"Caridade romana"

Peter Paul Rubens, Pero e Cimon, 1630.Óleo s/tela, 155x190 cmRijksmuseum, Amsterdão

Peter Paul Rubens, Pero e Cimon, 1630.

Óleo s/tela, 155x190 cm

Rijksmuseum, Amsterdão

Apresentei esta imagem aos meus alunos, como forma de provocação, pedindo-lhes que analisassem esta pintura, isto é, a sua interpretação iconográfica subjacente; em primeiro lugar a mensagem (tema), depois o autor, a época e a sua envolvência sociocultural. Alertei-os que olhar não é ver. E nem tudo o que parece é. Mas o Carlos, o mais afoito, sem tento na língua expressou o nível mais básico de entendimento: “mamar na chucha”!

Deu-me a “deixa” pretendida para que pudesse explanar a história exemplar de uma filha (Pero) que secretamente amamenta o pai (Cimon) depois que ele ser preso e condenado à morte por inanição. O antigo historiador romano Valerius Maximus regista este acontecimento como um grande acto de piedade filial e honra romana em De FACTIS Dictisque Memorabilibus, Libri IX: conhecida por Caridade romana. Entre os romanos o tema não era desconhecido, já os etruscos cultivavam o mito de Juno a amamentar o adulto Hércules sublinhando o valor altruístico.

Regressados ao quadro (pintura) de Peter Paul Rubens, retirada toda a carga erótica atribuída pelo aluno, foi mais fácil descodificar toda a acção: Pero é descoberta pelos guardas (no canto superior direito) a amamentar Cimon (pai) agrilhoado no cárcere. O amor deste acto impressiona a justiça ordenando a sua libertação.

A Consequência da Guerra, 1637-38

Peter Paul Rubens A Consequência da Guerra, 1637-38 Óleo s/tela 206 cm × 345 cm Palácio Pitti, Florença

Peter Paul Rubens
A Consequência da Guerra, 1637-38
Óleo s/tela 206 cm × 345 cm
Palácio Pitti, Florença

Rubens,

Detentor de um estilo próprio, Rubens arrebata, nos seus quadros cheios de cenas complexas, cores mais suaves revelando detalhes pormenorizados ao contrário dos seus congéneres italianos. O seu talento foi rapidamente reconhecido alcançando um lugar de destaque no mundo das artes do século XVII (BARROCO). Contratado pelo duque de Mântua, Vicenzo Gonzaga, para quem passou a trabalhar com dedicação total por um período de tempo significativo, foi conquistando prestígio na corte ganhando influência com pessoas importantes e poderosas. Homem de confiança do duque de Mântua desempenhou várias missões diplomáticas em Espanha e em Itália.

Rubens, que nunca deixou de pintar, vivenciou os horrores da guerra (Guerra dos 30 anos, 1618-1648), uma série de conflitos travados sobretudo no centro da Europa, actual Alemanha, envolvendo vários estados. Inicialmente estes conflitos estavam enraizados numa disputa de cariz religioso entre Protestantes e Católicos acentuando os antagonismos das duas facções evoluindo rapidamente para contendas entre os vários principados germânicos. O Sacro Império Romano-Germânico,  católico, instrumento político da família dos Habsburgos, perdia influência para a Alemanha Luterana e via-se ameaçada pelo poder crescente dos Suecos e, principalmente, dos Franceses. À medida que o conflito se desenhava as tensões religiosas agravavam-se na Alemanha, reinado de Rodolfo II, período durante o qual foram destruídas muitas igrejas protestantes. Este conflito devastador, talvez, o maior na história europeia, começou com uma disputa religiosa, dita "Palatino-Boémia" (1618-1625), numa segunda fase o conflito assumiu um carácter internacional numa altura em que os estados germânicos protestantes buscavam ajuda no exterior contra os católicos; o envolvimento dinamarquês (1625-1629), seguida da intervenção sueca (1630), terminou com o envolvimento dos franceses (1635-1648) agora numa luta pela hegemonia na Europa Ocidental, travada pelos Habsburgos e a corte de Luís XIV, Rei Sol, recentemente empossado (1643).

É neste contexto histórico que Rubens pintou “Consequências da Guerra, 1637-38”. Numa pincelada gestual imprimindo movimento às formas são revelados todos os detalhes. Marte, deus romano da guerra, que é a figura principal apresenta-se de couraça e capacete empunhando a espada, enfatizado por uma capa vermelha, espezinhando um livro e um desenho: símbolo da violência que a guerra impõe à cultura de qualquer povo. A destruição protagonizada por Marte é impedida por Vénus, deusa do amor, atraindo a atenção de todos aqueles que sofrem os horrores da guerra. Vénus esforça-se por conter Marte e manter a paz coadjuvada por Cupido e Amors –cupido romano- (Omnia vincit amor et nos cedamus amori) – o amor tudo vence, numa alusão a Vergílio (éclogas X). No chão podemos ver as setas e um ramo de oliveira que quando juntas ao caduceu significam concórdia. Vénus é representada nua, visão clássica, suplicando melancolicamente a Marte, num derradeiro esforço para manter a paz.

Se há características formais que definem Rubens é a representação feminina, nomeadamente os nus. Vénus com os rolos e colares preciosos adornando o penteado associado à nudez manifesta em formas roliças dão configuração à mulher “rubeniana”. (Ver “O Desembarque em Marselha" de Maria de Médicis, “O Julgamento de Páris”, “As três Graças”, “Vénus ao Espelho”, etc.).

Numa paleta harmónica, os contrastes diferenciam-se dos pintores tridentinos atingindo uma atmosfera pictórica que fará escola no norte europeu.

É nesta dicotomia (Guerra e Paz) que a cena se desenrola: do lado direito a Fúria de Alecto (encarnação grega e romana da raiva: ira implacável ou incessante*) arrasta Marte para o seu propósito destrutivo erguendo uma tocha. Nas trevas podemos observar dois monstros simbolizando os efeitos da guerra, a Pestilência e a Fome, acentuando o dramatismo onde põem em causa a Harmonia representada pela mulher segurando em vão o alaúde, assim como o Arquitecto desesperado agarrando o compasso. No âmago deste caos uma mulher tenta salvar o filho.

Do lado esquerdo da pintura, o Templo de Janus –deus da mudança- aparece com a porta entreaberta.

Numa referência aos poemas de Ovídio, Fasti, era usual na Roma Antiga, o Templo de Janus ser fechado para indicar tempos de paz, enquanto uma porta aberta indicava guerra.

Toda a composição se desenrola num grande eixo (diagonal descendente, da esquerda para a direita) e deixei para o fim a mulher de negro, Europa, representando o mundo cristão que se digladiava infringindo o maior dos sofrimentos aos seus povos.


*Eneida de Virgílio e Inferno de Dante

Peter Paul Rubens, Desembarque em Marselha, 1622-25

Peter Paul Rubens Desembarque em Marselha, 1622-25 Óleo s/tela 394 × 295 cm Museu do Louvre

Peter Paul Rubens
Desembarque em Marselha, 1622-25
Óleo s/tela 394 × 295 cm
Museu do Louvre

Maria de Médicis, a grande banqueira.

A família Médicis era credora de uma avultada quantia da coroa francesa (600.000 coroas). Houve contactos entre as duas famílias. E após algumas diligências diplomáticas seguiram-se trocas de cartas de amor, envio de retratos a óleo autenticando quão bela era a donzela. As confidências partilhadas deixaram Henrique IV, Rei de França, rendido aos dotes de Maria de Médicis.

Rubens retrata “O desembarque em Marselha” (data da pintura: 1621-1625) da futura rainha de França, Maria de Médicis, em 03 de Novembro de 1600, com toda a pompa e circunstância: os gestos, as roupas, os detalhes de uma paleta de cores cuidadosamente distribuída traduz a excitação e a agitação provocado por tal acontecimento.

Ao invés da tradicional composição plástica barroca, de fazer incidir a atenção nas áreas iluminadas por oposição ao fundo, zonas escuras, altamente contrastadas, Rubens recorre à cor vermelha, nomeadamente a panejamentos, para deslocar a atenção para o/s “ponto/s forte/s”. É neste jogo cromático e nos pequenos detalhes formais que a cena se desenrola, não deixando indiferente o observador que percorre o olhar pelas sucessivas diagonais implícitas da composição.

Paradoxalmente podemos considerar que este quadro não é um mas, sim, dois quadros; e contrariamente a todas as regras de equilíbrio formal, de uma pintura de paisagem, este quadro foi feito na vertical provocando, intencionalmente, uma leitura dupla. Assim, a parte inferior do quadro, onde as três ninfas ajudam Neptuno a encostar a Nau rivaliza, em estatuto de primeiro plano, com o desembarque de Maria de Médicis acompanhada em todo o seu esplendor majestoso por um homem, com elmo, vestido com um manto azul bordado a ouro com flores-de-lis representando iconograficamente a França. A outra mulher, com uma coroa de torres, representa a cidade de Marselha. A deusa da Fama* anuncia com trombetas douradas o desembarque da rainha em França, tudo isto no plano superior do quadro. Contudo, Rubens apesar de ter partilhado a tendência típica da época barroca, presente nas cores exuberantes, na riqueza dos trajes, nos detalhes dourados, não deixou de reflectir o classicismo presenta em cenas mitológicas. Formalmente a composição assenta em simetrias dinâmicas apoiadas em sucessivas diagonais sublinhadas pela torção das figuras mitológicas.

Rubens imprimia à pintura um clima de triunfo mundano, e dizia: “O importante não é viver muito, mas viver bem!”.


*Fama, a deusa de 100 bocas

A Fama, divindade alada, filha de Titã e Geia, famosa na Roma Antiga, cultuada no mundo contemporâneo, era mensageira de Júpiter, tinha a cara de louca e voava à frente do seu cortejo, disseminando mentiras e verdades por suas 100 bocas. O poeta Virgílio (71 a.C.-14 d.C.) a cantou como o mais rápido dos flagelos por causa de "sua mobilidade", de onde vinham "suas forças que ela aumenta correndo. Pouco temível, a princípio, em breve sobe aos ares e , com os pés presos no chão, esconde a cabeça nas nuvens. Monstro horrível, voa de noite entre o céu e a terra e nunca dorme, de dia espreita do cimo dos palácios, no alto das torres, amedrontando as grandes cidades, semeando mentiras e verdades".

O Inferno

Autor desconhecido, O Inferno, século XVI.Óleo sobre madeira de carvalho, 119X217.5 cm.Museu Nacional de Arte AntigaDe autor desconhecido. É uma pintura a óleo em suporte de madeira de carvalho. Proveniente de Convento extinto em 1834. Esta pintura …

Autor desconhecido, O Inferno, século XVI.

Óleo sobre madeira de carvalho, 119X217.5 cm.

Museu Nacional de Arte Antiga

De autor desconhecido. É uma pintura a óleo em suporte de madeira de carvalho. Proveniente de Convento extinto em 1834. Esta pintura foi já atribuída, por vários historiadores, a Jorge Afonso ou ao Mestre da Lourinhã. Apontamos para outras geografias. Seguramente obra do início do século XVI e dado os materiais e técnicas utilizadas, a modelação formal e estética das figuras, na representação da perspectiva aérea (colocando o observador num ponto de vista superior), assim como toda a iconografia apresentada parece-nos mais próximas da pintura flamenga[*] da altura (transição do século XV/XVI).


[*] Muitos pintores, discípulos e seguidores, inspiravam-se, ou copiavam, os grandes mestres da pintura flamenga dada a crescente procura e popularidade das suas obras. O rei Filipe II (Filipe I de Portugal) guardava no seu acervo 30 obras de Bosch.

A carga apologética que a pintura “O Inferno” veicula, deverá ser lida numa perspectiva temporal (entre o início da Idade Média até ao Renascimento) onde o dialéctica moralista termina quase sempre num “Juízo final”. Fruto das novas organizações políticas resultante da queda do Império Romano as práticas e comportamentos sociais ancestrais, decorrentes de condutas pagãs, foram vistas como ameaça à coesão social e ao poder evangélico da Igreja Católica. Assim, o corpo e a sexualidade foram considerados como factores de desagregação da célula comunitária: a família. Esta preocupação não é nova. Poderíamos evocar o decreto do senado romano senatus consultum de Bacchanalibus[1] (186 a.C.) a proibir os Bacanais (festividades), ou, ainda, Santo Agostinho (354 d.C. a 430 d.C.), um dos principais doutores da igreja, desvalorizando o corpo: “sede de tentações, da animalidade e do pecado”. A sexualidade permanecerá associada ao sentimento de culpa, de pecado, e ficará ligado sempre à mulher. Procedente da herança greco-romana e do mito de Pandora[2], potenciado pelo pecado original da Eva (judaísmo/cristianismo), a mulher transformou-se numa ameaça à alma passando a ser um distrate ao exercício da razão. Assim, na Idade Média a mulher está intimamente ligada quer ao mal, quer ao erotismo, e será o elo entre a sensualidade e o mundo mágico. A mulher medieval passou, então, a habitar este espaço de desejo e de condenação. 

A importância dada à coesão social, por parte da Igreja Católica, fez com que passasse a condenar com maior veemência comportamentos ligados ao maior dos “sete pecados mortais”: a Luxúria. Os outros pecados (Gula, Avareza, Preguiça – Ira, Inveja e a Soberba) foram hierarquizados segundo o género e a importância social; os primeiros assacados aos homens e os últimos às mulheres. Paralelamente, numa época assolada por várias calamidades como a fome, a peste negra, as guerras, reforçaram o temor; o temor divino. Não admira que a figura do Inferno e do Diabo ganhe um potencial moralizador nos indivíduos, nas famílias, nas sociedades e, por último, nas comunidades, através do medo. Nas artes o Medo ganha corpo, um corpo imagético através do risível; na literatura é a figura do Louco[3] (e a loucura) que ganha protagonismo; e na música (as letras e a poesia) foi introduzida a sátira de mãos dadas com os prazeres mundanos, que o codex buranus[4] é o principal exemplo conhecido. É toda uma imagética que se desenvolve em torno do Grotesco, do Louco e da Mulher, onde toda a cultura medievo ocidental assenta, dando ênfase, segundo Bakhtin, “nas partes do corpo em que ele se abre para o mundo exterior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz[5]”. É toda uma iconografia de índole erótico/pornográfico que se desenvolve na ornamentação escultórica (nomeadamente nos cachorrões) de algumas igrejas românicas; é no grotesco presente nas ilustrações (iluminuras) e gravuras dos livros; é no absurdo, no fantástico, no imaginário, que a pintura apresenta numa desarmonia do gosto (disgusto) ganhando acuidade na provocação do riso, do espanto, do horror e da repulsa. As pinturas como a doHieronymus Bosch e Pieter Brueguel enquadram-se dentro realismo grotesco popular, que rompe barreiras, que não é perfeito, que ultrapassa os limites, tornando-se “uma radiografia do real, desconstruindo as representações ideais, apresentando o conflito entre a cultura e a corporalidade[6]”. É uma realidade tornada verosímil, tão real e credível que o inferno passou a existir com todos os seus seres saídos do imaginário humano. É partindo destes pressupostos que olhamos para o nosso quadro, o Inferno, exposto no MNAA.

No centro do quadro um caldeirão cheio de frades, identificados pelo tipo “tonsura[7]”, deixa-nos apreensivos quanto ao destinatário a censurar. Frades franciscanos? Talvez os Goliardos (clerici vagantes) egressos das comunidades religiosas. Estes Goliardos, Frades vagabundos, de espírito transgressivo e provocador frequentavam as tavernas onde declamavam os seus poemas satíricos, denunciando os abusos da própria igreja, ou poemas eróticos bastantes ousados. Os seus dotes de oratória eram convincentes, principalmente quando dava lugar ao festim (ver: in taberna quando sumus: Carmina Burana). Talvez sejam os principais visados nesta condenação... e no Inferno (pintura) o mal está concentrado num espaço escuro, inventariado, e exibido num espectáculo de tortura quase teatral. Vários seres demoníacos habitam este espaço de castigo e tortura. Contámos oito, entre os quais dois são femininos: quiçá, os súcubos, muito populares na Idade Média, que atacavam os homens durante os seus sonhos para a prática de sexo. Os restantes demónios, os íncubos, que são geralmente descritos, na literatura medieval, como seres baixos, peludos e com rosto, por vezes, de animal. Estas figuras ganham destaque e importância iconográfica no contexto pictórico.

Deixemo-nos perder pelo olhar: três jovens penduradas de cabeça para baixo deixam a descoberto os longos cabelos afagados pelo fogo há cadência da trompa de um demónio, provavelmente o verdadeiro demónio. Enquanto tiramos algumas notas e realizamos um rápido esboço dos corpos lascivos, interrogamo-nos: será que tais personagens aparecem só para censurar o corpo e, por conseguinte, levar estes pecadores à condenação? Não. A leitura feita por qualquer humilde católico causticado pelos instintos sexuais, ligando a carne ¾ corpo ¾ não passa de ensinamentos recebidos pela Igreja que mais não fez do que exacerbar o pecado por intermédio da culpa. Um sentimento de culpa omnipresente testemunhado por um demónio sentado num trono. Sob a sua vigilância atenta, adornado de penas garridas e coroa de plumas, presencia, perversamente, o desenrolar das diversas torturas de uns tantos pecadores. À medida que vão caindo novos penitentes no inferno, por uma forma circular no canto superior direito, um outro demónio, arreado de penas, surge do lado direito carregando outro frade para o caldeirão deixando-nos perplexos em vislumbrar os misteriosos pecados cometidos. Se a figura dos frades ganha uma importância central nesta pintura, ela não deixa de evocar todos os pecados mortais representados por figuras femininas e masculinas que estão a ser torturados por entes demoníacos: o Mal. Assim, no canto superior esquerdo, três mulheres nuas penduradas numa trave, de cabeça para baixo, são queimadas lentamente sobre um fogareiro ateado pelo fole de um demónio, representando, supostamente, a ira, a inveja e a soberba. Sendo estes pecados aqueles que provêm de estados de “alma”, de condenações morais são, a maior parte das vezes, associados às mulheres.

Distribuídos com um superior realismo, encontram-se mais três figuras masculinas nuas, agrilhoadas pelo pescoço, a serem torturados por Demónios, ou figuras femininas demoníacas. Ao lado do fogareiro, objecto de suplício já referido, um Demónio enfia moedas pela boca de um nu masculino deitado; um outro, segurando um fole de carneira, despeja o conteúdo, provavelmente vinho, por um funil que conduzirá à boca do outro pecador; por último, em primeiro plano, um terceiro Demónio tortura um corpo jovem deitado em sentido inverso com a cabeça rapada e reclinada (representando a falta de dignidade e honra, característico dos que nunca se esforçaram) dando-lhe um ar sonolento e adormecido próprio daqueles que nunca experimentaram a incomodidade e o sofrimento. Cada uma delas apresenta na metodologia da tortura notas distintivas dos respectivos pecados que representam: avareza, gula e preguiça que são um dos mais censuráveis por parte da Igreja e estão associadas aos pecados dos homens. 

Há medida que o tempo passa assistimos ao desenlace pecaminoso, no lado oposto (canto inferior direito), destaca-se uma jovem mulher nua, de longos e ondulados cabelos, seios gentis, reclinada sob o cotovelo esquerdo que repousa sobre no peito de um frade, mostrando o seu ócio com o qual se fomenta em grande parte o desejo. Aparece, também, presa pelo braço esquerdo a um homem, o que manifesta a contagiosa libidinosidade desta figura, provocando um aumento e uma excitação da luxúria daquele que lhe está amarrado: o amante. O plano destacado que esta figura assume no conjunto da composição quer pela representação estilística, quer pela interpretação iconográfica, resulta da Luxúria ser incitadora e a via de acesso ao Inferno constituindo a escola onde se aprendem todos os crimes e onde se perdem todas as virtudes. Empurrada por um Demónio (de aparência feminina) a Luxúria aparece como o pior dos pecados (é de salientar que o Nu - Luxúria - aparece substantivamente na composição como o Pecado) aquele que é mais difícil dominar por contraposição aos restantes pecadores representados que, esses sim, por serem encarnações humanas aparecem dominados e castigados por diferentes formas. A Luxúria encarna o desejo desenfreado que leva à destruição e à morte do próprio objecto desejado - domínio dos sentidos sobre a razão. Assim, os pecados sexuais fazem parte do mundo dos rejeitados que muito dificilmente poderiam ascender ao novo além - o Purgatório. O pecado da carne tem o seu território, tanto na terra como no Inferno e, segundo Jacques Le Goff, é “filha do Diabo e limita-se a ser prostituta que Satanás oferece a todos”. O sistema dos sete pecados mortais instaura em última instância a unificação dos pecados da carne que passa a ter um nome - O INFERNO. 

 

 Texto extraído da Tese de Mestrado (Teorias da Arte, FBAUL), 1999

1999-2015 © Luís Carvalho Barreira


[1] Em 186 a.C. o senado romano promulgou um decreto (senatus consultum de Bacchanalibus) a proibir as Bacanais, festividades em rápida propagação que, segundo Tito Lívio (c. 59 a.C. — 17 d.C.), era um culto no qual ocorriam as mais grotescas vulgaridades, bem como todo tipo de crimes e conspirações políticas nas suas sessões nocturnas. O incumprimento deste decreto, do Senado romano, proibindo estas festividades em toda Itália, com a excepção de casos particulares aprovados pelo Senado, levou à perseguição e condenação de muitos dos praticantes. Apesar do castigo ser severo, reservado aos prevaricadores, (segundo, Tito Lívio, houve mais execuções do que encarceramentos) as festas sobreviveram, principalmente, no sul de Itália.

[2] Na concepção grega, Pandora, fora um presente dado aos homens por Zeus, foi a razão de todos os males na terra.

[3] Stultifera Navis (A Nave dos Loucos), de Sebastian Brant. 1494; Navicula stulterum mulierum (1498), de Josse Bade; La Nef des Folles (c. 1500), de Jehan Drouyn

[4] Carmina Burana (Códice séc. XI-XIII). Um manuscrito de 254 poemas e textos dramáticos, datados, em sua maioria, dos séculos XI e XII, sendo alguns do século XIII.  As peças são, em geral, picantes, irreverentes e satíricas.

·     Carmina moralia et satirica (1-55), de caráter satírico e moral;

·     Carmina veris et amoris (56-186), cantos primaveris e de amor;

·     Carmina lusorum et potatorum (187-228), cantos orgiásticos e festivos;

·     Carmina divina, de conteúdo moralístico-sacro (parte que provavelmente foi adicionada já no início do século XIV).

·     Ludi, jogos religiosos.

·     Supplementum, suplemento com diferentes versões dos carmina.

[5] BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no renascimento: O Contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 5 ed. São Paulo: Annablume, 2002. Pag. 23.

[6] SODRÉ, 2002. Pág. 60

[7] De acordo com a Enciclopédia Católica existiam três tipos diferentes, cada um ligado a um apóstolo específico: o romano, ou o de São Pedro, quando a parte de cima da cabeça é raspada deixando apenas um círculo de cabelo em baixo e na frente; o grego, ou de São Paulo, quando toda a cabeça é raspada; o celta, ou de São João, quando apenas uma parte de cabelo é raspada na frente da cabeça.

[1] Muitos pintores, discípulos e seguidores, inspiravam-se, ou copiavam, Bosch dada a crescente procura e popularidade das suas obras. O rei Filipe II guardava no seu acervo 30 obras de Bosch.

Dia da mãe

"Mãe de Deus" ou "Virgem Maria"

Masolino da Panicale (1383-1447)Madonna dell'umiltà c. 1423

Masolino da Panicale (1383-1447)

Madonna dell'umiltà c. 1423

Há muito que o culto Mariano se institucionalizou entre os católicos. Para ser mais preciso desde o primeiro Concílio de Éfeso onde a “Mãe de Deus”, defendida pelos Nestorianos, passou a ser “Virgem Maria” retirando-lhe o lado humano -mortal. Porém, durante muitos anos (séculos) a Virgem Maria foi representada mais como mãe, e mãe de todos nós, do que de uma santidade se tratasse. O lado humano está presente na dádiva, no aconchego junto ao regaço, no carinho posto no olhar e na gentileza das mãos delicadas protegendo o menino – o filho. Despojada de qualquer bem terreno, Maria cobre a cabeça com um véu ocultando os longos cabelos afastando qualquer olhar concupiscente. Quando olhamos para a “Mãe de Deus” presenciamos as nossas mães…

II_Catacumba_Priscila_Roma.jpg

Em Roma, na catacumba de Priscila, encontra-se uma pintura quase apagada pelo tempo representando a Virgem Maria amamentando o Menino Jesus no colo. Nesta imagem do século II poderemos ver o profeta Balaão a apontar para uma estrela pintada mais no alto da cabeça da mulher. O menino nu apoiado nos braços da mãe poderá ser a primeira representação da Virgem Maria, conhecida.

Hoje, dia 8 de Dezembro, é marcado por duas celebrações cristãs de significados antagónicos: a evocação popular da Nossa Senhora da Concepção (Conceição) celebrando o arquétipo da maternidade, e a celebração da Nossa Senhora sem Mácula (Imaculada) dogma introduzido no século XII, embora rejeitado por São Tomás de Aquino entre outros teólogos, que foi sustentado e aceite em 1854 pelo Papa Bento XIV.

A Senhora sem mácula é a nossa mãe.

(*o dia da mãe foi durante muito tempo comemorado no dia 8 de dezembro. É tradição montar a árvore de Natal e enfeitar a casa no dia 8 de dezembro, dia de N. Sra. da Conceição)


Texto © Luís Barreira, 1997

 

O Divino e a Fertilidade

O Corpo pré-histórico – o Divino e a fertilidade.

E tudo terá começado – provavelmente – quando o Homo sapiens encontra na terra e na sua fertilidade a matéria mais directa da sua existência, muito antes da revolução agrícola (c. 10000 a.C.). Estamos a falar de um período de vários milhares de anos em que o Homem vai gradualmente deixar de ter uma vida nómada para se fixar e “domesticar” a natureza. Assiste a ciclos de vida que se regeneram segundo ritmos temporais constantes; repara na mudança do dia para a noite; observa o movimento dos astros (principalmente o Sol); presencia as estações do ano e em certos períodos anuais colhe os alimentos indispensáveis à sua vida. A noção de tempo é circular, finita. Finito em ciclos de vida que se renovam todos os anos. Uma realidade entendível porque é observável e partilhável através do conhecimento empírico quiçá herdado do saber dos seus ancestrais ou da partilha da comunidade onde está inserido. Esta noção de tempo esbarra quando tem consciência da finitude da sua existência: o desconhecimento e a morte. O desconhecimento será combatido paulatinamente pela experiência adquirida, pela ambição do saber e pelo entendimento de tudo aquilo que o envolve. A morte acrescenta uma nova unidade de tempo: o infinito, o absoluto, o sobrenatural, o divino. Esta ideia de absoluto, insondável mesmo nos dias de hoje, levá-lo-á a entregar-se ao livre arbítrio de entidades sobrenaturais: o divino. Uma realidade especulativa e transcendental. Esta dual dimensão entre a matéria e o transcendente; entre o corpo, o seu corpo, e o divino; entre o conhecimento e a morte; fará com que os objectos produzidos reflictam esta interacção comunicacional entre ele e a ideia de Absoluto. E o único motivo que o homem encontra para se poder expressar é com o seu corpo. Porque o corpo encerra em si todo o mistério existencial e manifesta-se segundo valores formais conhecíveis que lhe diz respeito.

O corpo, enquanto matéria, será o objecto eleito para enfatizar a ideia de absoluto entre a criação e o transcendente[1]. O homem conceberá a metafísica segundo modelos de uma realidade vivida. E é o corpo e com o corpo interagindo com a Natureza que os objectos ganham significado. A “arte” nasce, assim, de uma necessidade quase umbilical entre o Homem e a Natureza; entre a relação estabelecida entre a existência e a sua essência[2] (o que constitui a natureza do seu Ser), entre a pulsão criadora e o acto criativo que passamos a defini-lo como “o corpo poiético”. A criação antecede o instinto de sobrevivência. Assim, não é de estranhar que as primeiras manifestações de índole “criativa”, como as peças escultóricas, ou as pinturas e gravuras conhecidas, ou mesmo os monumentos megalíticos tenham para o Homem um carácter mágico. Os objectos criados personificados ou transformados em divindades tornam una a condição humana. O Homem cria para alimentar, sobretudo, o desejo da fertilidade. E a Mãe-Natureza será a primeira divindade conhecida, quer seja simbolizada através de monumentos megalíticos de forma fálica fecundando a terra (ver menhir do Outeiro) quer seja em pequenas estatuetas como a “Divindade” de Willendorf ou de Lespugue, entre outras, as únicas que dão resposta cabal à sua inquietação. Iconograficamente estas esculturas apresentam grandes seios, ancas largas, características fisiológicas de mulheres férteis: boas parideiras. Uma verdadeira comunhão entre a mulher que gera vida e a Natureza onde brota toda a vida indispensável ao seu sustento.  A Mãe-Natureza enquanto divindade personifica a generosidade da Natureza, a maternidade, a fertilidade, enquanto o falo[3] representa a energia da criação. Doravante, o corpo poiético – a criação, a comunicação, a manifestação, em suma, aquilo que hoje chamamos de objectos artísticos - estará intrinsecamente ligado à sexualidade, à abundância, mediada pelo receio do absoluto.

 

A Mãe-Natureza terá outras representações e outros simbolismos consoante a vontade e a necessidade explicativa do homem ao longo da história da sua existência. Assim, jamais a condição humana separará a matéria do transcendente, o Corpo da Criação.

Divino__Fertilidade.jpg

 

| Pré-histórica | Mesopotâmica | Egípcia | Grega - Romana | Cristã |


[1] Aquilo que mais tarde Aristóteles definiu como Ethos / Pathos / Logos: Um apelo ao ethos depende da credibilidade, competência e reputação da pessoa que faz o argumento. O recurso para pathos é um argumento emocional. Argumentos dessa natureza podem ter como alvo sentimento comum, valores culturais compartilhados ou serem estruturados para manipular e provocar uma resposta emocional directa. A pessoa que faz o argumento procura fazer o ouvinte se identificar com ela. O recurso para logos é um argumento lógico. A credibilidade do argumento repousa sobre a sua coerência e estrutura interna, bem como a evidência apresentada no seu apoio. Um argumento pode ser de apenas um desses estilos, mas Aristóteles acreditava que um argumento eficaz mistura todas as três qualidades.

[2] Nota: para Platão um Ser é percebido a partir do espírito ou das Ideias que se sobrepõem às percepções sensoriais. Para Aristóteles a reunião das características comuns de cada Ser definem a natureza intrínseca de cada Ser. Para S. Tomás de Aquino (Tomismo) a concepção geral de um Ser é percebida unicamente através do pensamento e eventualmente dissociada da realidade existencial, única e palpável.

[3] Na Antiguidade Clássica ele era um símbolo apotropaico, ou seja, tinha o poder de afastar o azar e as influências maléficas, ao mesmo tempo em que simbolizava a protecção junto à ideia de fertilidade e vida.

 

 

O Divino e a Fertilidade, 1998-2015©Luís Barreira

François Clouet, Carta de amor, 1570

François Clouet foi considerado o maior pintor e desenhista francês da segunda metade do século XVI e um dos maiores nomes da Escola de Fontainebleau. François Clouet, pintor da corte de Francisco I, afirmou-se como retratista e também de obras de carácter histórico e mitológico.

“A carta de amor” é um dos quadros mais intrigantes e mais belo de François Clouet. A relação que se estabelece entre as personagens e a própria carta (objecto da atenção do observador) atribui-nos o papel principal na pintura: a de participante. “A carta de amor” terá sido escrita por nós?

François Clouet, Carta de amor. 1570

François Clouet, Carta de amor. 1570

BASTA um PUM! - Manifesto

 

Bela Silva | Luis Barreira | António Poppe

Carta aberta de um anartchist

Um país pequeno, políticos pequenos, decisões pequenas.

Um convite aos mais doutos a abandonar o país.

Uma esperança esgotada.

Uma certeza adiada.

Um Natal festejado como se fosse o último.

Um funcionário cansado.

Um presente sem futuro…

Um Ano Novo adiado.

Um manifesto simoníaco de um futuro já perdido.

Uma obesidade política nutrida em festins secretos. Uma finança alicerçada na usura organizada.

Um país repleto de políticos medíocres que sofrem de apoplexia intelectual: a mediocridade.

A mediocridade propaga-se por toda a parte; manifesta-se concomitantemente desdenhando de tudo, perpetuando a incompetência. A mediocridade não inveja, vive obcecada com o desaire dos opositores. A mediocridade é ávida de sucesso aspirando somente alcançar a mediania. E qual é a sua maior ambição? - “Ser igual a si próprio”

Eis o grande engano da vulgaridade dos nossos dias que é um alerta para o nosso manifesto. Um medíocre não é um idiota! O idiota cultiva a caridade piedosa, o imediato, o fácil, o não fazer ondas, ir pelo mais ou menos desde que não seja incomodado. Os idiotas não têm passado, como poderemos antever o seu futuro? 
Um idiota paga impostos! PUM!...
É este o alento dos idiotas desiludidos!

BASTA!

BASTA!

BASTA um PUM!


Lisboa, no ano de mil novecentos e noventa e um, PUM!

Rafael, Escola de Atenas, 1506-10

A “Escola de Atenas”, cujo nome original Causarum Cognitio (Conhecer as Coisas) se manteve até ao século XVII, faz parte de um conjunto de quatro pinturas (frescos): “as quatro faculdades clássicas do espírito humano” – A Verdade, O Racional, O Bem e O Belo. Os frescos de Rafael, localizados na Sala da Assinatura outrora destinados à biblioteca privada do Papa Júlio II, assinalam de uma forma singular o pensamento neoplatónico renascentista.

1506-10_Rafael_Academia-neoplatonica.jpg

Numa das paredes o Bem está representado pelas Virtudes Teológicas da Lei e na parede contrária, por oposição, o Belo revelado por Apolo e as Musas no monte Parnaso. A Verdade teológica ilustrada pela "adoração ao Santíssimo Sacramento" ocupa a parede oposta à Escola de Atenas representando o pensamento Racional. Em suma, a Verdade é adquirida através da razão cujas personagens centrais, Platão aponta para o céu enquanto segura o seu livro “Timeo”, caminhando em diálogo com Aristóteles contendo a “Ética”, personificam os pensadores da Antiguidade Clássica e, simultaneamente, o tempo de Rafael. Todas as figuras estão dispostas em planos diferentes ganhando não só o destaque pretendido, como também reforçam a harmonia e o equilíbrio da composição pictórica. O desenho subjacente às formas, o realismo anatómico, põe a nu a perícia técnico-formal característica da pintura renascentista. O recurso ao claro-escuro das roupas reforça a tridimensionalidade das formas. Assim, Rafael sem recorrer à ilustração socorre-se de figuras alegóricas, técnica recorrente nos séculos XIV e XV, deambulando-se por um espaço arquitectónico, numa espécie de trompe l’oeil, onde destacamos um arco perfeito em toda a sua plenitude abrindo o espaço para uma perspectiva linear decorada com mais diversos elementos clássicos; desde as esculturas greco-romanas inseridas em nichos (Apolo à esquerda e Minerva à direita), a abóbada de berço, uma cúpula ao centro, terminando num arco de triunfo convocando o olhar para o infinito. Perante esta composição expansiva, o espectador é convocado a percorrer demoradamente todo o espaço onde se desenrola a acção. Toda esta atmosfera é explorada por Rafael submetendo o espaço pictórico às leis do plano permitindo que as personagens retratadas ganhem um estatuto especial segundo a iconografia apresentada. Além disso, Rafael fazendo a síntese entre a Verdade e o pensamento Racional, retrata as celebridades de modo a permitir observar a explicação: Pitágoras é representado de lado, deixando antever o diatessaron; reclinado nos degraus da escada, Diógenes sugere a leitura dos antigos filósofos gregos; à sua frente, Eráclito, o filósofo pessimista; à direita, Euclides ensina geometria enquanto Zaratustra segura o Globo Celestial e Ptolomeu o Globo Terrestre, junto a estes, quiçá, o próprio Rafael.

Por tudo isto, a “Escola de Atenas” é considerada uma obra icónica do renascimento.

 

1990 © Luís Carvalho Barreira

Cabaret Voltaire

Em 5 de Fevereiro de 1916 foi decretada a morte da arte, aqui. A arte de hoje não passa de "remakes" dos dadaístas...

Muitas das observações na arte actual podem ser facilmente remontadas a Dada. Deste modo, anti elitismo, anti autoritarismo, gratuitidade, anarquia e, por fim, niilismo estão claramente implicados na doutrina dadaísta da antiarte pela antiarte (a fórmula de Tristan Tzara). Assim como no respeitante ao objecto achado e à lata de sopa assinada, eles são obviamente uma continuação, dos famosos readymades de Marcel Duchamp e Man Ray. A ideia de acaso é também uma descoberta de Dada, e foi teorizada e aplicada não pelos dadaístas mas também pelos surrealistas nas suas doutrinas da escrita automática e do objecto surrealista.

Dada

Dada

 

Se se analisar os novos estilos, movimentos, da arte do século XX encontrar-se-á neles certas tendências sumamente conexas entre si tendendo para albergar no seu seio a memória do conceito romântico de “artista”, ainda hoje válido; ou da universalidade da forma como algo comum a todos os sujeitos potenciais, enquanto fruidores, com faculdades de julgar e, por inerência, a criação de um gosto construído; ou da niilificação da função de criador dando-lhe um sentido de heroicidade, de super-arte, como Nietzsche expressa em Ecce Homo, dizendo: «o acto decisivo de regresso da humanidade a si próprio, que em mim se faz carne e génio».

É neste espírito, cada vez mais consciente, de um nada mais profundo em todos sentidos que o Dadaísmo se manifesta delegando um conjunto de atitudes preconizadoras a todos os movimentos vindouros. O niilismo que os dadaístas preconizaram não tem paralelo. O fim da arte está expresso em todas as atitudes e é bem patente como se refere num dos seus manifestos. Segundo os dadaístas era «inadmissível que o homem deixe qualquer vestígio atrás de si». e «medindo pelo padrão da eternidade, toda a acção humana é fútil». O dadaísmo substitui, assim, o niilismo da cultura estética por um novo niilismo, que não só discute o valor da arte mas o valor de qualquer humanismo.

No primeiro manifesto Dada de 1918, escrito por Tristan Tzara e publicado nesse mesmo ano na revista Dada de Zurique, apregoavam na revista Der Dada nº2:

Hausmann-Der Dada-Heartfield-Grosz.jpg

«Dada não significa nada.

O que é Dada?

Uma arte?

Uma filosofia?

Uma política?

Um seguro de incêndio?

Ou: religião de estado?

Dada é realmente energia?

Ou não é absolutamente nada, isto é, tudo?».

Esta atitude irónica, sarcástica, perante a arte, desmitificando-a, tendo consciência da necessidade de a tornar acessível a um maior número de criadores. Os dadaístas, apesar de efémeros, serão os principais precursores, inspiradores, de todos os movimentos contemporâneos. Jamais a arte esteve perante uma tão grande pluralidade de modelos operativos, assim como, de agentes da criação. Em arte a criatividade descobre que a Ideia está destinada a fazer as vezes do saber de Ofício. O advento de uma nova Ideia de arte emergente da confluência do eros e do niilismo (nietzscheniano) contemporâneo que os dadaístas preconizaram até às últimas consequências fará com que os movimentos artísticos subsequentes aproveitem as suas fragmentações transformando-os em objectos de arte

Sem renunciar a ser objecto de reflexão, a pintura pós-dada recupera os direitos da subjectividade e proclama a legitimidade das obsessões individuais. Aquilo que poderá separar os dadaístas destes “movimentos” não é mais do que uma deslocação romântica no interior do logos artístico, ou seja, acharem-se ainda artistas.

Em suma, o corpo artístico nascido das doutrinas da cultura utópica, da morte de Deus, da assumpção do Super-homem, do Progresso, do Futurismo é seguramente uma arte singular. A Contemporaneidade niilista é a lenta agonia da arte que ditará a sua “coisificação”.

Ao conteúdo desta arte, digamos, destas coisas chamar-lhe-emos de corpo niilista.

Madonna amamenta o menino

À direita
S. Jerónimo. 
A preparação literária e a ampla erudição permitiram que Jerónimo fizesse a revisão e a tradução de muitos textos bíblicos. Assim, constitui a chamada "Vulgata", o texto oficial da Igreja latina, que foi reconhecido como tal pelo Concílio de Trento e que, depois da recente revisão, permanece o texto oficial da Igreja de língua latina.
São Jerónimo é conhecido não apenas pela tradução da Bíblia mas também por sua obra em defesa do Dogma da Virgindade Perpétua da Virgem Maria. 

À esquerda
Ecce Agnus Dei, ecce Qui tollit peccatum mundi (Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo): Expressão usada por S. João Batista.

Andrea del Brescianino (século XVI)Madonna amamenta o meninoMuseo d'Arte SacraSiena

Andrea del Brescianino (século XVI)

Madonna amamenta o menino

Museo d'Arte Sacra

Siena

Desenho, a mãe de todas as artes

Apresento-vos um desenho da “Virgem e do menino” feito por Miguel Ângelo. Tendo como base o Desenho, a mãe de todas as artes, Miguel Ângelo segue os cânones clássicos valorizando as etapas subsequentes desta disciplina: a Ideia, o esquisso, o modelo, o desenho do modelo e o claro/escuro

MICHELANGELO Buonarroti, desenho, 1522.

MICHELANGELO Buonarroti, desenho, 1522.

O primeiro registo da palavra Desenho com o sentido de projecto foi em 1548 na obra Diálogos em Roma do pintor e humanista português, Francisco de Holanda. ''O desenho, a que e outro nome se chamam debuxo, nele consiste e é a fonte e o corpo da pintura e da escultura e da arquitetura e de todo outro gênero de pintar e a raiz de todas as ciências.*" 


*(HOLANDA, Francisco de, "Diálogos em Roma", Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p.61) 

O que é Arte?

L.H.O.O.Q. mona lisa, com bigode, 1919

L.H.O.O.Q. mona lisa, com bigode, 1919

A Arte é…

(aceitemos a definição mais consensual de Dino de Formaggio: “a arte é tudo aquilo a que os homens chamam de arte”. Longe de definir o conceito de Arte, Dino de Formaggio remete-nos epistemologicamente para a validação da arte, e por consequência para a definição de arte, por parte dos “homens”: grupos, associações, corporações, estetas, comunidades ligados à fenomenologia artística. Uma espécie de “sumo pontífice” das artes donde emana o que é Arte. 

Sempre assim foi!?

A Arte de hoje é mais herdeira do academismo do século XVII e, sobretudo, do formalismo das Belas-Artes oriunda da nobreza do espírito enciclopedista, renascida na Revolução Francesa, do que dos métiers das artes aplicadas –oficinais- das Guildas e dos Mesteirais da Idade Média. Mesmo quando alguma arte contemporânea proclama a morte da ideia, na conformidade da destruição material, na niilização da tão idolatrada arte pela arte, não deixa, por isso, de poder-se contextualizar no momento constitutivo da relação entre a obra e a leitura dela efectuada. A obra continua indissociável ao aspecto formal. Se assim não fosse não podíamos discorrer sobre uma experiência estética obtida na observação dos objectos artísticos contemporâneos (casos há).

Todo o artista é um confidente do legado artístico da memória do homem e é sobretudo o porta-voz de vários “eus” falando a linguagem dos seus antecessores e algum tempo haverá antes que comece a falar o seu próprio discurso promovendo em cada abordagem um modo de possuir a obra. Todavia, será sempre susceptível de ser interpretada, percorrida por novos pontos de vista e do seu carácter ¾ethos. Este carácter multidireccional e criador, que por ser diverso, é passível de uma atitude em constante mutação fazem com que a obra de arte, ou o objecto artístico, não possa ser explicada (naquilo que a identifica com explicações causais), mas passível de ser interpretada segundo normas e valores que nos constitui. É certo que toda a obra de arte pode ser explicada pela teoria porque ela é fruto do pensamento, ou Ideia, mas não é menos verdade que muito daquela a que chamamos, hoje, obras de arte não foi feita com esse estatuto. Nem tudo, porventura, o que hoje chamamos de arte sê-lo-á amanhã. Descodificar os fenómenos artísticos é mergulhar nas antinomias que as enformam desde sempre. Não podemos descurar que será sempre uma abordagem perspéctica de um egocentrismo civilizacional e temporal do conceito “Obra de Arte”. Pelo que a nossa preocupação é de ser um simples intérprete, de uma visão pessoal por considerarmos que obra de arte só se torna válida quando for capaz de novas apreciações, de novas recriações, de novas experiências estéticas, que a identificam, autenticando-lhe um valor onde o homem possa simultaneamente existir, contemplar e criar, (sem deixar naturalmente de integrá-las na sua contextualização histórica). 

Neste sentido, Arte é a realidade de uma relação sujeito-objecto indizível, cujos elementos componentes são perfeitamente indetermináveis e inconcebíveis independentemente uns dos outros. Nós mudamos e as obras mudam connosco. A realidade, como nós próprios, está sujeita a um processo de movimento constante, de devir, que poderíamos chamar a este lugar misterioso ¾espaço, tempo e memórias de evolução e transformação, de fenómenos sempre novos que nunca poderão ser considerados acabados...).

A Arte é uma sublime inutilidade.

 

 

Luís Barreira

Corpo poiético

corpo poiético

Miguel Ângelo Nu masculino, 1504-1505 Teyler Museum

Miguel Ângelo
Nu masculino, 1504-1505
Teyler Museum

 

NIHIL EST IN INTELLECTU QUOD PRIUS NON FUERIT IN SENSU[1]

 

 

Partindo do pressuposto que o corpo foi fonte de representação, imaginação, crença, para inúmeros artistas, pensadores, poetas, filósofos, não esquecendo os teólogos, e que todos estes o abordaram segundo normas (sociais e religiosas) passíveis de fácil significação, então procuraremos ser intérpretes da visão (entre as várias visões possíveis) de um corpo poiético, constituindo, sem dúvida, para nós, um dos mais importantes paradigmas da Arte. O processo criativo: o corpo poiético.

Será, porventura, mais pacífico afirmar que a existência das actividades artísticas ao longo dos tempos parte da necessidade do Homem de comunicar: veiculando através da “arte” conhecimentos, legitimando poderes, venerando deuses, exorcizando medos, em suma, exaltando por consequência o corpo na sua dimensão de beleza; espiritual, contemplativo, ideológico, conceptual -logos[2]-finalidade ordenadora consubstanciada na Ideia -corpo ausente. E na beleza figurativa, alegórica, simbólica, representativa, criativa, sensual -eros[3]- fonte de desejo, encerrando em si toda a libido[4] que pode investir-se, quer no ego, quer num objecto exterior  -corpo presente.

O corpo distingue e classifica. Distingue, pela universalidade e intemporalidade do eros que é a nossa capacidade de sonho e fantasia; classifica, pelo logos que é o princípio ordenador característico da relação do homem com a existência.

Partindo deste pressuposto e se aceitarmos como certo que toda a obra de arte pode ser explicada pela teoria porque ela é fruto das relações entre duas linguagens distintas; o pensamento verbal -corpo ausente- e o pensamento plástico, representações dos sentidos e da imaginação -corpo presente- então, as obras de arte possuidoras desta reflexão cognoscível e imagética têm de ser reconsideradas em função de uma experiência estética[5] de que as próprias obras são portadoras insubstituíveis -O corpo poiético.

O logos tende para a Unicidade.

O eros tende para a Dispersão.

Nesta dicotomia - logos/eros - e porque nada se cria a partir do vazio referencial nem nada (nas artes plásticas) é arbitrário, residirá nestas forças aparentemente antagónicas o corpo poiético que ao longo dos tempos moverá todos aqueles que encontraram nas artes plásticas, o veículo de manifestações artísticas, políticas, ideológicas, religiosas etc..

Parece-nos que nesta dimensão logos/eros encerra em si toda a magnificência do pulsar da vida humana e por consequência a extensão do dever deontológico a que a própria arte se sente obrigada - O corpo como cânone da arte[6].

Inexoravelmente toda a obra de arte desenvolveu-se ao longo da história dentro desta dicotomia: entre a Ideia, “corpo ausente” -da areté[7]- como forma de regrar comportamentos de “justiça”; e o eros, “corpo presente” -da physis[8]«como relação do homem com uma ordem que é a íntima estrutura do Kosmos, do mundo, do qual o homem brota e se ergue[9]». Em suma, o acto de criar, representa essa energia, essa “musculatura” dispersiva, que se manifesta tornando visível a natureza humana e, indubitavelmente, estando o eros em estreita ligação à natureza humana ele aspira ao êxtase da exaltação amorosa, sempre que, pela sublimação do objecto do desejo, o corpo tende a imortalizar-se no erotismo manifestado na unidade superior da carne e ou do espírito.

Por consequência, a obra de arte é o corpo manifestado pelos sentidos.

Reiteramos esta afirmação mesmo para arte não-figurativa ou abstracta. Na verdade, aquilo que constitui a essência de alguma coisa -corpo- é formado por variações no plano da expressão que corresponde a efeitos de conteúdo. Estes efeitos são configurações discursivas relevantes, tanto na dimensão semântica como estética. Motivos a que poderíamos chamar de corpo de autor - individual (estilo) ou colectivo (movimento) - que os produziu dando à obra o reconhecimento cognitivo do próprio interventor como actor estetizante.

Se partirmos do pressuposto que toda a obra de arte é representada por um corpo (figurativo ou abstracto) e que este pode ser explicado por uma teoria porque é fruto do pensamento e que este pensamento encerra em si formulações imagéticas[10], então, estaremos perante duas linguagens que se complementam.

Esta relação entre a imagem e a palavra não é nova, ela foi objecto de maior equidade e insistência nos séculos XVI e XVII onde a Poesia não podia deixar de estar presente dando forma àut pictura poesis[11], que aconselhava os poetas a inspirarem-se nas pinturas, mostrando que a arte apenas atinge a sua plenitude guardando contacto com o visível. O poeta, que especula como o filósofo, pretende igualmente desenvolver a sua capacidade sensual de “pintar”, numa crescente preocupação de dar aos textos escritos um carácter pictórico, onde o discurso produz imagens a partir de representações plásticas.

 

«os sábios são pintores; pintura é poesia; pintura é história; e enfim toda a composição de homens cultos (qualunque componimenti de’dotti) é pintura.»Ludovico Dolce[12]

 

Francisco de Holanda, com uma consciência teórica agudizada pelas suas raízes intelectuais consolidadas em Itália e por profundas convicções pessoais, tratará extensivamente a «grande conformidade que têm as letras com a pintura[13]». É notório que a expressão «a pintura é poesia muda e a poesia pintura eloquente[14]» foi utilizada por diversos poetas, incluindo Camões, numa referência à noção de Simónides, «Mostrava sempre ter nos singulares / feitos dos homens que, em retrato breve, / a muda poesia ali descreve[15]».

Lope de Vega repete as analogias de Simónides particularizando-as:

 

«Marino, gran pintor de los oídos, y Rubens, gran poeta de los ojos».[16]

 

Os poemas constituíram, sem dúvida, a manifestação “artística” mais tangível da doutrina da ut pictura poesis em Portugal[17]. Contudo, como se sabe, sendo a Igreja o principal patrocinador da arte, via na Arte Poética de Horácio, que fundamentara o renascimento da teoria da equivalência entre a pintura e poesia, o campo propício ao desenvolvimento da Retórica onde se insta o orador a fazer a sua audiência ver, para além de ouvir. Mediante este postulado numerosos literatos e teólogos defendiam que a boa pintura, assim como a boa poesia, deviam ser a imitação ideal das acções humanas. Assim, a imagem ganha um valor pedagógico preponderante havendo quem defendesse que um texto visual -pintura- representa sobretudo a actualização da Ideia. Entre eles mencionamos Manuel Pires de Almeida que defendia que «a obra do pintor é a História, as partes do corpo são os membros, as partes dos membros são superfícies, porque destas se fazem os membros, dos membros os corpos, dos corpos a história, que é obra do pintor[18]».

A tentativa de justificação da superioridade de uma arte sobre a outra[19] (neste caso a Poesia) é a inaudita constatação da comunhão de unicidade existente entre elas.

 Esta procura da unicidade na universalidade das artes perdura, ainda hoje, no processo artístico, na demanda de anunciar o corpo poiético comum a todas artes. Mesmo quando alguma arte contemporânea proclama a morte da ideia, na conformidade da destruição material, na niilização da tão idolatrada arte pela arte, não deixa, por isso, de poder-se contextualizar no momento constitutivo da relação entre a obra e a leitura dela efectuada. Se assim não fosse não podíamos discorrer sobre uma experiência estética obtida na observação dos objectos artísticos contemporâneos (casos há).

Todo o artista é um confidente do legado artístico da memória do homem e é sobretudo o porta-voz de vários “eus” falando a linguagem dos seus antecessores e algum tempo haverá antes que comece a falar o seu próprio discurso promovendo em cada abordagem um modo de possuir a obra. Todavia, será sempre susceptível de ser interpretada, percorrida por novos pontos de vista - éthos[20]. Este carácter muldireccional e criador, que por ser diverso, é passível de uma atitude em constante mutação fazem com que a obra de arte, ou o objecto artístico, não possa ser explicada (naquilo que a identifica com explicações causais), mas passível de ser interpretada segundo normas e valores que nos constitui[21]. Pelo que a nossa preocupação é de ser um simples intérprete, de uma visão pessoal por considerarmos que obra de arte só se torna válida quando for capaz de novas apreciações, de novas recriações, de novas experiências estéticas, que a identificam, autenticando-lhe um valor onde o homem possa simultaneamente existir, contemplar e criar, (sem deixar naturalmente de integrá-las na sua contextualização histórica). Torna-se evidente que a Santa Maria Madalena de Francisco Venegas, por exemplo, (ver análise detalhada, página 42) ganha aos nossos olhos um carácter diferenciado, mesmo que façamos um esforço de distanciação e de contextualização histórica, da dos olhos de um crente do século XVI.

Neste sentido a realidade é uma relação sujeito-objecto indizível, cujos elementos componentes são perfeitamente indetermináveis e inconcebíveis independentemente uns dos outros. Nós mudamos e as obras mudam connosco. A realidade, como nós próprios, está sujeita a um processo de movimento constante, de devir, que poderíamos chamar a este lugar misterioso -espaço, tempo e memórias- de evolução e transformação, de fenómenos sempre novos que nunca poderão ser considerados acabados.

Neste sentido, sublinhamos, é nossa intenção fazer uma abordagem interpretativa e compreensiva das obras em análise (e não de uma explicação objectiva das mesmas) que será legitimada por um corpo poiético cuja exteriorização significa a tangibilidade, desse lugar enigmático, misterioso, fonte de toda a criação e de espanto que ao longo de toda a história se tem revelado em formas sensórias, em cor, em espaços e contornos plásticos. Este lugar capaz de ser aprisionado nas mais delicadas gradações dos vários matizes do sentido, capaz de interpretar as súbitas tonalidades da vida, capaz de reinventar os limites do próprio espaço é o corpo da arte.

Particularizando o nosso objecto de estudo, é no corpo figurativo -Nu- cuja representação ao longo dos diferentes tempos tem provocado sentimentos, sublimações, sensações, que a atenção dos homens foi capaz de despertar. O nu ganha em nós fruidores formas plásticas (psicológicas) tão díspares e tão fáceis de interpretar como: corpo piedoso, religioso, ascético, contemplativo, misterioso, sensual, erótico, lascivo, obsessivo, abstracto, enigmático, metafísico, transcendente, maravilhoso, (...) e é, sobretudo, através dele que as interpretações ao nível das ideias estéticas adquirem significado de: corpo mitológicocorpo místicocorpo moderno e corpo niilista.

Assimilados pelos principais poderes instituídos (temporal e espiritual) vigentes esta dicotomia "logos/eros" no âmago do corpo poiético será alvo das mais díspares interpretações artísticas permitindo-nos estabelecer uma correspondência para além dos grandes sistemas representativos do corpo; Antiguidade Clássica (corpo mitológico), Medieval (corpo místico), Modernidade[22] (corpo moderno), Contemporâneo (corpo niilista), diferenciações de práticas representativas e estilísticas, dando origem aos mais diversos Movimentos e Estilos.

Com efeito, o corpo mitológico corresponde ao politeísmo greco-romano da Antiguidade Clássica; o corpo místico corresponde ao simbolismo teológico de Deus cristão da Idade Média; O corpo moderno correspondente à tensão crescente de uma nova consciência de acção, criação e de redescoberta "renascer" do corpo clássico com o conceito teológico de corpo místico da Idade Média[23] que se desenvolverá desde o Renascimento até ao século XX; o corpo niilista corresponde à niilização, à coisificação, à dispersão do corpo, à criação volátil de novos signos e símbolos da arte dando origem à exacerbação do individualismo nas suas mais díspares manifestações.

Assim, o corpo solicita, desde logo, mesmo ao mais incauto, um rol de interrogações.

Como poderemos nós analisar, estas relações -corpo poiético- num ponto de vista artístico, entre a arte e a ideologia, entre a arte e o poder, entre a arte e os contextos políticos e sociais, ou seja, entre a produção artística e todos aqueles que de uma forma ou de outra fruem e usufruem daquilo a que vulgarmente chamamos de Arte?

...Certamente, que todas respostas teriam como denominador comum, o desejo do corpo e a inquietação dos sentidos sublimada na criação. O corpo fonte de desejo.

O corpo foi, é, e será, fonte de desejo. A Arte é uma sublime inutilidade.


1998 © Luís Carvalho Barreira

(texto extraído da Tese de Mestrado, O Corpo Poiético da Arte portuguesa, 2000)

 

 

[1] Expressão latina que significa: Nada está no intelecto que não tenha estado primeiro nos sentidos.

[2] O logos, espiritual, passa a designar, além de palavra ou discurso exterior, seja, conceito ou ideia, uma espécie de divindade, um princípio imanente de lei cósmica. Não é como um acto isolado, individual, mas como eco e expressão de um Logos universal que, deste modo, lhe garante objectividade e verdade. O logos aparece, no poema filosófico de Parménides, como discurso crítico e verídico sobre o ser, frequentemente associado ao verbo, em oposição ao discurso ilusório e vazio das representações dos sentidos e da imaginação. Este poder racional de julgar e decidir levará Platão a compará-lo à Ideia e à Razão.

[3] O eros significa, em Platão, quer o desejo sensual quer o impulso espiritual para o ser, como fogo espiritual, criativo, presidindo ao destino de todas as coisas mutáveis transformando-se em desejo ascensional. Actualmente, o Eros está associado a uma acepção sexual em que Freud valorizou o Eros na sua psicologia do inconsciente e na teoria da psicanálise, tomando-o como o conjunto das “pulsões de vida”, que se manifesta pela libido e, como esta, regido pelo princípio do prazer e, consequentemente, reprimido pela moral social. O pensamento freudiano, ao pretender valorizar o Eros, de certo modo dessacraliza a sua sublimação pelo “amor”, pela “caridade”, segundo valores da tradição judaica-cristã. A função libertadora do Eros foi reprimida ao longo dos tempos. Recuperada por Freud, Eros é a “pulsão de vida” e corpo que se tornaria objecto de posse, coisa para gozar, instrumento de prazer. inDicionário de Termos Filosóficos Gregos, FCG.

[4] Para Freud, Para Além do Princípio do Prazer, introduz o Eros «...a libido das nossas pulsões sexuais coincidiria com o Eros dos poetas, artistas e dos filósofos que mantém a coesão de tudo o que vive». Toda a energia do Eros passará a chamar-se libido.

[5] Esta distinção permite-nos destrinçar, por exemplo, entre a obra artesanal e a artística.

[6] O corpo enquanto representação aspira em última análise a um valor estético.

[7] Excelência, virtude. «O conceito areté nos diálogos socráticos de Platão dirigem-se no sentido de uma procura das definições das várias virtudes. Para Platão há um eidos ¾forma, aparência¾ da areté. Na República descreve as quatro “virtudes cardeais” desejáveis no estado ideal, uma explanação que tem como correlatos as classes dos homens no estado e as divisões da alma». in Dicionário de Termos Filosóficos Gregos, FCG.

[8] Natureza. A substância física da qual eram feitas as coisas. A noção de physis  foi, de facto, destruída, passando a iniciação do movimento para agentes exteriores, o Amor e Ódio que em Platão esta é a doutrina mais religiosamente perniciosa.

[9] Sophia de Mello Breyner Andressen, O Nu na Antiguidade Clássica, Caminho, Lisboa, 1992. p.13.

[10] Uma ideia pode exprimir-se tanto por signos verbais como visuais. Exemplo disso é a linguagem gestual.

[11] Os Poemas constituíram a manifestação mais tangível da doutrina da ut pictura poesis em Portugal. Como se sabe, a Arte Poética de Horácio fundamentara no renascimento a teoria da equivalência entre a pintura e poesia.

[12] Nuno Saldanha, Poéticas da Imagem, Caminho, Lisboa, 1995. p.39.

[13] Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga, Introdução e notas de Angel González Garcia, Lisboa, 1983. p.265.

[14] Expressão atribuída por Plutarco a Simónides. citado por: Luís de Moura Sobral, Pintura e Poesia na Época Barroca, Editorial Estampa, Lisboa, 1994. p.117.

[15] Luís Camões, Os Lusíadas, canto VII, est. 76.

[16] Nuno Saldanha, Poéticas da Imagem, Caminho, Lisboa, 1995. p.40.

[17] Cândido Lusitano, Arte Poética de Q. Horácio Flacco, Traduzida e Illustrada em Portuguez, Lisboa, Typ. Rollandiana, 1758. p.184.

[18] Manuel Pires de Almeida, Pintura e Poesia, fol. 64v.

[19] Erasmos e outros reformistas exaltam a superioridade da palavra sobre a imagem: «Acatas a imagem de vulto de Jesus Cristo esculpida numa pedra ou de cores pintadas numa tábua. Pois com muito maior acatamento e devoção se deve honrar e selar-se na alma a imagem da sua divindade que por artifício do Espírito Santo se nos representa nas letras do Sagrado Evangelho.» Citação de Nuno Saldanha, Poéticas da Imagem, Caminho, Lisboa, 1995. p.60.

[20] éthos: carácter.

[21] É certo que toda a obra de arte pode ser explicada pela teoria porque ela é fruto do pensamento, mas não é menos verdade que muito daquilo a que chamamos hoje obras de arte não foram feitas com esse estatuto. Nem tudo, porventura, o que hoje chamamos de arte sê-lo-á amanhã. Descodificar os fenómenos artísticos é mergulhar nas antinomias que as enformam desde sempre. Não podemos descurar que será sempre uma abordagem perspéctica de um egocentrismo civilizacional e temporal do conceito “Arte”.

[22] Adoptamos esta terminologia Modernidade cônscio do relativismo histórico que esta classificação sustenta. Durante aproximadamente os últimos cento e cinquenta anos, termos como ModernoModernidade, e mais recente Modernismo e Pós-Modernismo têm sido usados em contextos artísticos para veicular um sentido de oposição com o passado mais ou menos recente. A Modernidade aparece com a mudança cultural de uma venerável estética da permanência baseada numa crença de um ideal de beleza imutável e transcendente, para uma estética da transitoriedade e imanência, cujos valores centrais são a mudança e a novidade.

[23] Ver capítulo, Morte de Deus.

 

Artemisia Gentileschi

Artemisia Gentileschi (Roma, 1593 – Nápoles, 1653)Judith e a sua Serva (1613-14)Óleo s/telaPalazzo Pitti, Florence

Artemisia Gentileschi (Roma, 1593 – Nápoles, 1653)

Judith e a sua Serva (1613-14)

Óleo s/tela

Palazzo Pitti, Florence

Os estádios (os direitos humanos na sua plenitude) em que se encontra a Mulher nos mais diversos cantos do mundo permitem que ainda se fale num dia internacional da mulher. Neste dia internacional da mulher (8 de Março) deverá, sobretudo, discutir-se o papel da mulher na sociedade assim como o seu contributo, ou a falta dele.

Inúmeras mulheres poderiam ser recordadas, enaltecidas, pelos seus feitos, pelo sofrimento ou pela humilhação infringida, neste dia. A minha singela homenagem sintetizada em Artemisia Gentileschi a primeira mulher a entrar para a Academia de Arte de Florença.

Nota: texto publicado em ethos no dia 8 de março 2012