nómada para se fixar e “domesticar” a natureza. Assiste a ciclos de vida que se regeneram segundo ritmos temporais constantes; repara na mudança do dia para a noite; observa o movimento dos astros (principalmente o Sol); presencia as estações do ano e em certos períodos anuais colhe os alimentos indispensáveis à sua vida. A noção de tempo é circular, finita. Finito em ciclos de vida que se renovam todos os anos. Uma realidade entendível porque é observável e partilhável através do conhecimento empírico quiçá herdado do saber dos seus ancestrais ou da partilha da comunidade onde está inserido. Esta noção de tempo esbarra quando tem consciência da finitude da sua existência: o desconhecimento e a morte. O desconhecimento será combatido paulatinamente pela experiência adquirida, pela ambição do saber e pelo entendimento de tudo aquilo que o envolve. A morte acrescenta uma nova unidade de tempo: o infinito, o absoluto, o sobrenatural, o divino. Esta ideia de absoluto, insondável mesmo nos dias de hoje, levá-lo-á a entregar-se ao livre arbítrio de entidades sobrenaturais: o divino. Uma realidade especulativa e transcendental. Esta dual dimensão entre a matéria e o transcendente; entre o corpo, o seu corpo, e o divino; entre o conhecimento e a morte; fará com que os objectos produzidos reflictam esta interacção comunicacional entre ele e a ideia de Absoluto. E o único motivo que o homem encontra para se poder expressar é com o seu corpo. Porque o corpo encerra em si todo o mistério existencial e manifesta-se segundo valores formais conhecíveis que lhe diz respeito.

O corpo, enquanto matéria, será o objecto eleito para enfatizar a ideia de absoluto entre a criação e o transcendente[1]. O homem conceberá a metafísica segundo modelos de uma realidade vivida. E é o corpo e com o corpo interagindo com a Natureza que os objectos ganham significado. A “arte” nasce, assim, de uma necessidade quase umbilical entre o Homem e a Natureza; entre a relação estabelecida entre a existência e a sua essência[2] (o que constitui a natureza do seu Ser), entre a pulsão criadora e o acto criativo que passamos a defini-lo como “o corpo poiético”. A criação antecede o instinto de sobrevivência. Assim, não é de estranhar que as primeiras manifestações de índole “criativa”, como as peças escultóricas, ou as pinturas e gravuras conhecidas, ou mesmo os monumentos megalíticos tenham para o Homem um carácter mágico. Os objectos criados personificados ou transformados em divindades tornam una a condição humana. O Homem cria para alimentar, sobretudo, o desejo da fertilidade. E a Mãe-Natureza será a primeira divindade conhecida, quer seja simbolizada através de monumentos megalíticos de forma fálica fecundando a terra (ver menhir do Outeiro) quer seja em pequenas estatuetas como a “Divindade” de Willendorf ou de Lespugue, entre outras, as únicas que dão resposta cabal à sua inquietação. Iconograficamente estas esculturas apresentam grandes seios, ancas largas, características fisiológicas de mulheres férteis: boas parideiras. Uma verdadeira comunhão entre a mulher que gera vida e a Natureza onde brota toda a vida indispensável ao seu sustento.  A Mãe-Natureza enquanto divindade personifica a generosidade da Natureza, a maternidade, a fertilidade, enquanto o falo[3] representa a energia da criação. Doravante, o corpo poiético – a criação, a comunicação, a manifestação, em suma, aquilo que hoje chamamos de objectos artísticos - estará intrinsecamente ligado à sexualidade, à abundância, mediada pelo receio do absoluto.

 

A Mãe-Natureza terá outras representações e outros simbolismos consoante a vontade e a necessidade explicativa do homem ao longo da história da sua existência. Assim, jamais a condição humana separará a matéria do transcendente, o Corpo da Criação.

Divino__Fertilidade.jpg

 

| Pré-histórica | Mesopotâmica | Egípcia | Grega - Romana | Cristã |


[1] Aquilo que mais tarde Aristóteles definiu como Ethos / Pathos / Logos: Um apelo ao ethos depende da credibilidade, competência e reputação da pessoa que faz o argumento. O recurso para pathos é um argumento emocional. Argumentos dessa natureza podem ter como alvo sentimento comum, valores culturais compartilhados ou serem estruturados para manipular e provocar uma resposta emocional directa. A pessoa que faz o argumento procura fazer o ouvinte se identificar com ela. O recurso para logos é um argumento lógico. A credibilidade do argumento repousa sobre a sua coerência e estrutura interna, bem como a evidência apresentada no seu apoio. Um argumento pode ser de apenas um desses estilos, mas Aristóteles acreditava que um argumento eficaz mistura todas as três qualidades.

[2] Nota: para Platão um Ser é percebido a partir do espírito ou das Ideias que se sobrepõem às percepções sensoriais. Para Aristóteles a reunião das características comuns de cada Ser definem a natureza intrínseca de cada Ser. Para S. Tomás de Aquino (Tomismo) a concepção geral de um Ser é percebida unicamente através do pensamento e eventualmente dissociada da realidade existencial, única e palpável.

[3] Na Antiguidade Clássica ele era um símbolo apotropaico, ou seja, tinha o poder de afastar o azar e as influências maléficas, ao mesmo tempo em que simbolizava a protecção junto à ideia de fertilidade e vida.

 

 

O Divino e a Fertilidade, 1998-2015©Luís Barreira

Papoilas, 1983

Luís BarreiraPapoilas, 1983acrílico s/tela50x60 cmcolecção particular: Graça Figueiredo

Luís Barreira
Papoilas, 1983
acrílico s/tela

50x60 cm

colecção particular: Graça Figueiredo

François Clouet, Carta de amor, 1570

François Clouet foi considerado o maior pintor e desenhista francês da segunda metade do século XVI e um dos maiores nomes da Escola de Fontainebleau. François Clouet, pintor da corte de Francisco I, afirmou-se como retratista e também de obras de carácter histórico e mitológico.

“A carta de amor” é um dos quadros mais intrigantes e mais belo de François Clouet. A relação que se estabelece entre as personagens e a própria carta (objecto da atenção do observador) atribui-nos o papel principal na pintura: a de participante. “A carta de amor” terá sido escrita por nós?

François Clouet, Carta de amor. 1570

François Clouet, Carta de amor. 1570

BASTA um PUM! - Manifesto

 

Bela Silva | Luis Barreira | António Poppe

Carta aberta de um anartchist

Um país pequeno, políticos pequenos, decisões pequenas.

Um convite aos mais doutos a abandonar o país.

Uma esperança esgotada.

Uma certeza adiada.

Um Natal festejado como se fosse o último.

Um funcionário cansado.

Um presente sem futuro…

Um Ano Novo adiado.

Um manifesto simoníaco de um futuro já perdido.

Uma obesidade política nutrida em festins secretos. Uma finança alicerçada na usura organizada.

Um país repleto de políticos medíocres que sofrem de apoplexia intelectual: a mediocridade.

A mediocridade propaga-se por toda a parte; manifesta-se concomitantemente desdenhando de tudo, perpetuando a incompetência. A mediocridade não inveja, vive obcecada com o desaire dos opositores. A mediocridade é ávida de sucesso aspirando somente alcançar a mediania. E qual é a sua maior ambição? - “Ser igual a si próprio”

Eis o grande engano da vulgaridade dos nossos dias que é um alerta para o nosso manifesto. Um medíocre não é um idiota! O idiota cultiva a caridade piedosa, o imediato, o fácil, o não fazer ondas, ir pelo mais ou menos desde que não seja incomodado. Os idiotas não têm passado, como poderemos antever o seu futuro? 
Um idiota paga impostos! PUM!...
É este o alento dos idiotas desiludidos!

BASTA!

BASTA!

BASTA um PUM!


Lisboa, no ano de mil novecentos e noventa e um, PUM!

Rafael, Escola de Atenas, 1506-10

A “Escola de Atenas”, cujo nome original Causarum Cognitio (Conhecer as Coisas) se manteve até ao século XVII, faz parte de um conjunto de quatro pinturas (frescos): “as quatro faculdades clássicas do espírito humano” – A Verdade, O Racional, O Bem e O Belo. Os frescos de Rafael, localizados na Sala da Assinatura outrora destinados à biblioteca privada do Papa Júlio II, assinalam de uma forma singular o pensamento neoplatónico renascentista.

1506-10_Rafael_Academia-neoplatonica.jpg

Numa das paredes o Bem está representado pelas Virtudes Teológicas da Lei e na parede contrária, por oposição, o Belo revelado por Apolo e as Musas no monte Parnaso. A Verdade teológica ilustrada pela "adoração ao Santíssimo Sacramento" ocupa a parede oposta à Escola de Atenas representando o pensamento Racional. Em suma, a Verdade é adquirida através da razão cujas personagens centrais, Platão aponta para o céu enquanto segura o seu livro “Timeo”, caminhando em diálogo com Aristóteles contendo a “Ética”, personificam os pensadores da Antiguidade Clássica e, simultaneamente, o tempo de Rafael. Todas as figuras estão dispostas em planos diferentes ganhando não só o destaque pretendido, como também reforçam a harmonia e o equilíbrio da composição pictórica. O desenho subjacente às formas, o realismo anatómico, põe a nu a perícia técnico-formal característica da pintura renascentista. O recurso ao claro-escuro das roupas reforça a tridimensionalidade das formas. Assim, Rafael sem recorrer à ilustração socorre-se de figuras alegóricas, técnica recorrente nos séculos XIV e XV, deambulando-se por um espaço arquitectónico, numa espécie de trompe l’oeil, onde destacamos um arco perfeito em toda a sua plenitude abrindo o espaço para uma perspectiva linear decorada com mais diversos elementos clássicos; desde as esculturas greco-romanas inseridas em nichos (Apolo à esquerda e Minerva à direita), a abóbada de berço, uma cúpula ao centro, terminando num arco de triunfo convocando o olhar para o infinito. Perante esta composição expansiva, o espectador é convocado a percorrer demoradamente todo o espaço onde se desenrola a acção. Toda esta atmosfera é explorada por Rafael submetendo o espaço pictórico às leis do plano permitindo que as personagens retratadas ganhem um estatuto especial segundo a iconografia apresentada. Além disso, Rafael fazendo a síntese entre a Verdade e o pensamento Racional, retrata as celebridades de modo a permitir observar a explicação: Pitágoras é representado de lado, deixando antever o diatessaron; reclinado nos degraus da escada, Diógenes sugere a leitura dos antigos filósofos gregos; à sua frente, Eráclito, o filósofo pessimista; à direita, Euclides ensina geometria enquanto Zaratustra segura o Globo Celestial e Ptolomeu o Globo Terrestre, junto a estes, quiçá, o próprio Rafael.

Por tudo isto, a “Escola de Atenas” é considerada uma obra icónica do renascimento.

 

1990 © Luís Carvalho Barreira

Cabaret Voltaire

Em 5 de Fevereiro de 1916 foi decretada a morte da arte, aqui. A arte de hoje não passa de "remakes" dos dadaístas...

Muitas das observações na arte actual podem ser facilmente remontadas a Dada. Deste modo, anti elitismo, anti autoritarismo, gratuitidade, anarquia e, por fim, niilismo estão claramente implicados na doutrina dadaísta da antiarte pela antiarte (a fórmula de Tristan Tzara). Assim como no respeitante ao objecto achado e à lata de sopa assinada, eles são obviamente uma continuação, dos famosos readymades de Marcel Duchamp e Man Ray. A ideia de acaso é também uma descoberta de Dada, e foi teorizada e aplicada não pelos dadaístas mas também pelos surrealistas nas suas doutrinas da escrita automática e do objecto surrealista.

Dada

Dada

 

Se se analisar os novos estilos, movimentos, da arte do século XX encontrar-se-á neles certas tendências sumamente conexas entre si tendendo para albergar no seu seio a memória do conceito romântico de “artista”, ainda hoje válido; ou da universalidade da forma como algo comum a todos os sujeitos potenciais, enquanto fruidores, com faculdades de julgar e, por inerência, a criação de um gosto construído; ou da niilificação da função de criador dando-lhe um sentido de heroicidade, de super-arte, como Nietzsche expressa em Ecce Homo, dizendo: «o acto decisivo de regresso da humanidade a si próprio, que em mim se faz carne e génio».

É neste espírito, cada vez mais consciente, de um nada mais profundo em todos sentidos que o Dadaísmo se manifesta delegando um conjunto de atitudes preconizadoras a todos os movimentos vindouros. O niilismo que os dadaístas preconizaram não tem paralelo. O fim da arte está expresso em todas as atitudes e é bem patente como se refere num dos seus manifestos. Segundo os dadaístas era «inadmissível que o homem deixe qualquer vestígio atrás de si». e «medindo pelo padrão da eternidade, toda a acção humana é fútil». O dadaísmo substitui, assim, o niilismo da cultura estética por um novo niilismo, que não só discute o valor da arte mas o valor de qualquer humanismo.

No primeiro manifesto Dada de 1918, escrito por Tristan Tzara e publicado nesse mesmo ano na revista Dada de Zurique, apregoavam na revista Der Dada nº2:

Hausmann-Der Dada-Heartfield-Grosz.jpg

«Dada não significa nada.

O que é Dada?

Uma arte?

Uma filosofia?

Uma política?

Um seguro de incêndio?

Ou: religião de estado?

Dada é realmente energia?

Ou não é absolutamente nada, isto é, tudo?».

Esta atitude irónica, sarcástica, perante a arte, desmitificando-a, tendo consciência da necessidade de a tornar acessível a um maior número de criadores. Os dadaístas, apesar de efémeros, serão os principais precursores, inspiradores, de todos os movimentos contemporâneos. Jamais a arte esteve perante uma tão grande pluralidade de modelos operativos, assim como, de agentes da criação. Em arte a criatividade descobre que a Ideia está destinada a fazer as vezes do saber de Ofício. O advento de uma nova Ideia de arte emergente da confluência do eros e do niilismo (nietzscheniano) contemporâneo que os dadaístas preconizaram até às últimas consequências fará com que os movimentos artísticos subsequentes aproveitem as suas fragmentações transformando-os em objectos de arte

Sem renunciar a ser objecto de reflexão, a pintura pós-dada recupera os direitos da subjectividade e proclama a legitimidade das obsessões individuais. Aquilo que poderá separar os dadaístas destes “movimentos” não é mais do que uma deslocação romântica no interior do logos artístico, ou seja, acharem-se ainda artistas.

Em suma, o corpo artístico nascido das doutrinas da cultura utópica, da morte de Deus, da assumpção do Super-homem, do Progresso, do Futurismo é seguramente uma arte singular. A Contemporaneidade niilista é a lenta agonia da arte que ditará a sua “coisificação”.

Ao conteúdo desta arte, digamos, destas coisas chamar-lhe-emos de corpo niilista.

Ouro sobre azul

Madonna della Catena di San Silvestro al QuirinaleSéculo XIII

Madonna della Catena di San Silvestro al Quirinale

Século XIII

Ouro sobre azul

No decurso do Concílio de Éfeso, ano 431, foi defendido o valor da imagem, a sua representação, destacando o valor simbólico da cor. Neste encontro ecuménico saíram vencedoras as teses de que a maternidade divina de Maria é doutrina na Igreja ao invés dos nestorianos que sustentavam a ideia de Maria ser só mãe do Cristo-homem, porque lhes parecia absurdo uma criatura ser mãe do criador. Assim, Maria saiu reforçada na hierarquia da igreja católica e foram dadas indicações precisas à maneira de representar a “Mãe de Deus”: "recebe um manto azul, um azul-escuro, maravilhoso e caro, condizente com a rainha do céu". Estas directrizes são bem claras, não importa a semiótica da cor ou a mera reacção psicologia que cor possa provocar, Maria deveria ostentar as mais nobres cores: as mais raras, as mais dispendiosas.

É sabido que o primeiro pigmento azul estável usado no mundo antigo veio do lápis-lazúli (Mesopotâmia), uma pedra semipreciosa que os egípcios transformaram em pó combinando com o dourado para adornar as urnas dos faraós. A escassez deste mineral fez com que os egípcios descobrissem novos azuis, o azul egípcio. Estes pigmentos bastante saturados variavam desde o tom azul safira até o azul-turquesa. A raridade deste pigmento aliada à dificuldade na sua obtenção só tinha comparação com outro material precioso, o ouro, no que diz respeito ao seu valor monetário. É vulgar ouvir-se dizer que a perfeição é “ouro sobre azul”.

Texto: 1998 © Luís Carvalho Barreira

Madonna amamenta o menino

À direita
S. Jerónimo. 
A preparação literária e a ampla erudição permitiram que Jerónimo fizesse a revisão e a tradução de muitos textos bíblicos. Assim, constitui a chamada "Vulgata", o texto oficial da Igreja latina, que foi reconhecido como tal pelo Concílio de Trento e que, depois da recente revisão, permanece o texto oficial da Igreja de língua latina.
São Jerónimo é conhecido não apenas pela tradução da Bíblia mas também por sua obra em defesa do Dogma da Virgindade Perpétua da Virgem Maria. 

À esquerda
Ecce Agnus Dei, ecce Qui tollit peccatum mundi (Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo): Expressão usada por S. João Batista.

Andrea del Brescianino (século XVI)Madonna amamenta o meninoMuseo d'Arte SacraSiena

Andrea del Brescianino (século XVI)

Madonna amamenta o menino

Museo d'Arte Sacra

Siena

Desenho, a mãe de todas as artes

Apresento-vos um desenho da “Virgem e do menino” feito por Miguel Ângelo. Tendo como base o Desenho, a mãe de todas as artes, Miguel Ângelo segue os cânones clássicos valorizando as etapas subsequentes desta disciplina: a Ideia, o esquisso, o modelo, o desenho do modelo e o claro/escuro

MICHELANGELO Buonarroti, desenho, 1522.

MICHELANGELO Buonarroti, desenho, 1522.

O primeiro registo da palavra Desenho com o sentido de projecto foi em 1548 na obra Diálogos em Roma do pintor e humanista português, Francisco de Holanda. ''O desenho, a que e outro nome se chamam debuxo, nele consiste e é a fonte e o corpo da pintura e da escultura e da arquitetura e de todo outro gênero de pintar e a raiz de todas as ciências.*" 


*(HOLANDA, Francisco de, "Diálogos em Roma", Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p.61) 

O que é Arte?

L.H.O.O.Q. mona lisa, com bigode, 1919

L.H.O.O.Q. mona lisa, com bigode, 1919

A Arte é…

(aceitemos a definição mais consensual de Dino de Formaggio: “a arte é tudo aquilo a que os homens chamam de arte”. Longe de definir o conceito de Arte, Dino de Formaggio remete-nos epistemologicamente para a validação da arte, e por consequência para a definição de arte, por parte dos “homens”: grupos, associações, corporações, estetas, comunidades ligados à fenomenologia artística. Uma espécie de “sumo pontífice” das artes donde emana o que é Arte. 

Sempre assim foi!?

A Arte de hoje é mais herdeira do academismo do século XVII e, sobretudo, do formalismo das Belas-Artes oriunda da nobreza do espírito enciclopedista, renascida na Revolução Francesa, do que dos métiers das artes aplicadas –oficinais- das Guildas e dos Mesteirais da Idade Média. Mesmo quando alguma arte contemporânea proclama a morte da ideia, na conformidade da destruição material, na niilização da tão idolatrada arte pela arte, não deixa, por isso, de poder-se contextualizar no momento constitutivo da relação entre a obra e a leitura dela efectuada. A obra continua indissociável ao aspecto formal. Se assim não fosse não podíamos discorrer sobre uma experiência estética obtida na observação dos objectos artísticos contemporâneos (casos há).

Todo o artista é um confidente do legado artístico da memória do homem e é sobretudo o porta-voz de vários “eus” falando a linguagem dos seus antecessores e algum tempo haverá antes que comece a falar o seu próprio discurso promovendo em cada abordagem um modo de possuir a obra. Todavia, será sempre susceptível de ser interpretada, percorrida por novos pontos de vista e do seu carácter ¾ethos. Este carácter multidireccional e criador, que por ser diverso, é passível de uma atitude em constante mutação fazem com que a obra de arte, ou o objecto artístico, não possa ser explicada (naquilo que a identifica com explicações causais), mas passível de ser interpretada segundo normas e valores que nos constitui. É certo que toda a obra de arte pode ser explicada pela teoria porque ela é fruto do pensamento, ou Ideia, mas não é menos verdade que muito daquela a que chamamos, hoje, obras de arte não foi feita com esse estatuto. Nem tudo, porventura, o que hoje chamamos de arte sê-lo-á amanhã. Descodificar os fenómenos artísticos é mergulhar nas antinomias que as enformam desde sempre. Não podemos descurar que será sempre uma abordagem perspéctica de um egocentrismo civilizacional e temporal do conceito “Obra de Arte”. Pelo que a nossa preocupação é de ser um simples intérprete, de uma visão pessoal por considerarmos que obra de arte só se torna válida quando for capaz de novas apreciações, de novas recriações, de novas experiências estéticas, que a identificam, autenticando-lhe um valor onde o homem possa simultaneamente existir, contemplar e criar, (sem deixar naturalmente de integrá-las na sua contextualização histórica). 

Neste sentido, Arte é a realidade de uma relação sujeito-objecto indizível, cujos elementos componentes são perfeitamente indetermináveis e inconcebíveis independentemente uns dos outros. Nós mudamos e as obras mudam connosco. A realidade, como nós próprios, está sujeita a um processo de movimento constante, de devir, que poderíamos chamar a este lugar misterioso ¾espaço, tempo e memórias de evolução e transformação, de fenómenos sempre novos que nunca poderão ser considerados acabados...).

A Arte é uma sublime inutilidade.

 

 

Luís Barreira

Corpo poiético

corpo poiético

Miguel Ângelo Nu masculino, 1504-1505 Teyler Museum

Miguel Ângelo
Nu masculino, 1504-1505
Teyler Museum

 

NIHIL EST IN INTELLECTU QUOD PRIUS NON FUERIT IN SENSU[1]

 

 

Partindo do pressuposto que o corpo foi fonte de representação, imaginação, crença, para inúmeros artistas, pensadores, poetas, filósofos, não esquecendo os teólogos, e que todos estes o abordaram segundo normas (sociais e religiosas) passíveis de fácil significação, então procuraremos ser intérpretes da visão (entre as várias visões possíveis) de um corpo poiético, constituindo, sem dúvida, para nós, um dos mais importantes paradigmas da Arte. O processo criativo: o corpo poiético.

Será, porventura, mais pacífico afirmar que a existência das actividades artísticas ao longo dos tempos parte da necessidade do Homem de comunicar: veiculando através da “arte” conhecimentos, legitimando poderes, venerando deuses, exorcizando medos, em suma, exaltando por consequência o corpo na sua dimensão de beleza; espiritual, contemplativo, ideológico, conceptual -logos[2]-finalidade ordenadora consubstanciada na Ideia -corpo ausente. E na beleza figurativa, alegórica, simbólica, representativa, criativa, sensual -eros[3]- fonte de desejo, encerrando em si toda a libido[4] que pode investir-se, quer no ego, quer num objecto exterior  -corpo presente.

O corpo distingue e classifica. Distingue, pela universalidade e intemporalidade do eros que é a nossa capacidade de sonho e fantasia; classifica, pelo logos que é o princípio ordenador característico da relação do homem com a existência.

Partindo deste pressuposto e se aceitarmos como certo que toda a obra de arte pode ser explicada pela teoria porque ela é fruto das relações entre duas linguagens distintas; o pensamento verbal -corpo ausente- e o pensamento plástico, representações dos sentidos e da imaginação -corpo presente- então, as obras de arte possuidoras desta reflexão cognoscível e imagética têm de ser reconsideradas em função de uma experiência estética[5] de que as próprias obras são portadoras insubstituíveis -O corpo poiético.

O logos tende para a Unicidade.

O eros tende para a Dispersão.

Nesta dicotomia - logos/eros - e porque nada se cria a partir do vazio referencial nem nada (nas artes plásticas) é arbitrário, residirá nestas forças aparentemente antagónicas o corpo poiético que ao longo dos tempos moverá todos aqueles que encontraram nas artes plásticas, o veículo de manifestações artísticas, políticas, ideológicas, religiosas etc..

Parece-nos que nesta dimensão logos/eros encerra em si toda a magnificência do pulsar da vida humana e por consequência a extensão do dever deontológico a que a própria arte se sente obrigada - O corpo como cânone da arte[6].

Inexoravelmente toda a obra de arte desenvolveu-se ao longo da história dentro desta dicotomia: entre a Ideia, “corpo ausente” -da areté[7]- como forma de regrar comportamentos de “justiça”; e o eros, “corpo presente” -da physis[8]«como relação do homem com uma ordem que é a íntima estrutura do Kosmos, do mundo, do qual o homem brota e se ergue[9]». Em suma, o acto de criar, representa essa energia, essa “musculatura” dispersiva, que se manifesta tornando visível a natureza humana e, indubitavelmente, estando o eros em estreita ligação à natureza humana ele aspira ao êxtase da exaltação amorosa, sempre que, pela sublimação do objecto do desejo, o corpo tende a imortalizar-se no erotismo manifestado na unidade superior da carne e ou do espírito.

Por consequência, a obra de arte é o corpo manifestado pelos sentidos.

Reiteramos esta afirmação mesmo para arte não-figurativa ou abstracta. Na verdade, aquilo que constitui a essência de alguma coisa -corpo- é formado por variações no plano da expressão que corresponde a efeitos de conteúdo. Estes efeitos são configurações discursivas relevantes, tanto na dimensão semântica como estética. Motivos a que poderíamos chamar de corpo de autor - individual (estilo) ou colectivo (movimento) - que os produziu dando à obra o reconhecimento cognitivo do próprio interventor como actor estetizante.

Se partirmos do pressuposto que toda a obra de arte é representada por um corpo (figurativo ou abstracto) e que este pode ser explicado por uma teoria porque é fruto do pensamento e que este pensamento encerra em si formulações imagéticas[10], então, estaremos perante duas linguagens que se complementam.

Esta relação entre a imagem e a palavra não é nova, ela foi objecto de maior equidade e insistência nos séculos XVI e XVII onde a Poesia não podia deixar de estar presente dando forma àut pictura poesis[11], que aconselhava os poetas a inspirarem-se nas pinturas, mostrando que a arte apenas atinge a sua plenitude guardando contacto com o visível. O poeta, que especula como o filósofo, pretende igualmente desenvolver a sua capacidade sensual de “pintar”, numa crescente preocupação de dar aos textos escritos um carácter pictórico, onde o discurso produz imagens a partir de representações plásticas.

 

«os sábios são pintores; pintura é poesia; pintura é história; e enfim toda a composição de homens cultos (qualunque componimenti de’dotti) é pintura.»Ludovico Dolce[12]

 

Francisco de Holanda, com uma consciência teórica agudizada pelas suas raízes intelectuais consolidadas em Itália e por profundas convicções pessoais, tratará extensivamente a «grande conformidade que têm as letras com a pintura[13]». É notório que a expressão «a pintura é poesia muda e a poesia pintura eloquente[14]» foi utilizada por diversos poetas, incluindo Camões, numa referência à noção de Simónides, «Mostrava sempre ter nos singulares / feitos dos homens que, em retrato breve, / a muda poesia ali descreve[15]».

Lope de Vega repete as analogias de Simónides particularizando-as:

 

«Marino, gran pintor de los oídos, y Rubens, gran poeta de los ojos».[16]

 

Os poemas constituíram, sem dúvida, a manifestação “artística” mais tangível da doutrina da ut pictura poesis em Portugal[17]. Contudo, como se sabe, sendo a Igreja o principal patrocinador da arte, via na Arte Poética de Horácio, que fundamentara o renascimento da teoria da equivalência entre a pintura e poesia, o campo propício ao desenvolvimento da Retórica onde se insta o orador a fazer a sua audiência ver, para além de ouvir. Mediante este postulado numerosos literatos e teólogos defendiam que a boa pintura, assim como a boa poesia, deviam ser a imitação ideal das acções humanas. Assim, a imagem ganha um valor pedagógico preponderante havendo quem defendesse que um texto visual -pintura- representa sobretudo a actualização da Ideia. Entre eles mencionamos Manuel Pires de Almeida que defendia que «a obra do pintor é a História, as partes do corpo são os membros, as partes dos membros são superfícies, porque destas se fazem os membros, dos membros os corpos, dos corpos a história, que é obra do pintor[18]».

A tentativa de justificação da superioridade de uma arte sobre a outra[19] (neste caso a Poesia) é a inaudita constatação da comunhão de unicidade existente entre elas.

 Esta procura da unicidade na universalidade das artes perdura, ainda hoje, no processo artístico, na demanda de anunciar o corpo poiético comum a todas artes. Mesmo quando alguma arte contemporânea proclama a morte da ideia, na conformidade da destruição material, na niilização da tão idolatrada arte pela arte, não deixa, por isso, de poder-se contextualizar no momento constitutivo da relação entre a obra e a leitura dela efectuada. Se assim não fosse não podíamos discorrer sobre uma experiência estética obtida na observação dos objectos artísticos contemporâneos (casos há).

Todo o artista é um confidente do legado artístico da memória do homem e é sobretudo o porta-voz de vários “eus” falando a linguagem dos seus antecessores e algum tempo haverá antes que comece a falar o seu próprio discurso promovendo em cada abordagem um modo de possuir a obra. Todavia, será sempre susceptível de ser interpretada, percorrida por novos pontos de vista - éthos[20]. Este carácter muldireccional e criador, que por ser diverso, é passível de uma atitude em constante mutação fazem com que a obra de arte, ou o objecto artístico, não possa ser explicada (naquilo que a identifica com explicações causais), mas passível de ser interpretada segundo normas e valores que nos constitui[21]. Pelo que a nossa preocupação é de ser um simples intérprete, de uma visão pessoal por considerarmos que obra de arte só se torna válida quando for capaz de novas apreciações, de novas recriações, de novas experiências estéticas, que a identificam, autenticando-lhe um valor onde o homem possa simultaneamente existir, contemplar e criar, (sem deixar naturalmente de integrá-las na sua contextualização histórica). Torna-se evidente que a Santa Maria Madalena de Francisco Venegas, por exemplo, (ver análise detalhada, página 42) ganha aos nossos olhos um carácter diferenciado, mesmo que façamos um esforço de distanciação e de contextualização histórica, da dos olhos de um crente do século XVI.

Neste sentido a realidade é uma relação sujeito-objecto indizível, cujos elementos componentes são perfeitamente indetermináveis e inconcebíveis independentemente uns dos outros. Nós mudamos e as obras mudam connosco. A realidade, como nós próprios, está sujeita a um processo de movimento constante, de devir, que poderíamos chamar a este lugar misterioso -espaço, tempo e memórias- de evolução e transformação, de fenómenos sempre novos que nunca poderão ser considerados acabados.

Neste sentido, sublinhamos, é nossa intenção fazer uma abordagem interpretativa e compreensiva das obras em análise (e não de uma explicação objectiva das mesmas) que será legitimada por um corpo poiético cuja exteriorização significa a tangibilidade, desse lugar enigmático, misterioso, fonte de toda a criação e de espanto que ao longo de toda a história se tem revelado em formas sensórias, em cor, em espaços e contornos plásticos. Este lugar capaz de ser aprisionado nas mais delicadas gradações dos vários matizes do sentido, capaz de interpretar as súbitas tonalidades da vida, capaz de reinventar os limites do próprio espaço é o corpo da arte.

Particularizando o nosso objecto de estudo, é no corpo figurativo -Nu- cuja representação ao longo dos diferentes tempos tem provocado sentimentos, sublimações, sensações, que a atenção dos homens foi capaz de despertar. O nu ganha em nós fruidores formas plásticas (psicológicas) tão díspares e tão fáceis de interpretar como: corpo piedoso, religioso, ascético, contemplativo, misterioso, sensual, erótico, lascivo, obsessivo, abstracto, enigmático, metafísico, transcendente, maravilhoso, (...) e é, sobretudo, através dele que as interpretações ao nível das ideias estéticas adquirem significado de: corpo mitológicocorpo místicocorpo moderno e corpo niilista.

Assimilados pelos principais poderes instituídos (temporal e espiritual) vigentes esta dicotomia "logos/eros" no âmago do corpo poiético será alvo das mais díspares interpretações artísticas permitindo-nos estabelecer uma correspondência para além dos grandes sistemas representativos do corpo; Antiguidade Clássica (corpo mitológico), Medieval (corpo místico), Modernidade[22] (corpo moderno), Contemporâneo (corpo niilista), diferenciações de práticas representativas e estilísticas, dando origem aos mais diversos Movimentos e Estilos.

Com efeito, o corpo mitológico corresponde ao politeísmo greco-romano da Antiguidade Clássica; o corpo místico corresponde ao simbolismo teológico de Deus cristão da Idade Média; O corpo moderno correspondente à tensão crescente de uma nova consciência de acção, criação e de redescoberta "renascer" do corpo clássico com o conceito teológico de corpo místico da Idade Média[23] que se desenvolverá desde o Renascimento até ao século XX; o corpo niilista corresponde à niilização, à coisificação, à dispersão do corpo, à criação volátil de novos signos e símbolos da arte dando origem à exacerbação do individualismo nas suas mais díspares manifestações.

Assim, o corpo solicita, desde logo, mesmo ao mais incauto, um rol de interrogações.

Como poderemos nós analisar, estas relações -corpo poiético- num ponto de vista artístico, entre a arte e a ideologia, entre a arte e o poder, entre a arte e os contextos políticos e sociais, ou seja, entre a produção artística e todos aqueles que de uma forma ou de outra fruem e usufruem daquilo a que vulgarmente chamamos de Arte?

...Certamente, que todas respostas teriam como denominador comum, o desejo do corpo e a inquietação dos sentidos sublimada na criação. O corpo fonte de desejo.

O corpo foi, é, e será, fonte de desejo. A Arte é uma sublime inutilidade.


1998 © Luís Carvalho Barreira

(texto extraído da Tese de Mestrado, O Corpo Poiético da Arte portuguesa, 2000)

 

 

[1] Expressão latina que significa: Nada está no intelecto que não tenha estado primeiro nos sentidos.

[2] O logos, espiritual, passa a designar, além de palavra ou discurso exterior, seja, conceito ou ideia, uma espécie de divindade, um princípio imanente de lei cósmica. Não é como um acto isolado, individual, mas como eco e expressão de um Logos universal que, deste modo, lhe garante objectividade e verdade. O logos aparece, no poema filosófico de Parménides, como discurso crítico e verídico sobre o ser, frequentemente associado ao verbo, em oposição ao discurso ilusório e vazio das representações dos sentidos e da imaginação. Este poder racional de julgar e decidir levará Platão a compará-lo à Ideia e à Razão.

[3] O eros significa, em Platão, quer o desejo sensual quer o impulso espiritual para o ser, como fogo espiritual, criativo, presidindo ao destino de todas as coisas mutáveis transformando-se em desejo ascensional. Actualmente, o Eros está associado a uma acepção sexual em que Freud valorizou o Eros na sua psicologia do inconsciente e na teoria da psicanálise, tomando-o como o conjunto das “pulsões de vida”, que se manifesta pela libido e, como esta, regido pelo princípio do prazer e, consequentemente, reprimido pela moral social. O pensamento freudiano, ao pretender valorizar o Eros, de certo modo dessacraliza a sua sublimação pelo “amor”, pela “caridade”, segundo valores da tradição judaica-cristã. A função libertadora do Eros foi reprimida ao longo dos tempos. Recuperada por Freud, Eros é a “pulsão de vida” e corpo que se tornaria objecto de posse, coisa para gozar, instrumento de prazer. inDicionário de Termos Filosóficos Gregos, FCG.

[4] Para Freud, Para Além do Princípio do Prazer, introduz o Eros «...a libido das nossas pulsões sexuais coincidiria com o Eros dos poetas, artistas e dos filósofos que mantém a coesão de tudo o que vive». Toda a energia do Eros passará a chamar-se libido.

[5] Esta distinção permite-nos destrinçar, por exemplo, entre a obra artesanal e a artística.

[6] O corpo enquanto representação aspira em última análise a um valor estético.

[7] Excelência, virtude. «O conceito areté nos diálogos socráticos de Platão dirigem-se no sentido de uma procura das definições das várias virtudes. Para Platão há um eidos ¾forma, aparência¾ da areté. Na República descreve as quatro “virtudes cardeais” desejáveis no estado ideal, uma explanação que tem como correlatos as classes dos homens no estado e as divisões da alma». in Dicionário de Termos Filosóficos Gregos, FCG.

[8] Natureza. A substância física da qual eram feitas as coisas. A noção de physis  foi, de facto, destruída, passando a iniciação do movimento para agentes exteriores, o Amor e Ódio que em Platão esta é a doutrina mais religiosamente perniciosa.

[9] Sophia de Mello Breyner Andressen, O Nu na Antiguidade Clássica, Caminho, Lisboa, 1992. p.13.

[10] Uma ideia pode exprimir-se tanto por signos verbais como visuais. Exemplo disso é a linguagem gestual.

[11] Os Poemas constituíram a manifestação mais tangível da doutrina da ut pictura poesis em Portugal. Como se sabe, a Arte Poética de Horácio fundamentara no renascimento a teoria da equivalência entre a pintura e poesia.

[12] Nuno Saldanha, Poéticas da Imagem, Caminho, Lisboa, 1995. p.39.

[13] Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga, Introdução e notas de Angel González Garcia, Lisboa, 1983. p.265.

[14] Expressão atribuída por Plutarco a Simónides. citado por: Luís de Moura Sobral, Pintura e Poesia na Época Barroca, Editorial Estampa, Lisboa, 1994. p.117.

[15] Luís Camões, Os Lusíadas, canto VII, est. 76.

[16] Nuno Saldanha, Poéticas da Imagem, Caminho, Lisboa, 1995. p.40.

[17] Cândido Lusitano, Arte Poética de Q. Horácio Flacco, Traduzida e Illustrada em Portuguez, Lisboa, Typ. Rollandiana, 1758. p.184.

[18] Manuel Pires de Almeida, Pintura e Poesia, fol. 64v.

[19] Erasmos e outros reformistas exaltam a superioridade da palavra sobre a imagem: «Acatas a imagem de vulto de Jesus Cristo esculpida numa pedra ou de cores pintadas numa tábua. Pois com muito maior acatamento e devoção se deve honrar e selar-se na alma a imagem da sua divindade que por artifício do Espírito Santo se nos representa nas letras do Sagrado Evangelho.» Citação de Nuno Saldanha, Poéticas da Imagem, Caminho, Lisboa, 1995. p.60.

[20] éthos: carácter.

[21] É certo que toda a obra de arte pode ser explicada pela teoria porque ela é fruto do pensamento, mas não é menos verdade que muito daquilo a que chamamos hoje obras de arte não foram feitas com esse estatuto. Nem tudo, porventura, o que hoje chamamos de arte sê-lo-á amanhã. Descodificar os fenómenos artísticos é mergulhar nas antinomias que as enformam desde sempre. Não podemos descurar que será sempre uma abordagem perspéctica de um egocentrismo civilizacional e temporal do conceito “Arte”.

[22] Adoptamos esta terminologia Modernidade cônscio do relativismo histórico que esta classificação sustenta. Durante aproximadamente os últimos cento e cinquenta anos, termos como ModernoModernidade, e mais recente Modernismo e Pós-Modernismo têm sido usados em contextos artísticos para veicular um sentido de oposição com o passado mais ou menos recente. A Modernidade aparece com a mudança cultural de uma venerável estética da permanência baseada numa crença de um ideal de beleza imutável e transcendente, para uma estética da transitoriedade e imanência, cujos valores centrais são a mudança e a novidade.

[23] Ver capítulo, Morte de Deus.

 

Iris da Sibéria

Uma menina siberiana, uma dimensão secreta habitada por sinais tão particulares que os sentidos quase não os conseguem captar. Viagens, por vezes, assombradas por imagens tão fulgurantes que a imaginação quase não as alcança reter. Um errante caminheiro que eternamente se perde em divagações e recordações. A referência ao desejo não implica, necessariamente, nas minhas viagens, a representação de personagens ou de situações carnais. Há uma dimensão do desejo que está antes, depois e para além das pessoas conhecidas que é solidão, memória e silêncio.

Nunca soube o nome dela. Aliás, durante a minha estada, em Irkutsk, jamais proferiu uma palavra… e durante muito tempo julguei ser muda, até ao momento em que o seu canto agudo irrompe o espaço sagrado numa pequena igreja situada num ermo siberiano. Creio, não, tenho a certeza, que aquela experiência melómana foi a mais marcante da minha vida. Reconhecendo o esplendor litúrgico que permanece (ainda) nas gélidas terras dos Gulags, de Dostoiévski e de Tolstói, assisti a toda liturgia de pé – por norma, não há bancos nas igrejas ortodoxas -, à solenidade do rito conquistando o coração dos fiéis. Encostado a uma imagem evangélica de Cristo (“a paixão do povo russo” segundo Dostoiévski) o diálogo polifónico vindo da interacção das vozes agudas femininas e do som grave do diácono era, sempre, elevada pela voz angélica que eu julgara muda: verdadeiramente sublime. Os cânticos ortodoxos e uma série de pinturas iconográficas extraídas de um todo corpo pictórico são aqueles que melhor representam a dimensão sólida e a memória profunda, talvez a instância fundadora, o ponto de ancoragem mais decisivo de toda a experiência vivida. E é por isso que não posso limitar ao mero reconhecimento das suas expressões secretas o desejo concupiscente.

Luís Barreira

Lago Baikal, Sibéria, 1996

Fotografia

Gelatin Silver print

arquivo: F_224_119, 1996

O clima na Sibéria é severo e quando o degelo aparece e a flora irrompe as marcas agrestes estão patentes a mais de um metro de profundidade, a ideia do gelo perpétuo. Recordo à medida que a memória se desvanece através do tempo e a história se depura, a figura formosa reflectida num poço pouco profundo. As águas cristalinas ao nível do solo não deixavam mentir a donzela espelhada. De cabelos soltos cruzados por um lenço descaído guarda viço e beleza de uma tenra idade. Um casaco de malha abotoado irregularmente aberto no espaço deixa antever um vestido de chita florido num antecipado corpo de mulher. Não muito longe, uma Datcha de madeira cuidadosamente esculpida, com as janelas coloridas de azul celeste, é tudo o que a memória enxerga, junto ao Lago Baikal. Fui tolhido naquele silêncio irrompido pelo gesto generoso daquela menina, quase mulher, oferecendo-me uma flor autóctone. Poucas flores se podem comparar com a graça e beleza deste gesto arrancado da taiga siberiana. A paz induzida pelo corpo ondulante finalizado por pétalas de cor azul-violeta era semelhante ao perfume doce libertado, só interrompido pela brisa macia vinda do lago. Mas que formosura suportada por um talo melancólico. Foram raros os momentos que me catapultaram para a lucidez desejada. A taciturna criatura de olhar tímido provocava em mim um arrepio inebriante. Além do mais, nenhuma planta é mais bela e confiável quando colocada na mão de um vagamundo. A Íris da Sibéria.

Lago Baikal, 1996