NIHIL EST IN INTELLECTU QUOD PRIUS NON FUERIT IN SENSU[1]
Partindo do pressuposto que o corpo foi fonte de representação, imaginação, crença, para inúmeros artistas, pensadores, poetas, filósofos, não esquecendo os teólogos, e que todos estes o abordaram segundo normas (sociais e religiosas) passíveis de fácil significação, então procuraremos ser intérpretes da visão (entre as várias visões possíveis) de um corpo poiético, constituindo, sem dúvida, para nós, um dos mais importantes paradigmas da Arte. O processo criativo: o corpo poiético.
Será, porventura, mais pacífico afirmar que a existência das actividades artísticas ao longo dos tempos parte da necessidade do Homem de comunicar: veiculando através da “arte” conhecimentos, legitimando poderes, venerando deuses, exorcizando medos, em suma, exaltando por consequência o corpo na sua dimensão de beleza; espiritual, contemplativo, ideológico, conceptual -logos[2]-finalidade ordenadora consubstanciada na Ideia -corpo ausente. E na beleza figurativa, alegórica, simbólica, representativa, criativa, sensual -eros[3]- fonte de desejo, encerrando em si toda a libido[4] que pode investir-se, quer no ego, quer num objecto exterior -corpo presente.
O corpo distingue e classifica. Distingue, pela universalidade e intemporalidade do eros que é a nossa capacidade de sonho e fantasia; classifica, pelo logos que é o princípio ordenador característico da relação do homem com a existência.
Partindo deste pressuposto e se aceitarmos como certo que toda a obra de arte pode ser explicada pela teoria porque ela é fruto das relações entre duas linguagens distintas; o pensamento verbal -corpo ausente- e o pensamento plástico, representações dos sentidos e da imaginação -corpo presente- então, as obras de arte possuidoras desta reflexão cognoscível e imagética têm de ser reconsideradas em função de uma experiência estética[5] de que as próprias obras são portadoras insubstituíveis -O corpo poiético.
O logos tende para a Unicidade.
O eros tende para a Dispersão.
Nesta dicotomia - logos/eros - e porque nada se cria a partir do vazio referencial nem nada (nas artes plásticas) é arbitrário, residirá nestas forças aparentemente antagónicas o corpo poiético que ao longo dos tempos moverá todos aqueles que encontraram nas artes plásticas, o veículo de manifestações artísticas, políticas, ideológicas, religiosas etc..
Parece-nos que nesta dimensão logos/eros encerra em si toda a magnificência do pulsar da vida humana e por consequência a extensão do dever deontológico a que a própria arte se sente obrigada - O corpo como cânone da arte[6].
Inexoravelmente toda a obra de arte desenvolveu-se ao longo da história dentro desta dicotomia: entre a Ideia, “corpo ausente” -da areté[7]- como forma de regrar comportamentos de “justiça”; e o eros, “corpo presente” -da physis[8]- «como relação do homem com uma ordem que é a íntima estrutura do Kosmos, do mundo, do qual o homem brota e se ergue[9]». Em suma, o acto de criar, representa essa energia, essa “musculatura” dispersiva, que se manifesta tornando visível a natureza humana e, indubitavelmente, estando o eros em estreita ligação à natureza humana ele aspira ao êxtase da exaltação amorosa, sempre que, pela sublimação do objecto do desejo, o corpo tende a imortalizar-se no erotismo manifestado na unidade superior da carne e ou do espírito.
Por consequência, a obra de arte é o corpo manifestado pelos sentidos.
Reiteramos esta afirmação mesmo para arte não-figurativa ou abstracta. Na verdade, aquilo que constitui a essência de alguma coisa -corpo- é formado por variações no plano da expressão que corresponde a efeitos de conteúdo. Estes efeitos são configurações discursivas relevantes, tanto na dimensão semântica como estética. Motivos a que poderíamos chamar de corpo de autor - individual (estilo) ou colectivo (movimento) - que os produziu dando à obra o reconhecimento cognitivo do próprio interventor como actor estetizante.
Se partirmos do pressuposto que toda a obra de arte é representada por um corpo (figurativo ou abstracto) e que este pode ser explicado por uma teoria porque é fruto do pensamento e que este pensamento encerra em si formulações imagéticas[10], então, estaremos perante duas linguagens que se complementam.
Esta relação entre a imagem e a palavra não é nova, ela foi objecto de maior equidade e insistência nos séculos XVI e XVII onde a Poesia não podia deixar de estar presente dando forma àut pictura poesis[11], que aconselhava os poetas a inspirarem-se nas pinturas, mostrando que a arte apenas atinge a sua plenitude guardando contacto com o visível. O poeta, que especula como o filósofo, pretende igualmente desenvolver a sua capacidade sensual de “pintar”, numa crescente preocupação de dar aos textos escritos um carácter pictórico, onde o discurso produz imagens a partir de representações plásticas.
«os sábios são pintores; pintura é poesia; pintura é história; e enfim toda a composição de homens cultos (qualunque componimenti de’dotti) é pintura.»Ludovico Dolce[12]
Francisco de Holanda, com uma consciência teórica agudizada pelas suas raízes intelectuais consolidadas em Itália e por profundas convicções pessoais, tratará extensivamente a «grande conformidade que têm as letras com a pintura[13]». É notório que a expressão «a pintura é poesia muda e a poesia pintura eloquente[14]» foi utilizada por diversos poetas, incluindo Camões, numa referência à noção de Simónides, «Mostrava sempre ter nos singulares / feitos dos homens que, em retrato breve, / a muda poesia ali descreve[15]».
Lope de Vega repete as analogias de Simónides particularizando-as:
«Marino, gran pintor de los oídos, y Rubens, gran poeta de los ojos».[16]
Os poemas constituíram, sem dúvida, a manifestação “artística” mais tangível da doutrina da ut pictura poesis em Portugal[17]. Contudo, como se sabe, sendo a Igreja o principal patrocinador da arte, via na Arte Poética de Horácio, que fundamentara o renascimento da teoria da equivalência entre a pintura e poesia, o campo propício ao desenvolvimento da Retórica onde se insta o orador a fazer a sua audiência ver, para além de ouvir. Mediante este postulado numerosos literatos e teólogos defendiam que a boa pintura, assim como a boa poesia, deviam ser a imitação ideal das acções humanas. Assim, a imagem ganha um valor pedagógico preponderante havendo quem defendesse que um texto visual -pintura- representa sobretudo a actualização da Ideia. Entre eles mencionamos Manuel Pires de Almeida que defendia que «a obra do pintor é a História, as partes do corpo são os membros, as partes dos membros são superfícies, porque destas se fazem os membros, dos membros os corpos, dos corpos a história, que é obra do pintor[18]».
A tentativa de justificação da superioridade de uma arte sobre a outra[19] (neste caso a Poesia) é a inaudita constatação da comunhão de unicidade existente entre elas.
Esta procura da unicidade na universalidade das artes perdura, ainda hoje, no processo artístico, na demanda de anunciar o corpo poiético comum a todas artes. Mesmo quando alguma arte contemporânea proclama a morte da ideia, na conformidade da destruição material, na niilização da tão idolatrada arte pela arte, não deixa, por isso, de poder-se contextualizar no momento constitutivo da relação entre a obra e a leitura dela efectuada. Se assim não fosse não podíamos discorrer sobre uma experiência estética obtida na observação dos objectos artísticos contemporâneos (casos há).
Todo o artista é um confidente do legado artístico da memória do homem e é sobretudo o porta-voz de vários “eus” falando a linguagem dos seus antecessores e algum tempo haverá antes que comece a falar o seu próprio discurso promovendo em cada abordagem um modo de possuir a obra. Todavia, será sempre susceptível de ser interpretada, percorrida por novos pontos de vista - éthos[20]. Este carácter muldireccional e criador, que por ser diverso, é passível de uma atitude em constante mutação fazem com que a obra de arte, ou o objecto artístico, não possa ser explicada (naquilo que a identifica com explicações causais), mas passível de ser interpretada segundo normas e valores que nos constitui[21]. Pelo que a nossa preocupação é de ser um simples intérprete, de uma visão pessoal por considerarmos que obra de arte só se torna válida quando for capaz de novas apreciações, de novas recriações, de novas experiências estéticas, que a identificam, autenticando-lhe um valor onde o homem possa simultaneamente existir, contemplar e criar, (sem deixar naturalmente de integrá-las na sua contextualização histórica). Torna-se evidente que a Santa Maria Madalena de Francisco Venegas, por exemplo, (ver análise detalhada, página 42) ganha aos nossos olhos um carácter diferenciado, mesmo que façamos um esforço de distanciação e de contextualização histórica, da dos olhos de um crente do século XVI.
Neste sentido a realidade é uma relação sujeito-objecto indizível, cujos elementos componentes são perfeitamente indetermináveis e inconcebíveis independentemente uns dos outros. Nós mudamos e as obras mudam connosco. A realidade, como nós próprios, está sujeita a um processo de movimento constante, de devir, que poderíamos chamar a este lugar misterioso -espaço, tempo e memórias- de evolução e transformação, de fenómenos sempre novos que nunca poderão ser considerados acabados.
Neste sentido, sublinhamos, é nossa intenção fazer uma abordagem interpretativa e compreensiva das obras em análise (e não de uma explicação objectiva das mesmas) que será legitimada por um corpo poiético cuja exteriorização significa a tangibilidade, desse lugar enigmático, misterioso, fonte de toda a criação e de espanto que ao longo de toda a história se tem revelado em formas sensórias, em cor, em espaços e contornos plásticos. Este lugar capaz de ser aprisionado nas mais delicadas gradações dos vários matizes do sentido, capaz de interpretar as súbitas tonalidades da vida, capaz de reinventar os limites do próprio espaço é o corpo da arte.
Particularizando o nosso objecto de estudo, é no corpo figurativo -Nu- cuja representação ao longo dos diferentes tempos tem provocado sentimentos, sublimações, sensações, que a atenção dos homens foi capaz de despertar. O nu ganha em nós fruidores formas plásticas (psicológicas) tão díspares e tão fáceis de interpretar como: corpo piedoso, religioso, ascético, contemplativo, misterioso, sensual, erótico, lascivo, obsessivo, abstracto, enigmático, metafísico, transcendente, maravilhoso, (...) e é, sobretudo, através dele que as interpretações ao nível das ideias estéticas adquirem significado de: corpo mitológico, corpo místico, corpo moderno e corpo niilista.
Assimilados pelos principais poderes instituídos (temporal e espiritual) vigentes esta dicotomia "logos/eros" no âmago do corpo poiético será alvo das mais díspares interpretações artísticas permitindo-nos estabelecer uma correspondência para além dos grandes sistemas representativos do corpo; Antiguidade Clássica (corpo mitológico), Medieval (corpo místico), Modernidade[22] (corpo moderno), Contemporâneo (corpo niilista), diferenciações de práticas representativas e estilísticas, dando origem aos mais diversos Movimentos e Estilos.
Com efeito, o corpo mitológico corresponde ao politeísmo greco-romano da Antiguidade Clássica; o corpo místico corresponde ao simbolismo teológico de Deus cristão da Idade Média; O corpo moderno correspondente à tensão crescente de uma nova consciência de acção, criação e de redescoberta "renascer" do corpo clássico com o conceito teológico de corpo místico da Idade Média[23] que se desenvolverá desde o Renascimento até ao século XX; o corpo niilista corresponde à niilização, à coisificação, à dispersão do corpo, à criação volátil de novos signos e símbolos da arte dando origem à exacerbação do individualismo nas suas mais díspares manifestações.
…
Assim, o corpo solicita, desde logo, mesmo ao mais incauto, um rol de interrogações.
Como poderemos nós analisar, estas relações -corpo poiético- num ponto de vista artístico, entre a arte e a ideologia, entre a arte e o poder, entre a arte e os contextos políticos e sociais, ou seja, entre a produção artística e todos aqueles que de uma forma ou de outra fruem e usufruem daquilo a que vulgarmente chamamos de Arte?
...Certamente, que todas respostas teriam como denominador comum, o desejo do corpo e a inquietação dos sentidos sublimada na criação. O corpo fonte de desejo.
O corpo foi, é, e será, fonte de desejo. A Arte é uma sublime inutilidade.