Sandro Botticelli, Nascimento de Vénus, 1483.

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Galeria Uffizi, Florença

Será uma obra menor (Kitsch) ou uma obra inovadora para a época? Como se enquadra esta pintura de Botticelli no racionalismo artístico do Renascimento? 

Façamos uma breve abordagem a este quadro à luz das teorias neoplatónicas, de Marcilio Ficino, e da sua inegável influência na corte dos Médicis traduzida numa nova linguagem formal e plástica: o simbolismo renascentista. O Renascimento assente no humanismo fez com que as histórias mitológicas e o paganismo fossem interpretadas à luz de uma nova mensagem divina: o cristianismo. Ou seja, entre tensão da Ideia e de Verdade fundida no conceito de Beleza. O conceito de Belo funde-se com o bem moral por conseguinte “não é a Beleza das partes, mas a Beleza supra-sensível que se contempla”, porque a “Beleza divina difunde-se não só na criatura humana, mas também na natureza[1]”. Botticelli, segundo Umberto Eco[2], era espiritualmente próximo de Savonarola[3] para quem a Beleza era mais resplandecente quanto mais próxima de Deus. O Belo na nudez passou a ser associado a valores morais passíveis de novas interpretações fazendo com que o manto diáfano da moral vigente (cristã) pudesse apagar a lubricidade que algumas figuras pudessem vincular. Assim, o recurso à mitologia, à metáfora, ao simbolismo, serviu muitas das vezes para sublimar a paixão voluptuosa do artista e ou do encomendador[4]. É precisamente com este espírito analítico e crítico que a leitura de o “Nascimento de Vénus” deve ser lida; ela nasce do neoplatonismo ficiano. Dispensemo-nos de escalpelizar se este quadro, dentro das teses especulativas, quanto à identidade familiar das figuras representadas. Pouco importa se a Vénus brotou do ímpeto artístico, ou se teve como modelo a “Bella Simonetta” por quem o artista (e não só) nutria uma grande paixão. O que sabemos é que Simonetta Vespúcio serviu de musa inspiradora e que esta obra se destinava a deleite privado. E que a deusa do amor e da beleza é a figura mitológica que melhor a podia personificar escapando assim à “Fogueira das Vaidades[5]”. O recurso ao simbolismo é uma espécie de máscara fruto de um mero desejo sublimado no objecto de contemplação. Esta dualidade de leituras enquadrar-se dentro da linguagem plástica da época constituindo uma estética particular dentro Renascimento. 

Se no Renascimento a procura do realismo e do naturalismo, nomeadamente na pintura, pautava-se por uma pesquisa incessante vertida nos mais diversos Tratados, quer a nível formal, quer a nível técnico: a conquista do espaço cénico através da procura da perspectiva (linear e aérea); a introdução de uma geometria implícita procurando o equilíbrio formal; o uso e o domínio do claro-escuro (sfumato, cangiante, unione e chiaroscuro) dando ênfase à modelação mais realista das figuras; a evocação do Naturalismo com grande rigor e detalhe; e, sobretudo, o Nu (privilegiando o cânone clássico), com algum rigor anatómico; a obra em apreço parece fugir a todos estes cânones renascentistas.

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Regressemos à análise da pintura, Nascimento de Vénus de Botticelli. Este quadro foi a primeira tela de grandes dimensões realizado em Florença. Pintado a têmpera sobre tela e mede 172,5 cm de altura por 278,5 cm de largura. 

Tecnicamente a utilização de velaturas muito finas cria uma atmosfera ilusória e ao mesmo tempo fantasiosa. A sobreposição de pinceladas acompanhada do cruzamento de traços permitem uma correcta gradação de tonalidades: as cores da têmpera são brilhantes e translúcidas o que suspeitamos que o pigmento foi diluído num aglutinante (ovo), ou por um verniz resinoso. Ao utilizar velaturas muito finas deixa o fundo visível produzindo um efeito transparente, perceptível no céu, nos tons de pele e na concha. Botticelli inspirado, provavelmente, na Vénus de Médici (escultura), apresenta um desenho assente em traços de cariz acentuado, como, por exemplo, no nivelamento dos ombros descaídos que sustentam um longo pescoço. Os brilhos e os matizes alcançados dão-lhe uma aparência irreal, de aparência escultórica.  Não obstante, todos estes detalhes formais e estéticos, Vénus transporta as forças irreprimíveis do erotismo, não na sua nudez, mas sim nos longos cabelos que discretamente cobrem qualquer desejo apaixonado entre de dois amantes. Este apelo enamorado é reforçado pela presença de Clóris raptada por Zéfiro concupiscentemente entrelaçados. É o amor em forma física, é o desejo e o prazer dos sentidos. O vigoroso sopro de Zéfiro que empurra Vénus para terra firme não é suficiente para arrastar as flores sagradas que caem dispersas suavemente num fundo azul recortado por pequenas linhas brancas ritmadas sugerindo a espuma de ondas brandas. O carácter simbólico da enorme concha de vieira que sustenta o nascimento de Vénus[6] (já adulta), significa a fertilidade, o amor, a harmonia e a beleza ideal. 

O mar e o céu são recortados pela linha do horizonte bem delineada não criando uma ilusão de profundidade mas prontamente colmatado por um terreno sinuoso terminado na linha do horizonte (sugerindo timidamente profundidade: perspectiva). No lado oposto, uma das Graças (Tália – a que faz brotar flores), pairando em terra pouco firme, acolhe Vénus arremessando um manto de cetim vermelho decorado com flores vermelhas e brancas. Como símbolos do amor, lealdade e modéstia o chão está cheio de violetas e a ninfa transporta à volta do pescoço uma grinalda de murta. Num cenário de bosque sombrio cujas folhas e troncos das árvores parecem bordados a ouro ganham detalhado destaque por se tratarem de laranjeiras a florescer, correspondendo ao jardim sagrado das Hespérides.

A ênfase dado à iconografia acentuado pela história mitológica leva, sem dúvida, Botticelli a transformar o Nascimento de Vénus - história mitológica da Deusa mais sedutora e de maior beleza - filha do esperma de Urano (o Céu) derramado no mar, depois da castração de Urano pelo seu filho Cronos - numa obra alegórica, de um lirismo cenográfico, transformando Vénus numa espécie de ícone erótico. 

Todo o cenário é irreal, escandalosamente fantasioso.

 

 

1999 © Luís Carvalho Barreira

 


[1] Segundo Umberto Eco, in História da Beleza, Difel, 2004. Pág. 184

[2] Ibidem, pág. 188

[3] Fra Girolamo Savonarola foi um padre dominicano designado para trabalhar em Florença em 1490 graças, em grande parte, ao pedido de Lorenzo di Médicis - uma ironia, uma vez que Savonarola viria a tornar-se um dos maiores inimigos da família Médicis poucos anos depois e ajudaria a concretizar seu declínio em 1494. Savonarola fez campanha contra o que considerava ser os excessos artísticos e sociais da Itália renascentista, pregando com grande vigor contra qualquer tipo de luxo. in wikipedia

[4] Referenciada como encomendada por Lorenzo di Pierfrancesco de Médici para a Villa Medicea di Castello a muito probável que, segundo Germán Arciniegas, a obra tenha sido uma homenagem ao amor de Juliano de Médici (que morreu em 1478, na Conspiração dos Pazzi) por Simonetta Vespúcio. in Arciniegas, Germán. El mundo de la bella Simonetta.Planeta, Bogotá:1990 

Alguns historiadores sugerem que a Vénus pintada para Pierfrancesco, e mencionada por Giorgio Vasari, teria sido outra que não a obra exposta em Florença e estaria perdida até o momento. in Smith, Webster: On the Original Location of the Primavera.

[5] A “Fogueira das Vaidades” refere-se à fogueira de 7 de fevereiro de 1497, quando defensores do padre dominicano Girolamo Savonarola angariaram e publicamente queimaram milhares de objetos tais como cosméticos, obras de arte e livros em Florença.

O foco dessa destruição estava explicitamente em objetos que pudessem tentar uma pessoa a pecar, o que incluía itens de vaidade como espelhos, cosméticos, vestes finas, baralhos e até instrumentos musicais. Outros alvos incluíam livros tidos como imorais, tais como as obras de Boccaccio, e manuscritos de música secular, além de obras de arte como pinturas e esculturas. in wikipedia

[6] Segundo Cesare Ripa, «Vénus representa-se jovem, nua e bela, com uma coroa de rosas, levando na sua mão uma concha marinha. Representa-se nua, por despertar o apetite dos abraços lascivos; ou também porque quem anda em casas de prazeres venéreos, muitas vezes acaba desnudado e privado de todo bem, por quanto as riquezas são sempre devoradas por mulheres lascivas; debilitando-se por conseguinte o corpo, e manchando a alma com tanta indecorosidade, que nada de belo se poderá encontrar em tal acção». 

 


2018 © Luís Carvalho BarreiraFotografiareinterpretação da obra de Botticelli, Nascimento de Vénus.

2018 © Luís Carvalho Barreira

Fotografia

reinterpretação da obra de Botticelli, Nascimento de Vénus.

Agnès Sorel - Virgem de Melun

Etienne Chevalier e Santo Estêvão / Virgem de Melun

Etienne Chevalier e Santo Estêvão / Virgem de Melun

Este quadro (díptico) é um dos mais inquietantes e enigmáticos quadros da pintura europeia: a Virgem de Melun. Realizado em 1450 por Jean Fouquet esta pintura está actualmente no Real Museu de Belas Artes de Antuérpia (Bélgica) e faz parte de um díptico cujo quadro da esquerda se encontra em Berlim (Staatliche Museen). Este díptico de complexa leitura iconológica e plástica merecerá a nossa melhor atenção e análise. E algumas questões poder-se-ão fazer neste momento. Quem são as personagens ali representadas? Estamos presentes de um quadro religioso? Qual o valor iconográfico das imagens? E qual a razão para as diferenças estilísticas e formais verificadas nos dois quadros?

Contextualizemos social e politicamente a pintura no seu tempo: estamos na França no século XV. Há muito tempo que a luta pelo trono francês se disputava entre duas casas reais (a casa Angevina[1], inglesa, e a casa Valois, francesa). Desde 1337 até 1453 que ingleses e franceses se encontravam em conflitos e guerras constantes, envolvendo várias gerações e reinados: esta guerra ficou conhecida pela “Guerra dos Cem Anos”. Com a vitória de Henrique V, rei inglês, sobre Carlos VI, rei francês, deveria por termo às longas hostilidades culminadas com a assinatura do Tratado de Troyes (1420). Não foi assim. Do tratado saiu um reino dividido e uma clara humilhação à coroa francesa. Se pela força das armas Henrique V ocupou o norte de França, incluindo Paris, por força do casamento com a princesa Catarina de Valois, filha do rei francês Carlos VI, Henrique V ficou legitimado a herdar o trono francês. Do tratado saiu ainda a obrigação de Carlos VI deserdar do trono o seu filho, o Delfim, Carlos VII.

Em 1422 morreram os dois reis em contenda, Carlos VI de França e Henrique V de Inglaterra. Como o herdeiro ao trono de Inglaterra, Henrique VI, ainda era um recém-nascido a regência foi entregue ao Duque de Gloucester passando a administrar a Inglaterra, e o Duque de Badford ocupou-se dos destinos de França. Nesse mesmo ano (1422) Carlos VII, o Delfim, assumiu a realeza em Bourges e empreendeu uma longa luta pela restituição do poder. Assim, a França encontrava-se dividida em dois reinos: nos territórios do norte governava o rei inglês, apoiado pelos Borguinhões, e nos territórios do sul reinava o francês Carlos VII, com o apoio dos Armagnacs[2].

Com a França dividida em pequenos feudos e interesses particulares coube a Carlos VII reorganizar o estado, instigando os franceses contra os ingleses e seus aliados, apelando à ideia de unidade e de patriotismo. Deste apelo assistimos, então, no consulado do rei Carlos VII, ao aparecimento de duas figuras históricas femininas que mudaram, de certa maneira, o curso da história: Joana d’Arc  (c. 1412 – 1431) e Agnès Sorel (1422-1450) desempenhando diferentes papéis. Joana d’Arc, pela temerária bravura, foi heroína, tomando partido dos Armagnacs na longa luta contra os Borguinhões e os seus aliados ingleses. Foi receada pelos seus opositores, após a vitória sobre os ingleses em Orleães, conduzindo Carlos VII à cidade de Reims, onde foi coroado rei da França em 17 de julho de 1429. Durante um ataque ao campo de Margny, numa tentativa de libertar Compiègne, Joana acabou por ser presa  (23 de Maio de 1430) pelos Borguinhões. Acusada de heresia e assassinato foi condenada à fogueira em auto de fé, com apenas dezanove anos. Para os partidários de Carlos VII, saídos vencedores desta contenda, encontraram na Joana d’Arc a heroína, a mártir, e rapidamente reconhecida pelo poder político e religioso como Santa[3].

Agnès Sorel cedo se fez notar na corte francesa. De dama de honra de Isabel de Lorena (rainha consorte do reino de Nápoles) passou a aia oficiosa da rainha Maria de Anjou mulher de Carlos VII, o pequeno rei de Bourges, “sem beleza, pouco inteligente e sem fortuna”. A sua juventude e beleza não passaram desapercebidas ao rei francês que a escolheu como amante, preferida. Agnès Sorel foi uma sedutora. Com o seu magnetismo influenciou políticos; com a sua beleza moveu barreiras; e com a sua ousadia espantou a corte. Segundo o cronista e poeta Georges Chastellain (mencionado no livro, 100 Masterpieces in Detail[4]) “a amante do rei era a única a aparecer num torneio montada num garanhão, com reluzentes armaduras prateadas cravejadas de jóias. Na igreja manifestava grande angústia nos seus pecados, mas quando caía em si, ela mantinha a cabeça bem erguida exibindo longos vestidos (com enorme cauda) assim como ousados decotes alguma vez usados por outras princesas”. O Bispo — citamos a mesma fonte — manifestou o seu desagrado ao rei sobre as vestes de Sorel aludindo à quantidade de pano que a não deixava ver o caminho a percorrer e, ao invés, a falta de decoro dos solícitos decotes que expunham os seios e mamilos da sua amante temendo fazer “escola” noutras mulheres. Agnès Sorel, a mulher mais bela do seu tempo, não foi só mais uma amante do rei, mas também teve a capacidade de alterar comportamentos e de influenciar politicamente o destino do reino. A importância de Agnès Sorel na vida do rei Carlos VII fez-se notar em toda a corte e naqueles que a visitavam, tendo sido observada pelo Papa Pio II que registou nas suas memórias: “seja na mesa, na cama ou na câmara do conselho, ela estava sempre ao seu lado[5]”.

Agnès Sorel angariava facilmente amizades em todos sectores da burguesia francesa que viam nela uma oportunidade de ascensão social e de um possível negócio. Ela era também uma mulher hábil no aconselhamento de amigos introduzidos na corte que viam nela um meio de assegurar a benevolência real. O grande mercador internacional e banqueiro do rei, Jacques Cœur, que guardava tesouros no seu palácio de Bourges, foi um amigo muito chegado da “amante real”. O primeiro diamante lapidado conhecido foi oferecido pelo rei à “Dame de Beauté”. Em poucos meses “a mulher mais bela do mundo” obtinha não só a graça real como o domínio de vários feudos: Vernon, Issoudun, Roquecezière, Beauté-sur-Marne oferecendo-lhe ainda a posse de Loches.

A ascensão meteórica de Agnès Sorel foi interrompida aos 28 anos quando estava grávida do quarto filho. Durante a campanha de Jumières onde se encontrava o rei, Agnès Sorel deslocou-se até ao local — à vila de Le Mesnil-sous-Jumièges —, num dia invernoso, para poder estar mais próxima dele. Foi aqui que ela de repente ficou doente e acabou por morrer. Suspeitos de assassinato foram muitos: e desde logo se suspeitou de Jacques Cœur; incluindo o filho do rei, Louis XI, que não aprovava a relação amorosa do pai com a amante. Causas da morte: desconhecidas. Envenenamento por mercúrio são as causas mais prováveis[6]. No entanto, esta teoria conspirativa pode não ter sustentação porque naquela época o uso de mercúrio na cosmética ou na desinfestação de insectos ou vermes era usual.

Apesar de tudo, Agnès Sorel, além de devota, era crente na Virgem Maria. E pressentindo que a vida lhe escapava deixou todos os seus bens à Colegiada de Loches para que fossem rezadas missas na salvação da sua alma. As jóias foram deixadas à família e ao rei. E, acreditamos, que gostaria de ser relembrada como mãe que deu quatro filhos ao rei. Aceitamos que a própria vida de Agnès Sorel se encarregou de escrever o guião para o díptico a Jean Fouquet e que, provavelmente, terá sido a última vontade de Agnès Sorel de se imortalizar. Este quadro é, sobretudo, uma declaração de amor à maternidade, à mãe que deu à luz quatro filhos “Bastardos de França” que o rei Carlos VII haveria de legitimar. Coube a Étienne Chevalier, conselheiro da corte do rei Carlos VII, fiel testamentário, de encomendar a Jean Fouquet o Díptico para ser disposto na capela funerária de Agnès Sorel na catedral de Melun[7]. Fazendo-se representar no quadro como forma de lealdade e fidelidade ao rei e à amante do rei. Por vontade dela, do rei ou do fiel conselheiro, a “Virgem de Melun” não é mais do que uma metáfora do poder feminino e uma homenagem ao amor de mãe. Muitas perguntas ficarão sem resposta e o mistério da “Virgem de Melun” permanece.

Jean Fouquet, Virgem de Melun, 1450

Jean Fouquet, Virgem de Melun, 1450

A Virgem de Melun não é, seguramente, uma pintura religiosa[8]. Ela esconde a misteriosa história da mulher mais formosa de França[9]: La Belle Agnès Sorel cuja vida esteve envolta em amor, paixão, drama e morte.

O quadro com a “Virgem de Melun” apresenta-se do mesmo modo que as deidades femininas haviam sido representadas ao longo da História. O culto ao divino e à fertilidade assimilado pelas várias civilizações e que no cristianismo, em particular, deu lugar à virgem lactante, à mãe de Cristo, símbolo do amor materno. À semelhança das inúmeras representações de Maria amamentando Cristo, a “Virgem de Melun” pretende sublinhar o amor que está subjacente à maternidade. E é neste sentido que a devemos observar. O que as formas revelam, as sucessivas velaturas do tempo escondem a verdadeira identidade. Será esta a verdadeira Agnès Sorel, a amante do rei Charles VII, que morreu aos 28 anos logo após o nascimento do seu último filho – único rapaz?

Cremos que sim!

O modo irreal da figura central e como é tratada toda a composição faz-nos viajar para um mundo onde a beleza nos parece incorruptível contrastando com um cenário escuro, de querubins vermelhos e azuis, numa espécie de “tabernáculo com dez corti­nas internas de linho fino trançado e de fios de tecidos azul, roxo e vermelho, e nelas mande bordar querubins  (Êxodo 26:1). O tratamento formal e plástico não são uniformes em ambos os quadros: enquanto o primeiro, da esquerda, retratando Étienne Chevalier, cavaleiro conselheiro da corte do rei Carlos VII, com o seu patrono Santo Estêvão à sua ilharga, segue os princípios plásticos do renascimento italiano: como a introdução de elementos arquitectónicos no espaço cénico é orientada segundo as regras da perspectiva; o claro-escuro e a luz são tratados de uma forma homogénea em todo o quadro; as personagens são retratadas com carácter realista; registamos numa pilastra, dois planos distintos em perspectiva, onde está inscrito o nome de Étienne Chevalier (IER ESTIEN).

O segundo quadro (Virgem de Melun) é exaltado o valor iconográfico da imagem em detrimento do realismo. Valores verificáveis na pose “seráfica” da Madonna e na candura do menino; nas cores etéreas da pele contrastando com as berrantes cores dos querubins em plano de fundo; na acentuação do seio desnudado; na falta de estrutura anatómica deixando observador com dúvidas se a Madonna está sentada ou de pé, e o mesmo se aplica para o local onde o menino está apoiado (sentado no regaço? Na coxa da mãe?). A teatralidade assumida neste quadro assenta em valores irrealistas que nos remete para uma leitura do essencial. Agnès Sorel reina! Reina coroada à semelhança do padroeiro Santo Estêvão representada com a coroa de martírio da cristandade. Reina como “O Senhor reina! As nações tremem! O seu trono está sobre os querubins! Abala-se a terra!  (Salmos 99:1).

 

 

 

 

Texto © Luís Barreira, 2010-2018


 


[1] Angevinas (de Anjou) ou Plantagenetas são originários do Condado de Anjou, actualmente parte de França, e chegam ao poder em Inglaterra através do casamento de Godofredo V, Conde de Anjou, fundador da dinastia, com Matilde de Inglaterra, a herdeira de Henrique I. O primeiro rei Plantageneta foi Henrique II, filho de ambos. A dinastia Plantageneta é um ramo da dinastia de Anjou, à qual Godofredo pertencia.

[2] A facção dos Armagnacs, no século XV, constituía um dos dois partidos oponentes que travaram uma guerra civil, na França - paralelamente à Guerra dos Cem Anos. Os adversários dos Armagnacs eram os Borguinhões. Na origem, o conflito envolvia, de um lado, o Duque da BorgonhaJoão sem Medo e, do outro Luís, duque d'Orleães. Desde 1393, quando Charles VI enlouquecera, a França foi governada por um conselho de regência presidido pela rainha Isabel da Baviera.

A guerra civil dos Armagnacs e Borguinhões teve início a 23 de novembro de 1407, quando o Duque d'Orleães foi assassinado, por ordem de João sem Medo. O conflito debilitou enormemente a França, já em luta contra a Inglaterra, na Guerra dos Cem Anos. A guerra entre Armagnacs e Bourguignons só terminará quase trinta anos depois, com a assinatura do Tratado de Arras (1435). João sem Medo também será assassinado, em 1419, pelos Armagnacs. In Wikipedia

[3] Joana d’Arc, 25 anos após sua morte em 1456, foi reabilitada pelo Papa Calisto III, por considerar seu processo inválido, e canonizada em 1920, pelo papa Bento XV.

[4] Rose-Marie & Rainer Hagen, 100 Masterpieces in Detail, Taschen. Pag.100.

[5] Ibidem. Pag.100.

[6] Enquanto à causa da morte foi originalmente pensada ter sido de disenteria. Em 2005 cientista forense, francês, Philippe Charlier examinou os seus restos mortais e determinou que a causa da morte foi envenenamento por mercúrio, mas não ofereceu nenhuma opinião sobre se ela foi assassinada.

[7] René Connat, Histoire de Montreuil, Village d'hier ville d'aujourd'hui, ses seigneurs et leurs domaines, 3e partie, 2012. p. 3

[8] No reverse do quadro e atestado pelo notário em 1775 pode ler-se: “A Virgem Santa, com feições de Agnès Sorel, amante do Rei Carlos VII de França, falecida em 1450”

[9] Da corte do rei Charles VII (1403-1422-1461). [nascimento-reinado-morte]

Leonardo da Vinci

Leonardo da Vinci, A Virgem e o menino com St. Ana e S. João Baptista, 1499/1500Técnica: Carvão e giz sobre papelDimensões: 141.5 × 104.6Localização: National Gallery of London

Leonardo da Vinci, A Virgem e o menino com St. Ana e S. João Baptista, 1499/1500

Técnica: Carvão e giz sobre papel

Dimensões: 141.5 × 104.6

Localização: National Gallery of London

Em 2 de Maio de 1519 morreu Leonardo da Vinci.

Dia da mãe

"Mãe de Deus" ou "Virgem Maria"

Masolino da Panicale (1383-1447)Madonna dell'umiltà c. 1423

Masolino da Panicale (1383-1447)

Madonna dell'umiltà c. 1423

Há muito que o culto Mariano se institucionalizou entre os católicos. Para ser mais preciso desde o primeiro Concílio de Éfeso onde a “Mãe de Deus”, defendida pelos Nestorianos, passou a ser “Virgem Maria” retirando-lhe o lado humano -mortal. Porém, durante muitos anos (séculos) a Virgem Maria foi representada mais como mãe, e mãe de todos nós, do que de uma santidade se tratasse. O lado humano está presente na dádiva, no aconchego junto ao regaço, no carinho posto no olhar e na gentileza das mãos delicadas protegendo o menino – o filho. Despojada de qualquer bem terreno, Maria cobre a cabeça com um véu ocultando os longos cabelos afastando qualquer olhar concupiscente. Quando olhamos para a “Mãe de Deus” presenciamos as nossas mães…

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Em Roma, na catacumba de Priscila, encontra-se uma pintura quase apagada pelo tempo representando a Virgem Maria amamentando o Menino Jesus no colo. Nesta imagem do século II poderemos ver o profeta Balaão a apontar para uma estrela pintada mais no alto da cabeça da mulher. O menino nu apoiado nos braços da mãe poderá ser a primeira representação da Virgem Maria, conhecida.

Hoje, dia 8 de Dezembro, é marcado por duas celebrações cristãs de significados antagónicos: a evocação popular da Nossa Senhora da Concepção (Conceição) celebrando o arquétipo da maternidade, e a celebração da Nossa Senhora sem Mácula (Imaculada) dogma introduzido no século XII, embora rejeitado por São Tomás de Aquino entre outros teólogos, que foi sustentado e aceite em 1854 pelo Papa Bento XIV.

A Senhora sem mácula é a nossa mãe.

(*o dia da mãe foi durante muito tempo comemorado no dia 8 de dezembro. É tradição montar a árvore de Natal e enfeitar a casa no dia 8 de dezembro, dia de N. Sra. da Conceição)


Texto © Luís Barreira, 1997