Estou farto!
Disse várias vezes à minha amiga enquanto preparávamos a forma de passar de ano. Abomino a embriaguez colectiva da passagem de ano: dos rituais oníricos, do excesso de álcool, da gula ostentada, da privação do sono como forma de estender este dia inebriante. Aquilo que mais me tormenta é a ideia de perda, não no sentido literal do termo, mas na consciência de privação de algo irrepetível. É um sentimento muito forte que quarta a minha natureza. Não entendo o que as pessoas festejam: se é o desejo de um ano melhor, ou se é a vontade de aniquilar o passado. Em ambas as situações parecem-me ridículas e contraditórias. Como se pode desejar um ano melhor quando a ordem natural das coisas é de carregarmos as incertezas da vida, que a provecta idade se prontifica a desmentir? Do mesmo modo, como se pode decretar – festejando –, o fim de um passado reminiscente? Odeio a festa do Ano Novo… e as formas ridículas de o comemorar.
Ao invés, agrada-me o recanto e a ideia de congelar o momentum. Eternizar um breve espaço de tempo. É como se pudéssemos viajar infinitamente para o interior, para dentro de nós. Um instante sedento de paixão na imensidão do tempo esgotado, na ínfima partícula da nossa curta experiência. Uma vontade perene de contrariarmos o absurdo de Zenão. Façamos uma curta viagem desde a graça do nosso encontro até aos prazeres da cópula nupcial e comemoremos, então, o nosso momento. Saiamos do nosso reduto com uma garrafa de champanhe e algumas passas, apanhemos o último eléctrico, 28, na graça de teu corpo, percorramos as artérias estreitas e sinuosas de Alfama, façamos amor por altura do Largo das Belas Artes, deleitemo-nos no Chiado, sigamos pela calçada do Combro rumo à Basílica da Estrela e morramos nos (em) Prazeres.
Não tenho bem presente o instante em que ela se tornou cúmplice, mas a proposta tinha tanto de sedutora como de trágica. Há algo de fatídico no amor que é a ideia de morte. Uma espécie de feromona intelectual indissociável à sobrevivência emocional e, em última instância, ao amor físico. Caminhamos inexoravelmente para o fim, o fim deste nosso amor trilhado da Graça até aos Prazeres num eléctrico chamado desejo.
Texto* de Luís Barreira (1989)
*sinopse para uma curta metragem