Foto: Luís Barreira
"Caridade romana"
Apresentei esta imagem aos meus alunos, como forma de provocação, pedindo-lhes que analisassem esta pintura, isto é, a sua interpretação iconográfica subjacente; em primeiro lugar a mensagem (tema), depois o autor, a época e a sua envolvência sociocultural. Alertei-os que olhar não é ver. E nem tudo o que parece é. Mas o Carlos, o mais afoito, sem tento na língua expressou o nível mais básico de entendimento: “mamar na chucha”!
Deu-me a “deixa” pretendida para que pudesse explanar a história exemplar de uma filha (Pero) que secretamente amamenta o pai (Cimon) depois que ele ser preso e condenado à morte por inanição. O antigo historiador romano Valerius Maximus regista este acontecimento como um grande acto de piedade filial e honra romana em De FACTIS Dictisque Memorabilibus, Libri IX: conhecida por “Caridade romana”. Entre os romanos o tema não era desconhecido, já os etruscos cultivavam o mito de Juno a amamentar o adulto Hércules sublinhando o valor altruístico.
Regressados ao quadro (pintura) de Peter Paul Rubens, retirada toda a carga erótica atribuída pelo aluno, foi mais fácil descodificar toda a acção: Pero é descoberta pelos guardas (no canto superior direito) a amamentar Cimon (pai) agrilhoado no cárcere. O amor deste acto impressiona a justiça ordenando a sua libertação.
Foz d'égua - Piódão
Os recantos da Serra do Açor deixam a descoberto algumas maravilhas naturais. A Foz D’Égua a pouco mais de 4 km do Piódão é um bom exemplo: um local de encontro da ribeira do Piódão com a ribeira de Chãs d’Égua, que percorrem em direcção ao rio Alvôco, tornando este local num espaço de rara beleza natural.
Nota do viajante: se o cenário natural é magnífico o mesmo não se pode dizer da falta de gosto do proprietário da casa e da encosta anexa que transformou este anfiteatro numa espécie de parque de diversões onde o Kitsch prevalece. Mesmo assim, vale a pena visitar.
Planta de Lisboa (1785)
Lisboa
Após 30 anos do grande terramoto de 1755, Lisboa resumia-se praticamente a oriente aos bairros de Alfama e Mouraria e a ocidente ao Bairro Alto (agora com um urbanismo iluminista, de ruas ortogonais, à semelhança da Baixa pombalina) conforme podemos ver na figura em baixo.
Centro Arte Moderna
Manifesto
Toda a arte deverá estar sepultada no CAM. A nossa será (foi) a primeira.
(nas fundações do CAM enterramos o nosso manifesto artístico, documentos libertadores da arte do século XX.)
Lisboa, 1981
LCB
MPPCM
Rocha dos Namorados
Equinócio da Primavera
No século XVI, Cesare Ripa, no seu tratado de iconologia, descreve a “Fecundidade” (ver imagem) como uma “mulher coroada com folhas de zimbro que com as mãos aperta contra os seus seios um ninho de pintassilgos com os seus filhotes (pássaro que alguns confundem com o pardal). Segundo Plínio, lib. X, cap. LXIII, o pintassilgo é um dos mais pequenos mas dos mais profícuos animais, pondo de cada vez doze ovos.
A seus pés, uma galinha com os pintos recém-nascidos, saindo de cada ovo. Do outro lado, uma lebre rodeada pelas crias.
O zimbro é a planta que possui sementes capazes de alimentar os animais. Os pintassilgos representam as crias, os filhos; as galinhas, os ovos e os coelhos anunciam a fertilidade, que é a maior bênção que uma mulher pode ter no casamento”.
Toda esta imagem iconográfica (Mulher coroada com zimbro, acompanhada de Ovos, Pintassilgos, coelhos, galinhas) evidencia a aspiração ancestral do ser humano: o anseio de abastança, o desejo de fertilidade e de fecundidade.
Ancestralmente, certos povos pré-históricos efectuavam diversos rituais, por altura do equinócio da primavera, tendo como propósito nas suas preces o desejo de um ano novo, do renovar da esperança e sobretudo do desejo de abundância e fertilidade.
Alguns destes costumes pagãos, apesar de aculturados, chegaram até nós com os mesmos propósitos de então. No Alentejo existe um ritual, em S. Pedro do Corval, onde as mulheres atiravam, e ainda atiram, calhaus rolados (supostamente ovos) para o topo de uma formação rochosa, denominado “Rocha dos Namorados”, de configuração erecta (figura do órgão masculino), cravado na terra (símbolo da deusa mãe) procurando assim a fertilidade e a fecundidade desejadas. Segundo a tradição, ainda presente, as raparigas solteiras vão à “rocha dos namorados”, na segunda-feira de Páscoa, lançar uma pedra para cima do menhir procurando resposta sobrenatural em matéria do seu enlace: cada lançamento falhado representa mais um ano de espera do seu casamento.
Numa leitura mais atenta aos monumentos megalíticos circundantes, encontramos o Alinhamento ou Cromeleque dos Almendres (estas construções, únicas na Europa ocidental, estendem-se desde Inglaterra até Portugal), um recinto alongado, com cerca de uma centena de menhires, na sua maioria de forma ovóide, que constituiu, por certo, além de uma construção de carácter multifuncional capaz de organizar e estruturar a sociedade envolvente, uma estrutura de carácter religioso envolvendo, supostamente, rituais propiciatórios de fecundidade. Um dos menhires, situado na extremidade norte, exibe três imagens solares radiadas. Tal iconografia corresponde, provavelmente, ao momento final do Neolítico, quando na região se fizeram sentir as primeiras influências culturais das primeiras comunidades da idade dos metais, portadoras de uma nova estrutura religiosa. Esta religiosidade centrada numa divindade feminina, idealizada com grandes olhos solares, assumira-se como a grande “deusa ibérica”. Certamente que estas manifestações na Europa ocidental, feitas através de cerimónias de carácter sexual, com libações e outras ofertas corporais, não são alheias a um dos mais importantes rituais em honra de Ishtar, deusa da fertilidade, deusa dos arcádios. Esta divindade, Ishtar, não é mais do que a representação da deusa Inanna, herança dos seus antecessores povos sumérios; cognata da deusa Asterote dos filisteus; da deusa Isis dos egípcios; e da deusa Astarte dos Gregos. Mais tarde esta deusa, Ishtar, foi assumida também na mitologia Nórdica como Easter (Páscoa em Inglês), a deusa da fertilidade e da primavera.
No equinócio da primavera, os participantes em honra da deusa da fertilidade Easter pintavam e decoravam ovos escondendo-os em tocas nos campos, na sequência de anteriores práticas já exercitadas pelos Persas, Romanos, Judeus e Arménios.
texto escrito em 1991
"é preciso ter lata"
O Sonho dos Reis Magos
O dia dos Reis: nascimento de Jesus.
Segundo a profecia, Antigo Testamento (Miqueias 5,1), os reis magos guiados por uma estrela chegaram a Belém a tempo de adorarem o menino, o Messias. Porém, e ainda antes de O avistarem teriam passado por Jerusalém consultando o Rei Herodes perguntando-lhe se sabia quem era o Rei que tinha nascido; pois tinham vislumbrado a “sua estrela” no céu, prenuncio do nascimento do menino, o Rei dos Judeus. Herodes incrédulo e desconfiado ordenou aos Reis Magos que fossem de imediato ao encontro do menino e no regresso lhe dissessem o lugar exacto, para que ele o pudesse adorar também. Chegados diante do Menino os Reis Magos oferendaram-No com ouro, incenso e mirra. No regresso foram avisados em sonho pelo anjo do Senhor que lhes retorquiu para não dizer nada ao rei Herodes do nascimento de Cristo e assim apanharam outra estrada evitando passarem por Jerusalém. Herodes, irado, mandou matar todos os meninos com menos de dois anos.
texto: 2016 © Luís Carvalho Barreira
René Magritte, L’amour 1928
...o realismo da pintura ou o lado onírico da fotografia...
A Consequência da Guerra, 1637-38
Rubens,
Detentor de um estilo próprio, Rubens arrebata, nos seus quadros cheios de cenas complexas, cores mais suaves revelando detalhes pormenorizados ao contrário dos seus congéneres italianos. O seu talento foi rapidamente reconhecido alcançando um lugar de destaque no mundo das artes do século XVII (BARROCO). Contratado pelo duque de Mântua, Vicenzo Gonzaga, para quem passou a trabalhar com dedicação total por um período de tempo significativo, foi conquistando prestígio na corte ganhando influência com pessoas importantes e poderosas. Homem de confiança do duque de Mântua desempenhou várias missões diplomáticas em Espanha e em Itália.
Rubens, que nunca deixou de pintar, vivenciou os horrores da guerra (Guerra dos 30 anos, 1618-1648), uma série de conflitos travados sobretudo no centro da Europa, actual Alemanha, envolvendo vários estados. Inicialmente estes conflitos estavam enraizados numa disputa de cariz religioso entre Protestantes e Católicos acentuando os antagonismos das duas facções evoluindo rapidamente para contendas entre os vários principados germânicos. O Sacro Império Romano-Germânico, católico, instrumento político da família dos Habsburgos, perdia influência para a Alemanha Luterana e via-se ameaçada pelo poder crescente dos Suecos e, principalmente, dos Franceses. À medida que o conflito se desenhava as tensões religiosas agravavam-se na Alemanha, reinado de Rodolfo II, período durante o qual foram destruídas muitas igrejas protestantes. Este conflito devastador, talvez, o maior na história europeia, começou com uma disputa religiosa, dita "Palatino-Boémia" (1618-1625), numa segunda fase o conflito assumiu um carácter internacional numa altura em que os estados germânicos protestantes buscavam ajuda no exterior contra os católicos; o envolvimento dinamarquês (1625-1629), seguida da intervenção sueca (1630), terminou com o envolvimento dos franceses (1635-1648) agora numa luta pela hegemonia na Europa Ocidental, travada pelos Habsburgos e a corte de Luís XIV, Rei Sol, recentemente empossado (1643).
É neste contexto histórico que Rubens pintou “Consequências da Guerra, 1637-38”. Numa pincelada gestual imprimindo movimento às formas são revelados todos os detalhes. Marte, deus romano da guerra, que é a figura principal apresenta-se de couraça e capacete empunhando a espada, enfatizado por uma capa vermelha, espezinhando um livro e um desenho: símbolo da violência que a guerra impõe à cultura de qualquer povo. A destruição protagonizada por Marte é impedida por Vénus, deusa do amor, atraindo a atenção de todos aqueles que sofrem os horrores da guerra. Vénus esforça-se por conter Marte e manter a paz coadjuvada por Cupido e Amors –cupido romano- (Omnia vincit amor et nos cedamus amori) – o amor tudo vence, numa alusão a Vergílio (éclogas X). No chão podemos ver as setas e um ramo de oliveira que quando juntas ao caduceu significam concórdia. Vénus é representada nua, visão clássica, suplicando melancolicamente a Marte, num derradeiro esforço para manter a paz.
Se há características formais que definem Rubens é a representação feminina, nomeadamente os nus. Vénus com os rolos e colares preciosos adornando o penteado associado à nudez manifesta em formas roliças dão configuração à mulher “rubeniana”. (Ver “O Desembarque em Marselha" de Maria de Médicis, “O Julgamento de Páris”, “As três Graças”, “Vénus ao Espelho”, etc.).
Numa paleta harmónica, os contrastes diferenciam-se dos pintores tridentinos atingindo uma atmosfera pictórica que fará escola no norte europeu.
É nesta dicotomia (Guerra e Paz) que a cena se desenrola: do lado direito a Fúria de Alecto (encarnação grega e romana da raiva: ira implacável ou incessante*) arrasta Marte para o seu propósito destrutivo erguendo uma tocha. Nas trevas podemos observar dois monstros simbolizando os efeitos da guerra, a Pestilência e a Fome, acentuando o dramatismo onde põem em causa a Harmonia representada pela mulher segurando em vão o alaúde, assim como o Arquitecto desesperado agarrando o compasso. No âmago deste caos uma mulher tenta salvar o filho.
Do lado esquerdo da pintura, o Templo de Janus –deus da mudança- aparece com a porta entreaberta.
Numa referência aos poemas de Ovídio, Fasti, era usual na Roma Antiga, o Templo de Janus ser fechado para indicar tempos de paz, enquanto uma porta aberta indicava guerra.
Toda a composição se desenrola num grande eixo (diagonal descendente, da esquerda para a direita) e deixei para o fim a mulher de negro, Europa, representando o mundo cristão que se digladiava infringindo o maior dos sofrimentos aos seus povos.
*Eneida de Virgílio e Inferno de Dante
Jano
Janus (Jano) deus romano
1 de Janeiro - Ano Novo
Em quase todo o mundo, pelo menos no ocidente, comemora-se o dia de ano novo no dia 1 de Janeiro. E a origem destas festividades devem-se a ao decreto do imperador romano Júlio César (em 46 a. C.), que fixou esta data como o dia do Ano Novo. Os romanos há muito que dedicavam este dia a Jano – deus da mudança - e também a um ciclo agrário que começava associado a uma abundância futura que se desejava. Jano, o deus das duas faces e das duas portas (entrada e saída) simbolizava o conhecimento e a partilha para que seja possível efectuar essa mudança. Jano era representado por duas faces, uma delas voltada para trás, visualizando o passado, e a outra virada para a frente, simbolizando o futuro. Conhecedor do passado e vaticinador dos inícios e das assertivas decisões estava ligado aos ciclos agrários que se iniciam em finais de Janeiro (fim do inverno) até às colheitas (outono). Este ciclo culmina com o solstício de inverno dando lugar à Saturnália, festividades romanas em honra ao deus Saturno que ocorria no mês de Dezembro e que se estendiam até 25 de Dezembro (sol invictus – sol vencedor).
Em Janeiro (Jano) um novo ano agrário e religioso começavam e a esperança e as expectativas eram renovadas.
28, um eléctrico da Graça aos Prazeres
Estou farto!
Disse várias vezes à minha amiga enquanto preparávamos a forma de passar de ano. Abomino a embriaguez colectiva da passagem de ano: dos rituais oníricos, do excesso de álcool, da gula ostentada, da privação do sono como forma de estender este dia inebriante. Aquilo que mais me tormenta é a ideia de perda, não no sentido literal do termo, mas na consciência de privação de algo irrepetível. É um sentimento muito forte que quarta a minha natureza. Não entendo o que as pessoas festejam: se é o desejo de um ano melhor, ou se é a vontade de aniquilar o passado. Em ambas as situações parecem-me ridículas e contraditórias. Como se pode desejar um ano melhor quando a ordem natural das coisas é de carregarmos as incertezas da vida, que a provecta idade se prontifica a desmentir? Do mesmo modo, como se pode decretar – festejando –, o fim de um passado reminiscente? Odeio a festa do Ano Novo… e as formas ridículas de o comemorar.
Ao invés, agrada-me o recanto e a ideia de congelar o momentum. Eternizar um breve espaço de tempo. É como se pudéssemos viajar infinitamente para o interior, para dentro de nós. Um instante sedento de paixão na imensidão do tempo esgotado, na ínfima partícula da nossa curta experiência. Uma vontade perene de contrariarmos o absurdo de Zenão. Façamos uma curta viagem desde a graça do nosso encontro até aos prazeres da cópula nupcial e comemoremos, então, o nosso momento. Saiamos do nosso reduto com uma garrafa de champanhe e algumas passas, apanhemos o último eléctrico, 28, na graça de teu corpo, percorramos as artérias estreitas e sinuosas de Alfama, façamos amor por altura do Largo das Belas Artes, deleitemo-nos no Chiado, sigamos pela calçada do Combro rumo à Basílica da Estrela e morramos nos (em) Prazeres.
Não tenho bem presente o instante em que ela se tornou cúmplice, mas a proposta tinha tanto de sedutora como de trágica. Há algo de fatídico no amor que é a ideia de morte. Uma espécie de feromona intelectual indissociável à sobrevivência emocional e, em última instância, ao amor físico. Caminhamos inexoravelmente para o fim, o fim deste nosso amor trilhado da Graça até aos Prazeres num eléctrico chamado desejo.
Texto* de Luís Barreira (1989)
*sinopse para uma curta metragem
Peter Paul Rubens, Desembarque em Marselha, 1622-25
Maria de Médicis, a grande banqueira.
A família Médicis era credora de uma avultada quantia da coroa francesa (600.000 coroas). Houve contactos entre as duas famílias. E após algumas diligências diplomáticas seguiram-se trocas de cartas de amor, envio de retratos a óleo autenticando quão bela era a donzela. As confidências partilhadas deixaram Henrique IV, Rei de França, rendido aos dotes de Maria de Médicis.
Rubens retrata “O desembarque em Marselha” (data da pintura: 1621-1625) da futura rainha de França, Maria de Médicis, em 03 de Novembro de 1600, com toda a pompa e circunstância: os gestos, as roupas, os detalhes de uma paleta de cores cuidadosamente distribuída traduz a excitação e a agitação provocado por tal acontecimento.
Ao invés da tradicional composição plástica barroca, de fazer incidir a atenção nas áreas iluminadas por oposição ao fundo, zonas escuras, altamente contrastadas, Rubens recorre à cor vermelha, nomeadamente a panejamentos, para deslocar a atenção para o/s “ponto/s forte/s”. É neste jogo cromático e nos pequenos detalhes formais que a cena se desenrola, não deixando indiferente o observador que percorre o olhar pelas sucessivas diagonais implícitas da composição.
Paradoxalmente podemos considerar que este quadro não é um mas, sim, dois quadros; e contrariamente a todas as regras de equilíbrio formal, de uma pintura de paisagem, este quadro foi feito na vertical provocando, intencionalmente, uma leitura dupla. Assim, a parte inferior do quadro, onde as três ninfas ajudam Neptuno a encostar a Nau rivaliza, em estatuto de primeiro plano, com o desembarque de Maria de Médicis acompanhada em todo o seu esplendor majestoso por um homem, com elmo, vestido com um manto azul bordado a ouro com flores-de-lis representando iconograficamente a França. A outra mulher, com uma coroa de torres, representa a cidade de Marselha. A deusa da Fama* anuncia com trombetas douradas o desembarque da rainha em França, tudo isto no plano superior do quadro. Contudo, Rubens apesar de ter partilhado a tendência típica da época barroca, presente nas cores exuberantes, na riqueza dos trajes, nos detalhes dourados, não deixou de reflectir o classicismo presenta em cenas mitológicas. Formalmente a composição assenta em simetrias dinâmicas apoiadas em sucessivas diagonais sublinhadas pela torção das figuras mitológicas.
Rubens imprimia à pintura um clima de triunfo mundano, e dizia: “O importante não é viver muito, mas viver bem!”.
*Fama, a deusa de 100 bocas
A Fama, divindade alada, filha de Titã e Geia, famosa na Roma Antiga, cultuada no mundo contemporâneo, era mensageira de Júpiter, tinha a cara de louca e voava à frente do seu cortejo, disseminando mentiras e verdades por suas 100 bocas. O poeta Virgílio (71 a.C.-14 d.C.) a cantou como o mais rápido dos flagelos por causa de "sua mobilidade", de onde vinham "suas forças que ela aumenta correndo. Pouco temível, a princípio, em breve sobe aos ares e , com os pés presos no chão, esconde a cabeça nas nuvens. Monstro horrível, voa de noite entre o céu e a terra e nunca dorme, de dia espreita do cimo dos palácios, no alto das torres, amedrontando as grandes cidades, semeando mentiras e verdades".
O Rapto de Europa, Peter Paul Rubens
Amores proibidos com um final feliz. A bela Europa terá sido seduzida pela opulência de um toiro que se deitou aos seus pés com ar pacífico e de um olhar ternurento. Primeiro afagou-o, depois sentou-se-lhe no dorso e depois de algumas carícias trocadas o touro empreendeu um voo por cima do oceano. A pobre princesa fenícia ficou assustadíssima. Mas não tardou a perceber que o raptor só podia ser Zeus disfarçado, pois ao longo da sua viagem verificou que das ondas emergiam peixes, tritões e sereias a acenar-lhes num cortejo nupcial. Até Posídeon apareceu agitando o seu tridente. Da união de Zeus e Europa nasceram três filhos: o valente Sarpédon, o justo Radamanto e o lendário Minos, rei de Creta.
Europa coroada deu nome a todo o território a Ocidente…
O Inferno
A carga apologética que a pintura “O Inferno” veicula, deverá ser lida numa perspectiva temporal (entre o início da Idade Média até ao Renascimento) onde o dialéctica moralista termina quase sempre num “Juízo final”. Fruto das novas organizações políticas resultante da queda do Império Romano as práticas e comportamentos sociais ancestrais, decorrentes de condutas pagãs, foram vistas como ameaça à coesão social e ao poder evangélico da Igreja Católica. Assim, o corpo e a sexualidade foram considerados como factores de desagregação da célula comunitária: a família. Esta preocupação não é nova. Poderíamos evocar o decreto do senado romano senatus consultum de Bacchanalibus[1] (186 a.C.) a proibir os Bacanais (festividades), ou, ainda, Santo Agostinho (354 d.C. a 430 d.C.), um dos principais doutores da igreja, desvalorizando o corpo: “sede de tentações, da animalidade e do pecado”. A sexualidade permanecerá associada ao sentimento de culpa, de pecado, e ficará ligado sempre à mulher. Procedente da herança greco-romana e do mito de Pandora[2], potenciado pelo pecado original da Eva (judaísmo/cristianismo), a mulher transformou-se numa ameaça à alma passando a ser um distrate ao exercício da razão. Assim, na Idade Média a mulher está intimamente ligada quer ao mal, quer ao erotismo, e será o elo entre a sensualidade e o mundo mágico. A mulher medieval passou, então, a habitar este espaço de desejo e de condenação.
A importância dada à coesão social, por parte da Igreja Católica, fez com que passasse a condenar com maior veemência comportamentos ligados ao maior dos “sete pecados mortais”: a Luxúria. Os outros pecados (Gula, Avareza, Preguiça – Ira, Inveja e a Soberba) foram hierarquizados segundo o género e a importância social; os primeiros assacados aos homens e os últimos às mulheres. Paralelamente, numa época assolada por várias calamidades como a fome, a peste negra, as guerras, reforçaram o temor; o temor divino. Não admira que a figura do Inferno e do Diabo ganhe um potencial moralizador nos indivíduos, nas famílias, nas sociedades e, por último, nas comunidades, através do medo. Nas artes o Medo ganha corpo, um corpo imagético através do risível; na literatura é a figura do Louco[3] (e a loucura) que ganha protagonismo; e na música (as letras e a poesia) foi introduzida a sátira de mãos dadas com os prazeres mundanos, que o codex buranus[4] é o principal exemplo conhecido. É toda uma imagética que se desenvolve em torno do Grotesco, do Louco e da Mulher, onde toda a cultura medievo ocidental assenta, dando ênfase, segundo Bakhtin, “nas partes do corpo em que ele se abre para o mundo exterior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz[5]”. É toda uma iconografia de índole erótico/pornográfico que se desenvolve na ornamentação escultórica (nomeadamente nos cachorrões) de algumas igrejas românicas; é no grotesco presente nas ilustrações (iluminuras) e gravuras dos livros; é no absurdo, no fantástico, no imaginário, que a pintura apresenta numa desarmonia do gosto (disgusto) ganhando acuidade na provocação do riso, do espanto, do horror e da repulsa. As pinturas como a doHieronymus Bosch e Pieter Brueguel enquadram-se dentro realismo grotesco popular, que rompe barreiras, que não é perfeito, que ultrapassa os limites, tornando-se “uma radiografia do real, desconstruindo as representações ideais, apresentando o conflito entre a cultura e a corporalidade[6]”. É uma realidade tornada verosímil, tão real e credível que o inferno passou a existir com todos os seus seres saídos do imaginário humano. É partindo destes pressupostos que olhamos para o nosso quadro, o Inferno, exposto no MNAA.
No centro do quadro um caldeirão cheio de frades, identificados pelo tipo “tonsura[7]”, deixa-nos apreensivos quanto ao destinatário a censurar. Frades franciscanos? Talvez os Goliardos (clerici vagantes) egressos das comunidades religiosas. Estes Goliardos, Frades vagabundos, de espírito transgressivo e provocador frequentavam as tavernas onde declamavam os seus poemas satíricos, denunciando os abusos da própria igreja, ou poemas eróticos bastantes ousados. Os seus dotes de oratória eram convincentes, principalmente quando dava lugar ao festim (ver: in taberna quando sumus: Carmina Burana). Talvez sejam os principais visados nesta condenação... e no Inferno (pintura) o mal está concentrado num espaço escuro, inventariado, e exibido num espectáculo de tortura quase teatral. Vários seres demoníacos habitam este espaço de castigo e tortura. Contámos oito, entre os quais dois são femininos: quiçá, os súcubos, muito populares na Idade Média, que atacavam os homens durante os seus sonhos para a prática de sexo. Os restantes demónios, os íncubos, que são geralmente descritos, na literatura medieval, como seres baixos, peludos e com rosto, por vezes, de animal. Estas figuras ganham destaque e importância iconográfica no contexto pictórico.
Deixemo-nos perder pelo olhar: três jovens penduradas de cabeça para baixo deixam a descoberto os longos cabelos afagados pelo fogo há cadência da trompa de um demónio, provavelmente o verdadeiro demónio. Enquanto tiramos algumas notas e realizamos um rápido esboço dos corpos lascivos, interrogamo-nos: será que tais personagens aparecem só para censurar o corpo e, por conseguinte, levar estes pecadores à condenação? Não. A leitura feita por qualquer humilde católico causticado pelos instintos sexuais, ligando a carne ¾ corpo ¾ não passa de ensinamentos recebidos pela Igreja que mais não fez do que exacerbar o pecado por intermédio da culpa. Um sentimento de culpa omnipresente testemunhado por um demónio sentado num trono. Sob a sua vigilância atenta, adornado de penas garridas e coroa de plumas, presencia, perversamente, o desenrolar das diversas torturas de uns tantos pecadores. À medida que vão caindo novos penitentes no inferno, por uma forma circular no canto superior direito, um outro demónio, arreado de penas, surge do lado direito carregando outro frade para o caldeirão deixando-nos perplexos em vislumbrar os misteriosos pecados cometidos. Se a figura dos frades ganha uma importância central nesta pintura, ela não deixa de evocar todos os pecados mortais representados por figuras femininas e masculinas que estão a ser torturados por entes demoníacos: o Mal. Assim, no canto superior esquerdo, três mulheres nuas penduradas numa trave, de cabeça para baixo, são queimadas lentamente sobre um fogareiro ateado pelo fole de um demónio, representando, supostamente, a ira, a inveja e a soberba. Sendo estes pecados aqueles que provêm de estados de “alma”, de condenações morais são, a maior parte das vezes, associados às mulheres.
Distribuídos com um superior realismo, encontram-se mais três figuras masculinas nuas, agrilhoadas pelo pescoço, a serem torturados por Demónios, ou figuras femininas demoníacas. Ao lado do fogareiro, objecto de suplício já referido, um Demónio enfia moedas pela boca de um nu masculino deitado; um outro, segurando um fole de carneira, despeja o conteúdo, provavelmente vinho, por um funil que conduzirá à boca do outro pecador; por último, em primeiro plano, um terceiro Demónio tortura um corpo jovem deitado em sentido inverso com a cabeça rapada e reclinada (representando a falta de dignidade e honra, característico dos que nunca se esforçaram) dando-lhe um ar sonolento e adormecido próprio daqueles que nunca experimentaram a incomodidade e o sofrimento. Cada uma delas apresenta na metodologia da tortura notas distintivas dos respectivos pecados que representam: avareza, gula e preguiça que são um dos mais censuráveis por parte da Igreja e estão associadas aos pecados dos homens.
Há medida que o tempo passa assistimos ao desenlace pecaminoso, no lado oposto (canto inferior direito), destaca-se uma jovem mulher nua, de longos e ondulados cabelos, seios gentis, reclinada sob o cotovelo esquerdo que repousa sobre no peito de um frade, mostrando o seu ócio com o qual se fomenta em grande parte o desejo. Aparece, também, presa pelo braço esquerdo a um homem, o que manifesta a contagiosa libidinosidade desta figura, provocando um aumento e uma excitação da luxúria daquele que lhe está amarrado: o amante. O plano destacado que esta figura assume no conjunto da composição quer pela representação estilística, quer pela interpretação iconográfica, resulta da Luxúria ser incitadora e a via de acesso ao Inferno constituindo a escola onde se aprendem todos os crimes e onde se perdem todas as virtudes. Empurrada por um Demónio (de aparência feminina) a Luxúria aparece como o pior dos pecados (é de salientar que o Nu - Luxúria - aparece substantivamente na composição como o Pecado) aquele que é mais difícil dominar por contraposição aos restantes pecadores representados que, esses sim, por serem encarnações humanas aparecem dominados e castigados por diferentes formas. A Luxúria encarna o desejo desenfreado que leva à destruição e à morte do próprio objecto desejado - domínio dos sentidos sobre a razão. Assim, os pecados sexuais fazem parte do mundo dos rejeitados que muito dificilmente poderiam ascender ao novo além - o Purgatório. O pecado da carne tem o seu território, tanto na terra como no Inferno e, segundo Jacques Le Goff, é “filha do Diabo e limita-se a ser prostituta que Satanás oferece a todos”. O sistema dos sete pecados mortais instaura em última instância a unificação dos pecados da carne que passa a ter um nome - O INFERNO.
Texto extraído da Tese de Mestrado (Teorias da Arte, FBAUL), 1999
1999-2015 © Luís Carvalho Barreira
[1] Em 186 a.C. o senado romano promulgou um decreto (senatus consultum de Bacchanalibus) a proibir as Bacanais, festividades em rápida propagação que, segundo Tito Lívio (c. 59 a.C. — 17 d.C.), era um culto no qual ocorriam as mais grotescas vulgaridades, bem como todo tipo de crimes e conspirações políticas nas suas sessões nocturnas. O incumprimento deste decreto, do Senado romano, proibindo estas festividades em toda Itália, com a excepção de casos particulares aprovados pelo Senado, levou à perseguição e condenação de muitos dos praticantes. Apesar do castigo ser severo, reservado aos prevaricadores, (segundo, Tito Lívio, houve mais execuções do que encarceramentos) as festas sobreviveram, principalmente, no sul de Itália.
[2] Na concepção grega, Pandora, fora um presente dado aos homens por Zeus, foi a razão de todos os males na terra.
[3] Stultifera Navis (A Nave dos Loucos), de Sebastian Brant. 1494; Navicula stulterum mulierum (1498), de Josse Bade; La Nef des Folles (c. 1500), de Jehan Drouyn
[4] Carmina Burana (Códice séc. XI-XIII). Um manuscrito de 254 poemas e textos dramáticos, datados, em sua maioria, dos séculos XI e XII, sendo alguns do século XIII. As peças são, em geral, picantes, irreverentes e satíricas.
· Carmina moralia et satirica (1-55), de caráter satírico e moral;
· Carmina veris et amoris (56-186), cantos primaveris e de amor;
· Carmina lusorum et potatorum (187-228), cantos orgiásticos e festivos;
· Carmina divina, de conteúdo moralístico-sacro (parte que provavelmente foi adicionada já no início do século XIV).
· Ludi, jogos religiosos.
· Supplementum, suplemento com diferentes versões dos carmina.
[5] BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no renascimento: O Contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 5 ed. São Paulo: Annablume, 2002. Pag. 23.
[6] SODRÉ, 2002. Pág. 60
[7] De acordo com a Enciclopédia Católica existiam três tipos diferentes, cada um ligado a um apóstolo específico: o romano, ou o de São Pedro, quando a parte de cima da cabeça é raspada deixando apenas um círculo de cabelo em baixo e na frente; o grego, ou de São Paulo, quando toda a cabeça é raspada; o celta, ou de São João, quando apenas uma parte de cabelo é raspada na frente da cabeça.
[1] Muitos pintores, discípulos e seguidores, inspiravam-se, ou copiavam, Bosch dada a crescente procura e popularidade das suas obras. O rei Filipe II guardava no seu acervo 30 obras de Bosch.
Dia da mãe
"Mãe de Deus" ou "Virgem Maria"
Há muito que o culto Mariano se institucionalizou entre os católicos. Para ser mais preciso desde o primeiro Concílio de Éfeso onde a “Mãe de Deus”, defendida pelos Nestorianos, passou a ser “Virgem Maria” retirando-lhe o lado humano -mortal. Porém, durante muitos anos (séculos) a Virgem Maria foi representada mais como mãe, e mãe de todos nós, do que de uma santidade se tratasse. O lado humano está presente na dádiva, no aconchego junto ao regaço, no carinho posto no olhar e na gentileza das mãos delicadas protegendo o menino – o filho. Despojada de qualquer bem terreno, Maria cobre a cabeça com um véu ocultando os longos cabelos afastando qualquer olhar concupiscente. Quando olhamos para a “Mãe de Deus” presenciamos as nossas mães…
Em Roma, na catacumba de Priscila, encontra-se uma pintura quase apagada pelo tempo representando a Virgem Maria amamentando o Menino Jesus no colo. Nesta imagem do século II poderemos ver o profeta Balaão a apontar para uma estrela pintada mais no alto da cabeça da mulher. O menino nu apoiado nos braços da mãe poderá ser a primeira representação da Virgem Maria, conhecida.
Hoje, dia 8 de Dezembro, é marcado por duas celebrações cristãs de significados antagónicos: a evocação popular da Nossa Senhora da Concepção (Conceição) celebrando o arquétipo da maternidade, e a celebração da Nossa Senhora sem Mácula (Imaculada) dogma introduzido no século XII, embora rejeitado por São Tomás de Aquino entre outros teólogos, que foi sustentado e aceite em 1854 pelo Papa Bento XIV.
A Senhora sem mácula é a nossa mãe.
(*o dia da mãe foi durante muito tempo comemorado no dia 8 de dezembro. É tradição montar a árvore de Natal e enfeitar a casa no dia 8 de dezembro, dia de N. Sra. da Conceição)
Texto © Luís Barreira, 1997
Judith Jans Leyster
Judith Jans Leyster (1609-1660), pintora flamenga, foi a primeira pintora a entrar na Guilda de São Lucas.
Goya, La Maja desnuda, 1800
La Maja desnuda de Francisco Goya
Os mistérios de “La Maja desnuda, c.1800” uma “obra menor” no percurso artístico de Francisco Goya?!
Goya, aos dezassete anos, transferiu-se para Madrid onde estudou com Anton Raphael Mengs, pintor da corte espanhola. Depois de duas tentativas (1763-66) foi recusada a entrada na academia de Belas Artes. Mais tarde, em 25 de abril de 1785, depois da morte de Carlos III e da coroação de Carlos IV, foi nomeado "Primeiro Pintor da Câmara do Rei", tornando-se o pintor oficial do monarca e da sua família. É com este estatuto que Goya se torna num retratista da corte e da nobreza espanhola acompanhando o gosto do academicismo vigente. Goya realizou inúmeros retratos e, entre muitos, destacamos o da figura de Manuel Godoy representado, ao jeito neoclássico, como vencedor da “Guerra das laranjas” entre espanhóis e portugueses sem que tivesse grande oposição por parte dos seus beligerantes.
Quem foi Manuel Godoy?
Manuel Godoy foi primeiro-ministro de Carlos IV, Rei de Espanha. Durante as invasões francesas as suas posições dúbias tornaram-no no joguete de Napoleão acalentando a ideia de poder ser príncipe do sul de Portugal (Alentejo e Algarve), promessa feita por parte de Napoleão Bonaparte no Tratado de Fontainebleau (secreto, 1807).
A ascensão de Manuel Godoy na corte espanhola deveu-se muito ao romance que manteve com Maria Luísa de Parma, esposa de Carlos IV.
Godoy casou-se com Maria Teresa de Borbón y Villabriga, 1797 e divorciaram-se em 1808. Todavia, manteve um relacionamento escaldante com a andaluza Pepita Tudó (1779-1869) de 17 anos com quem viria a casar depois da morte de sua mulher. Feita condessa de Castillofiel, Pepita Tudó terá sido a modelo de La Maja desnuda de Goya (Tese defendida por Robert Hughes no livro Goya, 2003).
Mas como é que podemos enquadrar a pintura erótica de La Maja desnuda (única no percurso artístico de Goya) no movimento romântico?
A decadência das monarquias absolutistas – Ancien Régime – promovera o lado hedonista e intimista da nobreza europeia. O culto artístico no final do Barroco (O Rococó) era de um naturalismo erótico, muitas das vezes camuflados em histórias mitológicas. Os desejos dos seus promotores alicerçados na futilidade das suas ações, dos encontros amorosos e na sensualidade de uma vida ociosa, eram o enquadramento da sociedade nobre e burguesa do final do século XVIII. Assim, a encomenda feita de Manuel Godoy a Goya de um nu deitado enquadra-se no espírito da arte do Rococó onde os “Boucher’s”, os “Fragonard’s”, tinham lugar de destaque nos aposentos dos seus encomendadores.
La Maja desnuda… e mais tarde La Maja vestida serviram de ostentação privada na galeria do seu ministério a par de outras obras que Godoy tinha no seu gabinete. Segundo relato de Gonzalez de Sepúlveda (referência tirada da página do Museu do Prado), possuía «vários quadros que poderiam ser observados: Vénus ao espelho de Velasquez, Vénus de Ticiano e uma (vénus) de Goya».
Esta obra de Goya, La Maja desnuda, (que inicialmente deu pelo nome de Gitana, conforme descrito no inventário do palácio Godoy) ultrapassou todos os limites representativos do nu, do belo clássico enquanto metáfora do ideal de beleza. O nu de La Maja desnuda é carnal, é concupiscente, oferece-se ao observador deixando a descoberto todo o corpo nos seus mais íntimos detalhes. É provocante e ao mesmo tempo vulnerável. Não obstante, a nudez de La Maja não se esconde atrás de nenhuma divindade, é identificável, tem nome: Pepita Tudó. A vulnerabilidade da amante levou Manuel Godoy a encomendar outra pintura a Goya, La Maja vestida, com as mesmas dimensões, quiçá, para colocar no verso da primeira e assim poder alternar/ocultar a menos conveniente.
Esta pintura utiliza uma paleta de cores tonais contrastada pelo claro/escuro aqui reforçado pela ausência de outros elementos formais que possam alterar a dinâmica da composição. Um fundo quase monocromático intensifica a vulnerabilidade do nu reclinado com as mãos atrás da cabeça. Ao realismo retratado do nu, incluindo as zonas erógenas (nunca antes realizado), é contraposto uma maior expressividade dada ao tratamento do drapeado, do canapé e dos tecidos envolventes. Pinceladas rápidas, sobrepostas, confere-lhe alguma modernidade plástica afastando a pintura de Goya do neoclassicismo e do romantismo da época.
“La Maja Desnuda” pintada ainda antes de 1800 tornar-se-á na pintura mais controversa no universo artístico de Goya arrastando, ainda hoje, milhares de pessoas ao Museu do Prado, em Madrid, onde está exposta desde 1901.
A genialidade de Goya.
Goya, depois de abandonar a Academia de Belas Artes, após críticas à instituição de coartar a liberdade criativa dos artistas, refugia-se na “Quinta do Surdo”, a casa de campo que adquiriu em 1819, onde pintou as mais escuras e misteriosas pinturas.
Uma doença grave (1792) e as invasões napoleónicas deixaram um Goya revoltado com a ganância de alguns; amargurado com o desrespeito pelo sofrimento dos mais desfavorecidos; indignado com os comportamentos insanos dos seres humanos. Assim, entre os anos de 1810 e 1814, produziu a sua “obra maior”, começada com uma série de gravuras (Los Desastres de la Guerra) e desenvolvida numa pintura denunciando os horrores da guerra.
Estas pinturas utilizando cores fortes, contrastes herdados do barroco (claro/escuro), pinceladas rápidas em velaturas energicamente sobrepostas conferem expressão e dramaticidade às figuras reveladas: olhares desesperados, gritos, rostos disformes, gestos que traduzem, não só um imaginário, mas o mal-estar do autor com a realidade social espanhola. “Os fuzilamentos de três de Maio, 1808” será, talvez, a obra icónica conferindo à pintura de Goya uma modernidade dentro do contexto do movimento romântico. Goya experimenta uma linguagem plástica de índole expressionista (já abordada, de certa maneira, em El Greco e em Rembrandt) e depois prosseguida por William Turner acabando por ser assumida pelos movimentos expressionistas no período de transição do século XIX/XX.
Texto de Luís Barreira ©2005-2017
entropia
Nos anos 80 entre o mergulho no caos e o chafurdar na desordem, a entropia da arte encerrava em si um movimento de redescoberta da harmonia. O expressionismo gestual da pintura, que rompe em sucessivas camadas de tinta, dá lugar ao rasgar de espaços fruto do reenquadramento da máquina fotográfica. A fotografia como veículo, instrumento, das artes plásticas.
Rembrandt, Tempestade no Mar da Galileia, 1633.
Esta pintura continua desaparecida depois do roubo efectuado no Museu Isabella Stewart Gardner em 1990.