Este quadro (díptico) é um dos mais inquietantes e enigmáticos quadros da pintura europeia: a Virgem de Melun. Realizado em 1450 por Jean Fouquet esta pintura está actualmente no Real Museu de Belas Artes de Antuérpia (Bélgica) e faz parte de um díptico cujo quadro da esquerda se encontra em Berlim (Staatliche Museen). Este díptico de complexa leitura iconológica e plástica merecerá a nossa melhor atenção e análise. E algumas questões poder-se-ão fazer neste momento. Quem são as personagens ali representadas? Estamos presentes de um quadro religioso? Qual o valor iconográfico das imagens? E qual a razão para as diferenças estilísticas e formais verificadas nos dois quadros?
Contextualizemos social e politicamente a pintura no seu tempo: estamos na França no século XV. Há muito tempo que a luta pelo trono francês se disputava entre duas casas reais (a casa Angevina[1], inglesa, e a casa Valois, francesa). Desde 1337 até 1453 que ingleses e franceses se encontravam em conflitos e guerras constantes, envolvendo várias gerações e reinados: esta guerra ficou conhecida pela “Guerra dos Cem Anos”. Com a vitória de Henrique V, rei inglês, sobre Carlos VI, rei francês, deveria por termo às longas hostilidades culminadas com a assinatura do Tratado de Troyes (1420). Não foi assim. Do tratado saiu um reino dividido e uma clara humilhação à coroa francesa. Se pela força das armas Henrique V ocupou o norte de França, incluindo Paris, por força do casamento com a princesa Catarina de Valois, filha do rei francês Carlos VI, Henrique V ficou legitimado a herdar o trono francês. Do tratado saiu ainda a obrigação de Carlos VI deserdar do trono o seu filho, o Delfim, Carlos VII.
Em 1422 morreram os dois reis em contenda, Carlos VI de França e Henrique V de Inglaterra. Como o herdeiro ao trono de Inglaterra, Henrique VI, ainda era um recém-nascido a regência foi entregue ao Duque de Gloucester passando a administrar a Inglaterra, e o Duque de Badford ocupou-se dos destinos de França. Nesse mesmo ano (1422) Carlos VII, o Delfim, assumiu a realeza em Bourges e empreendeu uma longa luta pela restituição do poder. Assim, a França encontrava-se dividida em dois reinos: nos territórios do norte governava o rei inglês, apoiado pelos Borguinhões, e nos territórios do sul reinava o francês Carlos VII, com o apoio dos Armagnacs[2].
Com a França dividida em pequenos feudos e interesses particulares coube a Carlos VII reorganizar o estado, instigando os franceses contra os ingleses e seus aliados, apelando à ideia de unidade e de patriotismo. Deste apelo assistimos, então, no consulado do rei Carlos VII, ao aparecimento de duas figuras históricas femininas que mudaram, de certa maneira, o curso da história: Joana d’Arc (c. 1412 – 1431) e Agnès Sorel (1422-1450) desempenhando diferentes papéis. Joana d’Arc, pela temerária bravura, foi heroína, tomando partido dos Armagnacs na longa luta contra os Borguinhões e os seus aliados ingleses. Foi receada pelos seus opositores, após a vitória sobre os ingleses em Orleães, conduzindo Carlos VII à cidade de Reims, onde foi coroado rei da França em 17 de julho de 1429. Durante um ataque ao campo de Margny, numa tentativa de libertar Compiègne, Joana acabou por ser presa (23 de Maio de 1430) pelos Borguinhões. Acusada de heresia e assassinato foi condenada à fogueira em auto de fé, com apenas dezanove anos. Para os partidários de Carlos VII, saídos vencedores desta contenda, encontraram na Joana d’Arc a heroína, a mártir, e rapidamente reconhecida pelo poder político e religioso como Santa[3].
Agnès Sorel cedo se fez notar na corte francesa. De dama de honra de Isabel de Lorena (rainha consorte do reino de Nápoles) passou a aia oficiosa da rainha Maria de Anjou mulher de Carlos VII, o pequeno rei de Bourges, “sem beleza, pouco inteligente e sem fortuna”. A sua juventude e beleza não passaram desapercebidas ao rei francês que a escolheu como amante, preferida. Agnès Sorel foi uma sedutora. Com o seu magnetismo influenciou políticos; com a sua beleza moveu barreiras; e com a sua ousadia espantou a corte. Segundo o cronista e poeta Georges Chastellain (mencionado no livro, 100 Masterpieces in Detail[4]) “a amante do rei era a única a aparecer num torneio montada num garanhão, com reluzentes armaduras prateadas cravejadas de jóias. Na igreja manifestava grande angústia nos seus pecados, mas quando caía em si, ela mantinha a cabeça bem erguida exibindo longos vestidos (com enorme cauda) assim como ousados decotes alguma vez usados por outras princesas”. O Bispo — citamos a mesma fonte — manifestou o seu desagrado ao rei sobre as vestes de Sorel aludindo à quantidade de pano que a não deixava ver o caminho a percorrer e, ao invés, a falta de decoro dos solícitos decotes que expunham os seios e mamilos da sua amante temendo fazer “escola” noutras mulheres. Agnès Sorel, a mulher mais bela do seu tempo, não foi só mais uma amante do rei, mas também teve a capacidade de alterar comportamentos e de influenciar politicamente o destino do reino. A importância de Agnès Sorel na vida do rei Carlos VII fez-se notar em toda a corte e naqueles que a visitavam, tendo sido observada pelo Papa Pio II que registou nas suas memórias: “seja na mesa, na cama ou na câmara do conselho, ela estava sempre ao seu lado[5]”.
Agnès Sorel angariava facilmente amizades em todos sectores da burguesia francesa que viam nela uma oportunidade de ascensão social e de um possível negócio. Ela era também uma mulher hábil no aconselhamento de amigos introduzidos na corte que viam nela um meio de assegurar a benevolência real. O grande mercador internacional e banqueiro do rei, Jacques Cœur, que guardava tesouros no seu palácio de Bourges, foi um amigo muito chegado da “amante real”. O primeiro diamante lapidado conhecido foi oferecido pelo rei à “Dame de Beauté”. Em poucos meses “a mulher mais bela do mundo” obtinha não só a graça real como o domínio de vários feudos: Vernon, Issoudun, Roquecezière, Beauté-sur-Marne oferecendo-lhe ainda a posse de Loches.
A ascensão meteórica de Agnès Sorel foi interrompida aos 28 anos quando estava grávida do quarto filho. Durante a campanha de Jumières onde se encontrava o rei, Agnès Sorel deslocou-se até ao local — à vila de Le Mesnil-sous-Jumièges —, num dia invernoso, para poder estar mais próxima dele. Foi aqui que ela de repente ficou doente e acabou por morrer. Suspeitos de assassinato foram muitos: e desde logo se suspeitou de Jacques Cœur; incluindo o filho do rei, Louis XI, que não aprovava a relação amorosa do pai com a amante. Causas da morte: desconhecidas. Envenenamento por mercúrio são as causas mais prováveis[6]. No entanto, esta teoria conspirativa pode não ter sustentação porque naquela época o uso de mercúrio na cosmética ou na desinfestação de insectos ou vermes era usual.
Apesar de tudo, Agnès Sorel, além de devota, era crente na Virgem Maria. E pressentindo que a vida lhe escapava deixou todos os seus bens à Colegiada de Loches para que fossem rezadas missas na salvação da sua alma. As jóias foram deixadas à família e ao rei. E, acreditamos, que gostaria de ser relembrada como mãe que deu quatro filhos ao rei. Aceitamos que a própria vida de Agnès Sorel se encarregou de escrever o guião para o díptico a Jean Fouquet e que, provavelmente, terá sido a última vontade de Agnès Sorel de se imortalizar. Este quadro é, sobretudo, uma declaração de amor à maternidade, à mãe que deu à luz quatro filhos “Bastardos de França” que o rei Carlos VII haveria de legitimar. Coube a Étienne Chevalier, conselheiro da corte do rei Carlos VII, fiel testamentário, de encomendar a Jean Fouquet o Díptico para ser disposto na capela funerária de Agnès Sorel na catedral de Melun[7]. Fazendo-se representar no quadro como forma de lealdade e fidelidade ao rei e à amante do rei. Por vontade dela, do rei ou do fiel conselheiro, a “Virgem de Melun” não é mais do que uma metáfora do poder feminino e uma homenagem ao amor de mãe. Muitas perguntas ficarão sem resposta e o mistério da “Virgem de Melun” permanece.