O indecoroso palavrão — filho da puta[1] — transversal a todas as línguas latinas nem sempre foi assim. Na mitologia romana, de acordo com Arnóbio[2], Puta era uma deusa menor da agricultura, que durante as festividades da primavera, no início de cada ciclo de vida agrícola, presidia não só ao amanhar da terra, à poda das árvores, mas também ao poder de julgar, de ordenar, de representar, em suma, de manifestar o desejo de abundância. Recordamos que o culto à fertilidade remonta ao homem pré-histórico (mãe-natureza) e que nas civilizações clássicas personificaram na deusa Ishtar (acádios), na Astarte (fenícia), na Cibele (frígia), na Artemísia de Éfeso (grega), na Ísis (egípcia), na Vesta (romana) e, entre outras deusas de menor culto, na deusa Puta (no império romano, com maior incidência no sul de Itália) o mesmo desejo.
As práticas ao culto feminino — à deusa-mãe — eram comportamentos “vulgares” nas mais diversas civilizações antigas que se manifestaram de maneira semelhante nos rituais praticados: a exaltação da fertilidade através do sexo como ideia última de bem-aventurança. A maternidade jamais fora concebida sem uma relação sexual e, porventura, indissociável do prazer… reservando papéis diferentes para o homem e para a mulher. É fácil de sustentar que estas comunidades — sociedades matriarcais — facilmente deificaram a mulher em divindade: a Deusa-Mãe. A Deusa-Mãe enquanto divindade personifica a generosidade da Natureza, a maternidade e a fertilidade[3]. Enquanto o poder masculino, subalternizado, era demonstrado pela força e pela virilidade consubstanciada no acto criador. Os menhires, símbolos fálicos, fecundando a terra são a interpretação desse acto criador que nos parece mais assertiva. Assim, as inúmeras referências à Mãe-Natureza terão diversas representações e outros simbolismos consoante o corpus referencial do homem ao longo da sua existência. E a condição do ser humano jamais se separará o corpo do transcendente; a matéria do Absoluto; a arte da religião.
Recuemos no tempo para lembrar que o primeiro grande cisma religioso foi, seguramente, a passagem de uma sociedade matriarcal para uma sociedade assente no poder masculino: a patriarcal. E foram os gregos que nos relataram que no início foi o Caos, o universo onde os deuses não tomaram parte; do Caos nasceu Gaia (Terra); a Gaia pariu, sozinha, o céu (Úrano), o mar (Ponto) e as montanhas (Óreas). Mais tarde, Gaia escolhe o seu filho, Úrano, para que a fecundasse e que o resultado dessa união (primeiro relato de incesto) se tornasse o lar eterno para os deuses bem-aventurados: o Olimpo. O politeísmo grego arcaico, narrado por Hesíodo na Teogonia[4], assentava inicialmente na figura feminina Gaia (mãe-terra á semelhança do culto pré-histórico). Porém, à medida que a sociedade pendia para o poder masculino converteu-se numa religião patriarcal em que Zeus é o Deus dos deuses.
Da cosmogonia grega ao dogma cristão, do pecado original, um longo período histórico (c.5000 a.C. – 380 d.C.) a percorrer. Assistimos a comportamentos liberalizantes da relação do homem com o seu corpo. E se no início o sexo era uma forma de prazer, a maternidade era motivo para o culto divino. Levará vários milhares de anos para que o prazer extraído do acto sexual fosse coarctado e encarado como factor de destruição da unidade familiar que, por sua vez, corrói o tecido social. E não foram as religiões monoteístas as primeiras a censurar tais práticas. Por razão de Estado, os romanos viram no pater família[5] — chefe de família — a defesa nuclear da sociedade visando assegurar a submissão e a fidelidade da mulher e, por extensão, a paternidade dos filhos. Desta forma a organização da sociedade assinalou uma mudança definitiva para a monogamia defendendo os interesses de estado através do casamento[6]. É com o propósito semelhante, da defesa da família, que o cristianismo vai acentuar e condenar a concupiscência, as relações sexuais fora do matrimónio e mesmo dentro dele só com fins unicamente procriadores: o pecado da luxúria será o mais penalizante. Por isso cito: Vivam pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os desejos da carne (Gálatas 5:16). Neste sentido, verificamos um acentuar misógino ganhando cada vez mais adeptos atribuindo à mulher a ideia de pecado original, ou seja a culpa de todos os males. A mulher ganha epítetos pouco dignificantes: a mulher adúltera, a mulher dissimulada, a mulher puta…
Escusado será dizer que nas religiões antigas esse sentimento em relação à mulher e ao sexo não era tão obstinado, pelo contrário. Na fenícia, em Antioquia[7], a adoração de Astarte, deusa dos Fenícios, da lua, da fertilidade, da sexualidade e da guerra era venerada com as longas peregrinações de adoradores vindos de todo médio-oriente e tinham como principais rituais a adoração das imagens, libações, terminando em ofertas corporais de teor sexual. Práticas levadas acabo pelas sacerdotisas, mulheres de Antioquia, que Constantino aboliu por ofensa à moral cristã. O culto de Astarte ganhou popularidade entre outros crentes como a do rei Salomão que a adoptou em detrimento do seu Deus (Bíblia: 1 Reis 11:5)[8]. A importância deste lugar economicamente e religiosamente, rota de várias culturas, cruzamento de várias religiões em ascensão, fez com que Paulo[9] e Barnabé[10] escolhessem Antioquia, onde, com muitos outros, ensinavam e pregavam a palavra do Senhor (Actos dos Apóstolos 15:35).
O mesmo se passava com o culto à cognata Cibele (para os frígios) que, por sua vez, assimilada pelo sincretismo religioso grego a adoptou porque se assemelhava à sua Artemísia, irmã gémea de Apolo, deusa da caça. Assim, o culto da deusa autóctone dá origem à deusa Artemísia e o seu Templo em Éfeso (séc. VI a.C.) foi considerado uma das sete maravilhas da Antiguidade Clássica[11], passando a ser conhecida pela Artemísia de Éfeso. O grande centro pan-helénico em que se tornou Éfeso ganhou importância social, religiosa e política. E no século I d.C. Éfeso contava já com 200.000 habitantes. De tão cosmopolita cidade refundada pelos romanos em 129 d.C., ainda hoje, se adivinha ao longo da estrada de mármore, do Grande Teatro, dos Banhos públicos e da belíssima fachada da Biblioteca de Celso, transeuntes falando grego, latim e hebraico. Mas Éfeso encerra ainda um passado profano: Afrodite, sempre solícita para o amor, é coadjuvada por Priapo que presidiam à “casa-do-prazer” cujas ruínas existentes e as descobertas arqueológicas o revelaram[12]. Um pé desenhado numa pedra da calçada é tudo para que possamos dar com o antro do prazer. (há quem veja — explicação de guia turística — nesta inscrição a proibição de entrada a menores ou pelo menos a pés que não ocultasse por completo a inscrição: uma espécie de Bilhete de Identidade da antiguidade). Devemos ter algum distanciamento e, sobretudo, alguma reserva moralista sobre estes locais apelidados de bordéis: não imaginamos um bordel actual decorado com símbolos sagrados do cristianismo, pois não? A “casa-do-prazer” de Éfeso advém desse sincretismo do culto do sagrado com o prazer, perfeitamente pacíficos ao longo de milhares de anos.
No primeiro concílio de Éfeso (431 d.C.), convocado pelo Imperador Teodósio II, debateu-se, entre outros assuntos, o carácter Teótoco da Mãe de Deus e reforçou o valor simbólico de Maria (ver: Ouro sobre Azul). Éfeso convertida ao cristianismo passou a adorar a Mãe de Deus numa fervorosa devoção a Maria. Não será por acaso que a mãe de Jesus tenha passado os últimos dias da sua vida terrena em Éfeso antes do sono eterno.
Quer Antioquia, quer Éfeso, foram locais de disputa da nova religião monoteísta em ascensão: o cristianismo. Depois de passar algum tempo em Antioquia, Paulo partiu dali e viajou por toda a região da Galácia e da Frígia, fortalecendo todos os discípulos (Actos dos Apóstolos 18:23). Uma longa viagem de evangelização nem sempre pacífica.
Estivemos a falar, sinteticamente, de um período histórico de comportamentos ou cultos religiosos que medeiam c.5000 a.C. até ao século IV d.C.; para ser mais preciso, até 313 d.C. com édito de Milão, por Constantino, que reconhece o cristianismo como uma religião dentro de outras deixando de as perseguir. Ou para ser mais preciso e encontrar um marco histórico fundamental para o cristianismo, foi 380 d.C. com o édito de Tessalónica[13] que o imperador Teodósio I reconhece o cristianismo como religião oficial do Império Romano perseguindo toda e qualquer religião pagã. Decorreram 67 anos de liberdade de culto e é tempo de conversão dos templos pagãos em igrejas católicas, da destruição da memória física do paganismo, de reforçar os valores de uma moral cristã e, sobretudo, em decalcar a hierarquia da igreja católica na estrutura política do império romano. A casa dos deuses — O Panteão Romano — edificado ao longo de muitos anos para albergar os deuses, as deidades, e o culto dos antepassados deveria ser agora abandonado no culto a uma nova religião monoteísta portadora de normas morais condenatórias da praxis milenar. Contudo, a cultura, os costumes, as festas e as festividades não se acabam por decreto. Dos festivais dionisíacos[14] gregos até à Saturnália, à Lupercália e aos Bacanais romanos — para enumerar somente as festividades com maior repercussão social — um enorme rol de festas estimuladoras de prazeres sexuais a condenar. As Bacanais, rituais destinados inicialmente somente a mulheres, cedo se tornaram tão populares em Roma que as festividades descambaram em desordem social. As mulheres dionisíacas de cabelos desgrenhados entrelaçados com serpentes ou com uma grinalda de hera, durante o culto a Baco, bebiam, dançavam aumentando o contacto físico e o desejo sexual associado à folia.
Em 186 a.C. o senado romano promulgou um decreto (Senatus consultum de Bacchanalibus) — ver imagem em cima e a tradução aqui — a proibir as Bacanais, festividades em rápida propagação que, segundo Tito Lívio[15] (c. 59 a.C. — 17 d.C.), era um culto no qual ocorriam as mais grotescas vulgaridades, bem como todo tipo de crimes e conspirações políticas nas suas sessões nocturnas. O incumprimento deste decreto, do Senado romano, proibindo estas festividades em toda Itália, com a excepção de casos particulares aprovados pelo Senado, levou à perseguição e condenação de muitos dos praticantes. Apesar do castigo ser severo, reservado aos prevaricadores, (segundo, Tito Lívio, houve mais execuções do que encarceramentos) as festas sobreviveram, principalmente, no sul de Itália.
O culto à deusa Puta ocupa esse espaço deixado pelas Bacanais. Durante estas festividades à deusa Puta, exercidos principalmente por mulheres jovens, faziam de conta que podavam (putare[16]) ao mesmo tempo que empunhando ramos de oliveira dançavam em êxtase em arrebatamentos sagrados entregando-se aos prazeres carnais em honra da deusa. Por fim, acreditavam que os filhos nascidos destes ocasionais encontros eram os filhos da Puta que, porventura, teriam um futuro brilhante.
Texto, 2018 © Luís Barreira