Ovo da Páscoa

Ovo, 1985

fotografia de Luís Carvalho Barreira


Muitos dos actuais símbolos ligados à Páscoa não são mais do que resquícios culturais, aglutinações existentes em algumas festividades pagãs ao longo da história da humanidade. Com o aparecimento do cristianismo, muitos desses rituais pagãos da celebração da passagem do Inverno para a Primavera foram adaptados, fundindo-se com a celebração da ressurreição de Cristo: a Páscoa.

Mas, porque costumamos presentear os nossos amigos e familiares com ovos na Páscoa? O que é que eles representam?

Todas estas actividades (rituais, festas, jogos) com ovos têm o seu significado e uma razão de ser, quer pelo seu carácter simbólico, quer pelo seu sinal metafórico. Ao longo de toda a história da humanidade, o Ovo foi sempre reconhecido como símbolo do renascimento, da esperança, da causa primeira, do gérmen, da origem e do princípio. Em suma, o Ovo confina em si o mistério da vida.

No século XVI, Cesare Ripa, no seu tratado de iconologia, descreve a “Fecundidade” (ver imagem) como uma “mulher coroada com folhas de zimbro que com as mãos aperta contra os seus seios um ninho de pintassilgos com os seus filhotes. Segundo Plínio, lib. X, cap. LXIII, o pintassilgo é um dos mais pequenos mas dos mais profícuos animais, pondo de cada vez doze ovos.

A seus pés, uma galinha com os pintos recém-nascidos, saindo de cada ovo. Do outro lado, uma lebre rodeada pelas crias.

O zimbro é a planta que possui sementes capazes de alimentar os animais. Os pintassilgos representam as crias, os filhos; as galinhas, os ovos e os coelhos anunciam a fertilidade, que é a maior bênção que uma mulher pode ter no casamento”. Toda esta imagem iconográfica (Mulher coroada com zimbro, acompanhada de Ovos, Pintassilgos, Coelhos, Galinhas) evidencia a aspiração ancestral do ser humano: o anseio de abastança, o desejo de fertilidade e de fecundidade.

Ancestralmente, certos povos pré-históricos efectuavam diversos rituais, por altura do equinócio da primavera, tendo como propósito nas suas preces o desejo de um ano novo, do renovar da esperança e sobretudo do desejo de abundância e fertilidade. Alguns destes costumes pagãos, apesar de aculturados, chegaram até nós com os mesmos propósitos de então. No Alentejo existe um ritual, em S. Pedro do Corval, onde as mulheres atiravam, e ainda atiram, calhaus rolados (supostamente ovos) para o topo de um aflorado rochoso, denominado “Rocha dos Namorados”, de configuração erecta, saído da terra procurando assim a fertilidade e a fecundidade desejadas. Segundo a tradição, ainda presente, as raparigas solteiras vão à “rocha dos namorados”, na segunda-feira de Páscoa, lançar uma pedra para cima do menhir procurando resposta sobrenatural em matéria do seu enlace: cada lançamento falhado representa mais um ano de espera do seu casamento.

Numa leitura mais atenta aos monumentos megalíticos circundantes, encontramos o Alinhamento ou Cromeleque dos Almendres (estas construções, únicas na Europa ocidental, estendem-se desde Inglaterra até Portugal), um recinto alongado, com cerca de uma centena de menhires, na sua maioria de forma ovoide, que constituiu, por certo, além de uma construção de carácter multifuncional capaz de organizar e estruturar a sociedade envolvente, uma estrutura de carácter religioso envolvendo, supostamente, rituais propiciatórios de fecundidade. Um dos menhires, situado na extremidade norte, exibe três imagens solares radiadas. Tal iconografia corresponde, provavelmente, ao momento final do Neolítico, quando na região se fizeram sentir as primeiras influências culturais das primeiras comunidades da idade dos metais, portadoras de uma nova estrutura religiosa. Esta religiosidade centrada numa divindade feminina, idealizada com grandes olhos solares, assumira-se como a grande deusa local, “ibérica”. Certamente que estas manifestações na Europa ocidental, feitas através de cerimónias de carácter sexual, com libações e outras ofertas corporais, não são alheias a um dos mais importantes rituais em honra de Ishtar, deusa da fertilidade, deusa dos arcádios. Esta divindade, Ishtar, não é mais do que a representação da deusa Inanna, herança dos seus antecessores povos sumérios; cognata da deusa Asterote dos filisteus; da deusa Isis dos egípcios; e da deusa Astarte dos Gregos. Mais tarde esta deusa, Ishtar, foi assumida também na mitologia Nórdica como Easter (Páscoa em Inglês), a deusa da fertilidade e da primavera.

Luís Barreira

Ishtar

British Museum, 2014

Fotografia

arquivo: 08_8477, 2014

No equinócio da primavera, os participantes em honra da deusa da fertilidade Easter pintavam e decoravam ovos escondendo-os em tocas nos campos, na sequência de anteriores práticas já exercitadas pelos Persas, Romanos, Judeus e Arménios.

Mais recentemente, os cristãos na Rússia czarista e a igreja ortodoxa, durante a celebração da Páscoa, tinham e ainda têm como costume, ao beijarem-se, dizer: "Cristo ressuscitou"… e ao mesmo tempo que recebem um presente, proclamavam: "Verdadeiramente, Cristo ressuscitou"…  Assim, quando o Czar Alexandre III encomendou, em 1885, ao célebre artista e ourives Peter Carl Fabergé uma obra de arte para presentear a imperatriz Maria Feodorovna na Páscoa, este criou uma série de ovos encaixáveis contendo no seu interior uma surpresa em ouro, prata e pedras preciosas sublimou artisticamente práticas culturais ancestrais.

Peter Carl Fabergé

Peter Carl Fabergé

Podemos encontrar outros ovos, embora mais modestos, mas também cheios de significado nos povos europeus de origem anglo-saxónica que os pintam escondendo-os nos jardins ou nas casas para que as crianças os possam encontrar. Na Inglaterra os jovens desenvolvem, durante a comemoração da Páscoa, uma actividade curiosa que consiste em fazer rolar os ovos por um plano inclinado até que um deles subsista intacto – o “egg rolling”. Prática semelhante pode ser encontrada na Ucrânia chamada de “KrepaK”, em que grupos de crianças visitam as casas pedindo ovos e depois num jogo/ritual os entrechocam, considerando-se vencedor o ovo cuja casca não se tenha quebrado.

E se o Ovo contém em si o mistério da vida celebremos a entrada da primavera e/ou a ressurreição de Cristo com alegria, com abundância, com fertilidade, com esperança na concretização dos nossos desejos e num futuro melhor.

 

Texto © Luís Barreira, 1991

Pietro Lorenzetti, Lamentação de Cristo (detalhe), 1310-1329FrescoBasilica de Assis, Itáliacréditos: wikipédia

Pietro Lorenzetti, Lamentação de Cristo (detalhe), 1310-1329

Fresco

Basilica de Assis, Itália

créditos: wikipédia

"Villa de Chaves"

Planta da cidade de Chaves, séc. XVIIIDurante a Guerra da restauração (1640-1668) foram feitas alterações às defesas da cidade de Chaves. Para dar resposta no contexto militar à moderna artilharia foram construídas, sob a direcção do Governador Mili…

Planta da cidade de Chaves, séc. XVIII

Durante a Guerra da restauração (1640-1668) foram feitas alterações às defesas da cidade de Chaves. Para dar resposta no contexto militar à moderna artilharia foram construídas, sob a direcção do Governador Militar, D. Rodrigo de Castro, Conde de Mesquitela, as muralhas da Villa, mais baixas, com um traçado abaluartado. Erguido o revelim da Madalena e o Forte de S. Francisco foram as etapas seguintes. A planta que se encontra na Torre do Tombo, em Lisboa, ilustra a particularidade da toponímia da cidade de Chaves durante o final do século XVIII, onde podemos identificar facilmente a ponte romana que dá acesso principal ao burgo no tempo do Marquês de Pombal.

No contexto da Guerra Peninsular (1808-1814) estas defesas voltariam a ser reforçadas dando-lhe a importância militar dentro do contexto nacional. Estas muralhas foram lentamente absorvidas pelo progresso urbano contributo dado pela pacificação entre os dois povos (português e espanhol).

texto: 2017 © Luís Carvalho Barreira

Roda da Fortuna

Roda da Fortuna (pintura francesa, 1503 - Bibliotheque Nationale)

Roda da Fortuna (pintura francesa, 1503 - Bibliotheque Nationale)


A Fortuna é cega (vendada) mas na roda da sorte só a nobreza está em jogo...


BOM ANO

Walking Distance

O Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (Maat) acolhe uma exposição de trabalhos de Rui Calçada Bastos, com curadoria de João Pinharanda. Não se trata de uma exposição fotográfica nem o autor se intitula fotógrafo. É um percurso plástico sobre a relação do olhar (o seu) e o percurso vivenciado pelo registo fotográfico.

Simplesmente Brilhante…

photo by Luís BarreiraWalking Distance, Maat, 2016Rui Calçada BastosExposição

photo by Luís Barreira

Walking Distance, Maat, 2016

Rui Calçada Bastos

Exposição

Trabalhos de Rui Calçada Bastos, Maat, 2016

Trabalhos de Rui Calçada Bastos, Maat, 2016

Quentin Matsys, O Usurário e sua Esposa, 1514

Quentin Matsys (Leuven, 1466 — Antuérpia, 1530)O Usurário e sua Esposa, 1514Pintor Flamengo

Quentin Matsys (Leuven, 1466 — Antuérpia, 1530)

O Usurário e sua Esposa, 1514

Pintor Flamengo

Um dos grandes pintores do fim do século XV início do século XVI que se caracterizava por um grande sentimento religioso misturado de um realismo crítico patenteado nas formas grotescas apresentadas. Muitas das suas obras enfatizam a caricatura como forma de crítica exposta na expressão melancólica das figuras, nos gestos brutais dos carrascos ou na actividade usurária dos banqueiros.

O usurário e a sua mulher” não representa somente a actividade económica de um prestamista, ele é também uma sátira religiosa, pondo em confronto os mandamentos da Lei de Deus, que condenava a usura, representada neste quadro pela Bíblia que a esposa atentamente folheia, e a bondade do trabalho do marido. As muitas obras de Quentin Matsys retratando as respeitáveis actividades de cambistas, ourives e banqueiros, eram acompanhadas de um sentido crítico que podemos adivinhar num dos seus retratos mais famosos: A Duquesa Grotesca, quiçá, o quadro mais conhecido do pintor. A improbabilidade deste retrato não ser verdadeiro, ou melhor, corresponder à beleza retratada, é-nos sugerida pelo lado grotesco da pessoa representada que alguns historiadores atribuem a uma caricatura de Margareth, Condessa do Tirol.

Será?...

Quentin MatsysDuquesa grotesca (A Grotesque old woman), 1513óleo em carvalho (64.2 × 45.4 cm)National Gallery

Quentin Matsys

Duquesa grotesca (A Grotesque old woman), 1513

óleo em carvalho (64.2 × 45.4 cm)

National Gallery

Ode

as árvores da minha aldeia já não morrem de pé…

morrem nas manhãs frias de nevoeiro

morrem numa paleta polícroma já perdida

morrem num tempo esculpido por uma soturna melancolia

morrem no ocaso da memória continuamente vivenciada

morrem na toponímia de um corpo consumido

morrem

morrem as minhas raízes silenciadas dentro de mim

ó homens da minha terra, que mal fiz às árvores da minha aldeia?...

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A serpente da Pena

«Ó homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo.»

Inscrição no oráculo de Delfos, atribuída aos Sete Sábios (c. 650a.C.-550 a.C.)

Virgil SolisApolo matando Píton, gravura de 1581, para a Metamorfoses, de Ovídio, livro I.créditos: wikipedia

Virgil Solis

Apolo matando Píton, gravura de 1581, para a Metamorfoses, de Ovídio, livro I.

créditos: wikipedia

No sopé do Monte Parnaso, em Delfos, brotam várias nascentes e uma das mais conhecidas é a Fonte Castália – em honra de uma das náiades (ninfas de água doce) – rodeada por um bosque de loureiros em honra de Apolo. A lenda e a mitologia versada na Metamorfoses de Ovídio diz que junto a esta fonte se reunião algumas divindades, musas, náiades que ao som da lira de Apolo cantavam incessantemente ao ritmo do jorro da “água falante”. Consta que das entranhas desta fonte emanavam vapores alucinogénios provocando ao oráculo de Delfos visões que lhe permitiam profetizar o futuro. Às sacerdotisas passaram a chamar-se pitonisas após Apolo ter desferido mortalmente a serpente gigantesca guardiã do oráculo de Témis (Deusa da justiça) Píton (Pytho). A Fonte Castália converteu-se em oráculo de Apolo. Terá sido a lenda mitológica a fonte de inspiração para a gruta da serpenta da Pena?

As imagens românticas da serra de Sintra estão todas impregnadas de poesia. Não há recanto, árvore, planta, caminho, gruta que não tenha saído da fantasia onírica do seu criador, mas não só. Já muito se falou do revivalismo do Palácio da Pena, das suas origens, dos elementos arquitetónicos que o definem como um palácio romântico; da flora trazida dos quatro cantos do mundo conferindo a este parque um exotismo luxuriante; dos caminhos enviesados que, ao sabor da orografia, vão deixando a descoberto novas figuras de espanto; dos calhaus rolados; da fauna que encontra/ou aqui o seu lugar de eleição… da paixão de D. Fernando II pela cantora de ópera Elise Hensler(mais tarde Condessa d´Edla e sua segunda esposa) que metaforicamente está aqui representado pelo Palácio da Pena e pelo Chalet da Condessa.

Serpente da PenaPalácio da Pena (Parque)foto: Luís Barreira

Serpente da Pena

Palácio da Pena (Parque)

foto: Luís Barreira

Contudo, há o lado clássico fruto do movimento neoclassicista do final do século XVIII e, sobretudo, do movimento literário da Arcádia que está bem presente no programa do idílico lugar que a serra Sintra esconde. Lugar onde reina a felicidade, a simplicidade, a paz e em perfeita comunhão com a natureza, como na lenda do “nobre selvagem”. O movimento neoclássico não terá sido alheio a D. Fernando II, pessoa culta e erudita. Assim, numa nascente de água que brota das entranhas da serra de Sintra uma serpente à semelhança da Píton de Apolo incumbida de defender o oráculo de Témis se esconde numa gruta. A serpente da Pena está lá. Será o oráculo de D. Fernando II?

 

texto: 2016 © Luís Carvalho Barreira

Bosco Sodi

Foto: Luís Barreira

Bosco Sodi, Sem título, 2016"Trabalhei a estrutura com cubos de madeira, pois o uso destes materiais permite que as variações de textura e cor proporcionem o espaço. Assim, a imaginação participa."Exposição Point of View no Palácio da Pena, sintra

Bosco Sodi, Sem título, 2016

"Trabalhei a estrutura com cubos de madeira, pois o uso destes materiais permite que as variações de textura e cor proporcionem o espaço. Assim, a imaginação participa."

Exposição Point of View no Palácio da Pena, sintra

"Caridade romana"

Peter Paul Rubens, Pero e Cimon, 1630.Óleo s/tela, 155x190 cmRijksmuseum, Amsterdão

Peter Paul Rubens, Pero e Cimon, 1630.

Óleo s/tela, 155x190 cm

Rijksmuseum, Amsterdão

Apresentei esta imagem aos meus alunos, como forma de provocação, pedindo-lhes que analisassem esta pintura, isto é, a sua interpretação iconográfica subjacente; em primeiro lugar a mensagem (tema), depois o autor, a época e a sua envolvência sociocultural. Alertei-os que olhar não é ver. E nem tudo o que parece é. Mas o Carlos, o mais afoito, sem tento na língua expressou o nível mais básico de entendimento: “mamar na chucha”!

Deu-me a “deixa” pretendida para que pudesse explanar a história exemplar de uma filha (Pero) que secretamente amamenta o pai (Cimon) depois que ele ser preso e condenado à morte por inanição. O antigo historiador romano Valerius Maximus regista este acontecimento como um grande acto de piedade filial e honra romana em De FACTIS Dictisque Memorabilibus, Libri IX: conhecida por Caridade romana. Entre os romanos o tema não era desconhecido, já os etruscos cultivavam o mito de Juno a amamentar o adulto Hércules sublinhando o valor altruístico.

Regressados ao quadro (pintura) de Peter Paul Rubens, retirada toda a carga erótica atribuída pelo aluno, foi mais fácil descodificar toda a acção: Pero é descoberta pelos guardas (no canto superior direito) a amamentar Cimon (pai) agrilhoado no cárcere. O amor deste acto impressiona a justiça ordenando a sua libertação.

Foz d'égua - Piódão

Os recantos da Serra do Açor deixam a descoberto algumas maravilhas naturais. A Foz D’Égua a pouco mais de 4 km do Piódão é um bom exemplo: um local de encontro da ribeira do Piódão com a ribeira de Chãs d’Égua, que percorrem em direcção ao rio Alvôco, tornando este local num espaço de rara beleza natural.

Nota do viajante: se o cenário natural é magnífico o mesmo não se pode dizer da falta de gosto do proprietário da casa e da encosta anexa que transformou este anfiteatro numa espécie de parque de diversões onde o Kitsch prevalece. Mesmo assim, vale a pena visitar.

Luís BarreiraFoz D´Égua, Piódão, 2016série:Fotografiaarquivo: 04_25_NK1_2644, 2016coordenadas: 40.247197 -7.812672

Luís Barreira

Foz D´Égua, Piódão, 2016

série:

Fotografia

arquivo: 04_25_NK1_2644, 2016

coordenadas: 40.247197 -7.812672

Planta de Lisboa (1785)

Lisboa

Após 30 anos do grande terramoto de 1755, Lisboa resumia-se praticamente a oriente aos bairros de Alfama e Mouraria e a ocidente ao Bairro Alto (agora com um urbanismo iluminista, de ruas ortogonais, à semelhança da Baixa pombalina) conforme podemos ver na figura em baixo.

Planta de Lisboa (1785)MURPHY, James, 1760-1814Travels in Portugal; through the Provinces of Entre Douro e Minho, Beira, Estremadura, and Alem-Tejo, in the years 1789 and 1790 (pag. 175)BNPEND. WWW: http://purl.pt/17093 

Planta de Lisboa (1785)

MURPHY, James, 1760-1814

Travels in Portugal; through the Provinces of Entre Douro e Minho, Beira, Estremadura, and Alem-Tejo, in the years 1789 and 1790 (pag. 175)

BNP

END. WWW: http://purl.pt/17093

 

Centro Arte Moderna

Manifesto

Toda a arte deverá estar sepultada no CAM. A nossa será (foi) a primeira.

(nas fundações do CAM enterramos o nosso manifesto artístico, documentos libertadores da arte do século XX.)

Lisboa, 1981

LCB

MPPCM

Luís BarreiraCentro de Arte Moderna (construção), 1981FotografiaGelatin-Silver Print

Luís Barreira

Centro de Arte Moderna (construção), 1981

Fotografia

Gelatin-Silver Print

Rocha dos Namorados

Equinócio da Primavera

No século XVI, Cesare Ripa, no seu tratado de iconologia, descreve a “Fecundidade” (ver imagem) como uma “mulher coroada com folhas de zimbro que com as mãos aperta contra os seus seios um ninho de pintassilgos com os seus filhotes (pássaro que alguns confundem com o pardal). Segundo Plínio, lib. X, cap. LXIII, o pintassilgo é um dos mais pequenos mas dos mais profícuos animais, pondo de cada vez doze ovos.

A seus pés, uma galinha com os pintos recém-nascidos, saindo de cada ovo. Do outro lado, uma lebre rodeada pelas crias.

O zimbro é a planta que possui sementes capazes de alimentar os animais. Os pintassilgos representam as crias, os filhos; as galinhas, os ovos e os coelhos anunciam a fertilidade, que é a maior bênção que uma mulher pode ter no casamento”.

Toda esta imagem iconográfica (Mulher coroada com zimbro, acompanhada de Ovos, Pintassilgos, coelhos, galinhas) evidencia a aspiração ancestral do ser humano: o anseio de abastança, o desejo de fertilidade e de fecundidade.

Ancestralmente, certos povos pré-históricos efectuavam diversos rituais, por altura do equinócio da primavera, tendo como propósito nas suas preces o desejo de um ano novo, do renovar da esperança e sobretudo do desejo de abundância e fertilidade.

Alguns destes costumes pagãos, apesar de aculturados, chegaram até nós com os mesmos propósitos de então. No Alentejo existe um ritual, em S. Pedro do Corval, onde as mulheres atiravam, e ainda atiram, calhaus rolados (supostamente ovos) para o topo de uma formação rochosa, denominado “Rocha dos Namorados”, de configuração erecta (figura do órgão masculino), cravado na terra (símbolo da deusa mãe) procurando assim a fertilidade e a fecundidade desejadas. Segundo a tradição, ainda presente, as raparigas solteiras vão à “rocha dos namorados”, na segunda-feira de Páscoa, lançar uma pedra para cima do menhir procurando resposta sobrenatural em matéria do seu enlace: cada lançamento falhado representa mais um ano de espera do seu casamento.

Luís Barreira"Rocha dos namorados"  coordenadas: 38°26'43.6"N 7°28'32.7"W

Luís Barreira

"Rocha dos namorados"

coordenadas: 38°26'43.6"N 7°28'32.7"W

Numa leitura mais atenta aos monumentos megalíticos circundantes, encontramos o Alinhamento ou Cromeleque dos Almendres (estas construções, únicas na Europa ocidental, estendem-se desde Inglaterra até Portugal), um recinto alongado, com cerca de uma centena de menhires, na sua maioria de forma ovóide, que constituiu, por certo, além de uma construção de carácter multifuncional capaz de organizar e estruturar a sociedade envolvente, uma estrutura de carácter religioso envolvendo, supostamente, rituais propiciatórios de fecundidade. Um dos menhires, situado na extremidade norte, exibe três imagens solares radiadas. Tal iconografia corresponde, provavelmente, ao momento final do Neolítico, quando na região se fizeram sentir as primeiras influências culturais das primeiras comunidades da idade dos metais, portadoras de uma nova estrutura religiosa. Esta religiosidade centrada numa divindade feminina, idealizada com grandes olhos solares, assumira-se como a grande “deusa ibérica”. Certamente que estas manifestações na Europa ocidental, feitas através de cerimónias de carácter sexual, com libações e outras ofertas corporais, não são alheias a um dos mais importantes rituais em honra de Ishtar, deusa da fertilidade, deusa dos arcádios. Esta divindade, Ishtar, não é mais do que a representação da deusa Inanna, herança dos seus antecessores povos sumérios; cognata da deusa Asterote dos filisteus; da deusa Isis dos egípcios; e da deusa Astarte dos Gregos. Mais tarde esta deusa, Ishtar, foi assumida também na mitologia Nórdica como Easter (Páscoa em Inglês), a deusa da fertilidade e da primavera.

No equinócio da primavera, os participantes em honra da deusa da fertilidade Easter pintavam e decoravam ovos escondendo-os em tocas nos campos, na sequência de anteriores práticas já exercitadas pelos Persas, Romanos, Judeus e Arménios.

 

texto escrito em 1991 

"é preciso ter lata"

Revista mn #01 coordenada por Luís BarreiraFoto/Capa: Luís Barreira"É preciso ter lata", 2005Entrevista a Marcelo Rebelo de Sousa  

Revista mn #01 coordenada por Luís Barreira

Foto/Capa: Luís Barreira

"É preciso ter lata", 2005

Entrevista a Marcelo Rebelo de Sousa

 

 

O Sonho dos Reis Magos

O dia dos Reis: nascimento de Jesus.

Capitel românico

Segundo a profecia, Antigo Testamento (Miqueias 5,1), os reis magos guiados por uma estrela chegaram a Belém a tempo de adorarem o menino, o Messias. Porém, e ainda antes de O avistarem teriam passado por Jerusalém consultando o Rei Herodes perguntando-lhe se sabia quem era o Rei que tinha nascido; pois tinham vislumbrado a “sua estrela” no céu, prenuncio do nascimento do menino, o Rei dos Judeus. Herodes incrédulo e desconfiado ordenou aos Reis Magos que fossem de imediato ao encontro do menino e no regresso lhe dissessem o lugar exacto, para que ele o pudesse adorar também. Chegados diante do Menino os Reis Magos oferendaram-No com ouro, incenso e mirra. No regresso foram avisados em sonho pelo anjo do Senhor que lhes retorquiu para não dizer nada ao rei Herodes do nascimento de Cristo e assim apanharam outra estrada evitando passarem por Jerusalém. Herodes, irado, mandou matar todos os meninos com menos de dois anos.

O sonho dos Reis MagosCatedral de Autun, França

O sonho dos Reis Magos

Catedral de Autun, França

 


texto: 2016 © Luís Carvalho Barreira

A Consequência da Guerra, 1637-38

Peter Paul Rubens A Consequência da Guerra, 1637-38 Óleo s/tela 206 cm × 345 cm Palácio Pitti, Florença

Peter Paul Rubens
A Consequência da Guerra, 1637-38
Óleo s/tela 206 cm × 345 cm
Palácio Pitti, Florença

Rubens,

Detentor de um estilo próprio, Rubens arrebata, nos seus quadros cheios de cenas complexas, cores mais suaves revelando detalhes pormenorizados ao contrário dos seus congéneres italianos. O seu talento foi rapidamente reconhecido alcançando um lugar de destaque no mundo das artes do século XVII (BARROCO). Contratado pelo duque de Mântua, Vicenzo Gonzaga, para quem passou a trabalhar com dedicação total por um período de tempo significativo, foi conquistando prestígio na corte ganhando influência com pessoas importantes e poderosas. Homem de confiança do duque de Mântua desempenhou várias missões diplomáticas em Espanha e em Itália.

Rubens, que nunca deixou de pintar, vivenciou os horrores da guerra (Guerra dos 30 anos, 1618-1648), uma série de conflitos travados sobretudo no centro da Europa, actual Alemanha, envolvendo vários estados. Inicialmente estes conflitos estavam enraizados numa disputa de cariz religioso entre Protestantes e Católicos acentuando os antagonismos das duas facções evoluindo rapidamente para contendas entre os vários principados germânicos. O Sacro Império Romano-Germânico,  católico, instrumento político da família dos Habsburgos, perdia influência para a Alemanha Luterana e via-se ameaçada pelo poder crescente dos Suecos e, principalmente, dos Franceses. À medida que o conflito se desenhava as tensões religiosas agravavam-se na Alemanha, reinado de Rodolfo II, período durante o qual foram destruídas muitas igrejas protestantes. Este conflito devastador, talvez, o maior na história europeia, começou com uma disputa religiosa, dita "Palatino-Boémia" (1618-1625), numa segunda fase o conflito assumiu um carácter internacional numa altura em que os estados germânicos protestantes buscavam ajuda no exterior contra os católicos; o envolvimento dinamarquês (1625-1629), seguida da intervenção sueca (1630), terminou com o envolvimento dos franceses (1635-1648) agora numa luta pela hegemonia na Europa Ocidental, travada pelos Habsburgos e a corte de Luís XIV, Rei Sol, recentemente empossado (1643).

É neste contexto histórico que Rubens pintou “Consequências da Guerra, 1637-38”. Numa pincelada gestual imprimindo movimento às formas são revelados todos os detalhes. Marte, deus romano da guerra, que é a figura principal apresenta-se de couraça e capacete empunhando a espada, enfatizado por uma capa vermelha, espezinhando um livro e um desenho: símbolo da violência que a guerra impõe à cultura de qualquer povo. A destruição protagonizada por Marte é impedida por Vénus, deusa do amor, atraindo a atenção de todos aqueles que sofrem os horrores da guerra. Vénus esforça-se por conter Marte e manter a paz coadjuvada por Cupido e Amors –cupido romano- (Omnia vincit amor et nos cedamus amori) – o amor tudo vence, numa alusão a Vergílio (éclogas X). No chão podemos ver as setas e um ramo de oliveira que quando juntas ao caduceu significam concórdia. Vénus é representada nua, visão clássica, suplicando melancolicamente a Marte, num derradeiro esforço para manter a paz.

Se há características formais que definem Rubens é a representação feminina, nomeadamente os nus. Vénus com os rolos e colares preciosos adornando o penteado associado à nudez manifesta em formas roliças dão configuração à mulher “rubeniana”. (Ver “O Desembarque em Marselha" de Maria de Médicis, “O Julgamento de Páris”, “As três Graças”, “Vénus ao Espelho”, etc.).

Numa paleta harmónica, os contrastes diferenciam-se dos pintores tridentinos atingindo uma atmosfera pictórica que fará escola no norte europeu.

É nesta dicotomia (Guerra e Paz) que a cena se desenrola: do lado direito a Fúria de Alecto (encarnação grega e romana da raiva: ira implacável ou incessante*) arrasta Marte para o seu propósito destrutivo erguendo uma tocha. Nas trevas podemos observar dois monstros simbolizando os efeitos da guerra, a Pestilência e a Fome, acentuando o dramatismo onde põem em causa a Harmonia representada pela mulher segurando em vão o alaúde, assim como o Arquitecto desesperado agarrando o compasso. No âmago deste caos uma mulher tenta salvar o filho.

Do lado esquerdo da pintura, o Templo de Janus –deus da mudança- aparece com a porta entreaberta.

Numa referência aos poemas de Ovídio, Fasti, era usual na Roma Antiga, o Templo de Janus ser fechado para indicar tempos de paz, enquanto uma porta aberta indicava guerra.

Toda a composição se desenrola num grande eixo (diagonal descendente, da esquerda para a direita) e deixei para o fim a mulher de negro, Europa, representando o mundo cristão que se digladiava infringindo o maior dos sofrimentos aos seus povos.


*Eneida de Virgílio e Inferno de Dante

Jano

Janus (Jano) deus romano

créditos: www.britishmuseum.org/

créditos: www.britishmuseum.org/

1 de Janeiro - Ano Novo

Em quase todo o mundo, pelo menos no ocidente, comemora-se o dia de ano novo no dia 1 de Janeiro. E a origem destas festividades devem-se a ao decreto do imperador romano Júlio César (em 46 a. C.), que fixou esta data como o dia do Ano Novo. Os romanos há muito que dedicavam este dia a Jano – deus da mudança - e também a um ciclo agrário que começava associado a uma abundância futura que se desejava. Jano, o deus das duas faces e das duas portas (entrada e saída) simbolizava o conhecimento e a partilha para que seja possível efectuar essa mudança. Jano era representado por duas faces, uma delas voltada para trás, visualizando o passado, e a outra virada para a frente, simbolizando o futuro. Conhecedor do passado e vaticinador dos inícios e das assertivas decisões estava ligado aos ciclos agrários que se iniciam em finais de Janeiro (fim do inverno) até às colheitas (outono). Este ciclo culmina com o solstício de inverno dando lugar à Saturnália, festividades romanas em honra ao deus Saturno que ocorria no mês de Dezembro e que se estendiam até 25 de Dezembro (sol invictus – sol vencedor).

Em Janeiro (Jano) um novo ano agrário e religioso começavam e a esperança e as expectativas eram renovadas.

28, um eléctrico da Graça aos Prazeres

Estou farto!

Disse várias vezes à minha amiga enquanto preparávamos a forma de passar de ano. Abomino a embriaguez colectiva da passagem de ano: dos rituais oníricos, do excesso de álcool, da gula ostentada, da privação do sono como forma de estender este dia inebriante. Aquilo que mais me tormenta é a ideia de perda, não no sentido literal do termo, mas na consciência de privação de algo irrepetível. É um sentimento muito forte que quarta a minha natureza. Não entendo o que as pessoas festejam: se é o desejo de um ano melhor, ou se é a vontade de aniquilar o passado. Em ambas as situações parecem-me ridículas e contraditórias. Como se pode desejar um ano melhor quando a ordem natural das coisas é de carregarmos as incertezas da vida, que a provecta idade se prontifica a desmentir? Do mesmo modo, como se pode decretar – festejando –, o fim de um passado reminiscente? Odeio a festa do Ano Novo… e as formas ridículas de o comemorar.

Ao invés, agrada-me o recanto e a ideia de congelar o momentum. Eternizar um breve espaço de tempo. É como se pudéssemos viajar infinitamente para o interior, para dentro de nós. Um instante sedento de paixão na imensidão do tempo esgotado, na ínfima partícula da nossa curta experiência. Uma vontade perene de contrariarmos o absurdo de Zenão. Façamos uma curta viagem desde a graça do nosso encontro até aos prazeres da cópula nupcial e comemoremos, então, o nosso momento. Saiamos do nosso reduto com uma garrafa de champanhe e algumas passas, apanhemos o último eléctrico, 28, na graça de teu corpo, percorramos as artérias estreitas e sinuosas de Alfama, façamos amor por altura do Largo das Belas Artes, deleitemo-nos no Chiado, sigamos pela calçada do Combro rumo à Basílica da Estrela e morramos nos (em) Prazeres.

Não tenho bem presente o instante em que ela se tornou cúmplice, mas a proposta tinha tanto de sedutora como de trágica. Há algo de fatídico no amor que é a ideia de morte. Uma espécie de feromona intelectual indissociável à sobrevivência emocional e, em última instância, ao amor físico. Caminhamos inexoravelmente para o fim, o fim deste nosso amor trilhado da Graça até aos Prazeres num eléctrico chamado desejo.

Texto* de Luís Barreira (1989)

*sinopse para uma curta metragem

Peter Paul Rubens, Desembarque em Marselha, 1622-25

Peter Paul Rubens Desembarque em Marselha, 1622-25 Óleo s/tela 394 × 295 cm Museu do Louvre

Peter Paul Rubens
Desembarque em Marselha, 1622-25
Óleo s/tela 394 × 295 cm
Museu do Louvre

Maria de Médicis, a grande banqueira.

A família Médicis era credora de uma avultada quantia da coroa francesa (600.000 coroas). Houve contactos entre as duas famílias. E após algumas diligências diplomáticas seguiram-se trocas de cartas de amor, envio de retratos a óleo autenticando quão bela era a donzela. As confidências partilhadas deixaram Henrique IV, Rei de França, rendido aos dotes de Maria de Médicis.

Rubens retrata “O desembarque em Marselha” (data da pintura: 1621-1625) da futura rainha de França, Maria de Médicis, em 03 de Novembro de 1600, com toda a pompa e circunstância: os gestos, as roupas, os detalhes de uma paleta de cores cuidadosamente distribuída traduz a excitação e a agitação provocado por tal acontecimento.

Ao invés da tradicional composição plástica barroca, de fazer incidir a atenção nas áreas iluminadas por oposição ao fundo, zonas escuras, altamente contrastadas, Rubens recorre à cor vermelha, nomeadamente a panejamentos, para deslocar a atenção para o/s “ponto/s forte/s”. É neste jogo cromático e nos pequenos detalhes formais que a cena se desenrola, não deixando indiferente o observador que percorre o olhar pelas sucessivas diagonais implícitas da composição.

Paradoxalmente podemos considerar que este quadro não é um mas, sim, dois quadros; e contrariamente a todas as regras de equilíbrio formal, de uma pintura de paisagem, este quadro foi feito na vertical provocando, intencionalmente, uma leitura dupla. Assim, a parte inferior do quadro, onde as três ninfas ajudam Neptuno a encostar a Nau rivaliza, em estatuto de primeiro plano, com o desembarque de Maria de Médicis acompanhada em todo o seu esplendor majestoso por um homem, com elmo, vestido com um manto azul bordado a ouro com flores-de-lis representando iconograficamente a França. A outra mulher, com uma coroa de torres, representa a cidade de Marselha. A deusa da Fama* anuncia com trombetas douradas o desembarque da rainha em França, tudo isto no plano superior do quadro. Contudo, Rubens apesar de ter partilhado a tendência típica da época barroca, presente nas cores exuberantes, na riqueza dos trajes, nos detalhes dourados, não deixou de reflectir o classicismo presenta em cenas mitológicas. Formalmente a composição assenta em simetrias dinâmicas apoiadas em sucessivas diagonais sublinhadas pela torção das figuras mitológicas.

Rubens imprimia à pintura um clima de triunfo mundano, e dizia: “O importante não é viver muito, mas viver bem!”.


*Fama, a deusa de 100 bocas

A Fama, divindade alada, filha de Titã e Geia, famosa na Roma Antiga, cultuada no mundo contemporâneo, era mensageira de Júpiter, tinha a cara de louca e voava à frente do seu cortejo, disseminando mentiras e verdades por suas 100 bocas. O poeta Virgílio (71 a.C.-14 d.C.) a cantou como o mais rápido dos flagelos por causa de "sua mobilidade", de onde vinham "suas forças que ela aumenta correndo. Pouco temível, a princípio, em breve sobe aos ares e , com os pés presos no chão, esconde a cabeça nas nuvens. Monstro horrível, voa de noite entre o céu e a terra e nunca dorme, de dia espreita do cimo dos palácios, no alto das torres, amedrontando as grandes cidades, semeando mentiras e verdades".