Uma menina siberiana, uma dimensão secreta habitada por sinais tão particulares que os sentidos quase não os conseguem captar. Viagens, por vezes, assombradas por imagens tão fulgurantes que a imaginação quase não as alcança reter. Um errante caminheiro que eternamente se perde em divagações e recordações. A referência ao desejo não implica, necessariamente, nas minhas viagens, a representação de personagens ou de situações carnais. Há uma dimensão do desejo que está antes, depois e para além das pessoas conhecidas que é solidão, memória e silêncio.
Nunca soube o nome dela. Aliás, durante a minha estada, em Irkutsk, jamais proferiu uma palavra… e durante muito tempo julguei ser muda, até ao momento em que o seu canto agudo irrompe o espaço sagrado numa pequena igreja situada num ermo siberiano. Creio, não, tenho a certeza, que aquela experiência melómana foi a mais marcante da minha vida. Reconhecendo o esplendor litúrgico que permanece (ainda) nas gélidas terras dos Gulags, de Dostoiévski e de Tolstói, assisti a toda liturgia de pé – por norma, não há bancos nas igrejas ortodoxas -, à solenidade do rito conquistando o coração dos fiéis. Encostado a uma imagem evangélica de Cristo (“a paixão do povo russo” segundo Dostoiévski) o diálogo polifónico vindo da interacção das vozes agudas femininas e do som grave do diácono era, sempre, elevada pela voz angélica que eu julgara muda: verdadeiramente sublime. Os cânticos ortodoxos e uma série de pinturas iconográficas extraídas de um todo corpo pictórico são aqueles que melhor representam a dimensão sólida e a memória profunda, talvez a instância fundadora, o ponto de ancoragem mais decisivo de toda a experiência vivida. E é por isso que não posso limitar ao mero reconhecimento das suas expressões secretas o desejo concupiscente.