"A vida não é de abrolhos."

Luís Carvalho BarreiraTributo a Alexandre O’Neillserie:FotografiaGelatin Silver Printarquivo: 1997_FOLIO_291_332

Luís Carvalho Barreira

Tributo a Alexandre O’Neill

serie: paisagens habitadas

Fotografia

Gelatin Silver Print

arquivo: 1997_FOLIO_291_332

A vida não é de abrolhos.

É de abr'olhos.

A vida não é de escolhos.

É de escolhas.

Por que me olhas e m'olhas?

Por que me forras a alma

com o relento de um sentimento?

Serei eu a tua escolha?

Abre os olhos e olha,

que eu já me escolhi em ti!

Alexandre O'Neill, Entre a Cortina e a Vidraça, 1972

“sei os teus seios”

© Luís Carvalho Barreira“sei-os de cor”, 2018tributo a Alexandre O’Neillsérie: NUANCESFotografiaarquivo: 2018_05_15_DSCF7641_crop2câmara: Fujifilm X 100F

© Luís Carvalho Barreira

sei-os de cor”, 2018

tributo a Alexandre O’Neill

série: NUANCES

Fotografia

arquivo: 2018_05_15_DSCF7641_crop2

câmara: Fujifilm X 100F


Sei os teus seios. 
Sei-os de cor. 

Para a frente, para cima, 
Despontam, alegres, os teus seios. 

Vitoriosos já, 
Mas não ainda triunfais. 

Quem comparou os seios que são teus 
(Banal imagem) a colinas! 

Com donaire avançam os teus seios, 
Ó minha embarcação! 

Porque não há 
Padarias que em vez de pão nos dêem seios 
Logo p'la manhã? 

Quantas vezes 
Interrogaste, ao espelho, os seios? 

Tão tolos os teus seios! Toda a noite 
Com inveja um do outro, toda a santa 
Noite! 

Quantos seios ficaram por amar? 

Seios pasmados, seios lorpas, seios 
Como barrigas de glutões! 

Seios decrépitos e no entanto belos 
Como o que já viveu e fez viver! 

Seios inacessíveis e tão altos 
Como um orgulho que há-de rebentar 
Em deseperadas, quarentonas lágrimas... 

Seios fortes como os da Liberdade 
-Delacroix-guiando o Povo. 

Seios que vão à escola p'ra de lá saírem 
Direitinhos p'ra casa... 

Seios que deram o bom leite da vida 
A vorazes filhos alheios! 

Diz-se rijo dum seio que, vencido, 
Acaba por vencer... 

O amor excessivo dum poeta: 
"E hei-de mandar fazer um almanaque 
da pele encadernado do teu seio"
(Gomes Leal)

Retirar-me para uns seios que me esperam 
Há tantos anos, fielmente, na província! 

Arrulho de pequenos seios 
No peitoril de uma janela 
Aberta sobre a vida. 

Botas, botirrafas 
Pisando tudo, até os seios 
Em que o amor se exalta e robustece! 

Seios adivinhados, entrevistos, 
Jamais possuídos, sempre desejados! 

"Oculta, pois, oculta esses objectos 
Altares onde fazem sacrifícios 
Quantos os vêem com olhos indiscretos" 
(Abade de Jazente)

Raimundo Lúlio, a mulher casada 
Que cortejaste, que perseguiste
Até entrares, a cavalo, p'la igreja 
Onde fora rezar, 
Mudou-te a vida quando te mostrou 
("É isto que amas?") 
De repente a podridão do seio. 

Raparigas dos limões a oferecerem 
Fruta mais atrevida: inesperados seios... 

Uma roda de velhos seios despeitados, 
Rabujando, 
A pretexto de chá... 

Engolfo-me num seio até perder 
Memória de quem sou... 

Quantos seios devorou a guerra, quantos, 
Depressa ou devagar, roubou à vida, 
À alegria, ao amor e às gulosas 
Bocas dos miúdos! 

Pouso a cabeça no teu seio 
E nenhum desejo me estremece a carne. 

Vejo os teus seios, absortos 
Sobre um pequeno ser

Alexandre O’Neill

dia da mãe

My Mother: Lurdes de Jesus CarvalhoPoema à MãeNo mais fundo de ti,  eu sei que traí, mãe   Tudo porque já não sou  o retrato adormecido  no fundo dos teus olhos.   Tudo porque tu ignoras  que há leitos onde o frio não se demora  e noites rumorosas d…

My Mother: Lurdes de Jesus Carvalho

Poema à Mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"

"As Palavras"

© Luís Carvalho BarreiraTributo a António Ramos RosaAs Palavrasarquivo: 2020_04_01_DSCF4768câmara: Fujifilm X 100F

© Luís Carvalho Barreira

Tributo a António Ramos Rosa

As Palavras

arquivo: 2020_04_01_DSCF4768

câmara: Fujifilm X 100F


António Ramos Rosa

As Palavras

 

Adiro a uma nova terra adiro a um novo corpo
As palavras identificam-se com o asfalto negro
o tropel das nuvens
a espessura azul das árvores acesas pelos faróis
o rumor verde
As palavras saem de um ferida exangue
de teclas de metal fresco
de caminhos e sombras
da vertigem de ser só um deserto
de armas de gume branco
Há palavras carregadas de noite e de ombros surdos
e há palavras como giestas vivas
Matrizes primordiais matéria habitada
forma indizível num rectângulo de argila
quem alimenta este silêncio senão o gosto de
colocar pedra sobre pedra até á oblíqua exactidão?
As palavras vêm de lugares fragmentários
de uma disseminação de iniciais
de magmas respirados
de odor de gérmen de olhos
As palavras podem formar uma escrita nativa
de corpos claros
Que são as palavras? Imprecisas armas
em praias concêntricas
torres de sílex e de cal
aves insólitas
As palavras são travessias brancas faces
giratórias
elas permitem a ascensão das formas
elevam-se estrato após estrato
ou voam em diagonal
até à cúpula diáfana
As palavras são por vezes um clarão no dia calcinado
Que enfrentam as palavras? O espelho
da noite a sua impossível
elipse
Saem da noite despedaçadas feridas
e são signos do acaso pedras de sol e sal
a da sua língua nascem estrelas trituradas

de Gravitações (1984)

"As palavras mais nuas"

© Luís Carvalho BarreiraTributo a António Ramos RosaLisboa, 2020serie: palavras nuasFotografiaarquivo: 2020_03_31_IMG_8831câmara: Iphone 8

© Luís Carvalho Barreira

Tributo a António Ramos Rosa

Lisboa, 2020

serie: palavras nuas

Fotografia

arquivo: 2020_03_31_IMG_8831

câmara: Iphone 8


As palavras mais nuas
as mais tristes.
As palavras mais pobres
as que vejo
sangrando na sombra e nos meus olhos.

Que alegria elas sonham, que outro dia,
para que rostos brilham?

Procurei sempre um lugar
onde não respondessem,
onde as bocas falassem num murmúrio
quase feliz,
as palavras nuas que o silêncio veste.

Se reunissem
para uma alegria nova,
que o pequenino corpo
de miséria
respirasse o ar livre,
a multidão dos pássaros escondidos,
a densidade das folhas, o silêncio
e um céu azul e fresco.

António Ramos Rosa

"Moradas"

Tinha ainda muitas coisas para dizermas não as poderíeis suportar.João, 16, 12Manuel António Pina (Todas as Palavras - poesia reunida)

Tinha ainda muitas coisas para dizer

mas não as poderíeis suportar.

João, 16, 12

Manuel António Pina (Todas as Palavras - poesia reunida)


Luís Barreira

“Moradas”, 2019

série: palavras nuas

Fotografia

arquivo: 2019_06_16_NK2_5037

"Sei os teus seios"

Sei os teus seios

Sei os teus seios.
Sei-os de cor.

Para a frente, para cima,
Despontam, alegres, os teus seios.

Vitoriosos já,
Mas não ainda triunfais.

Quem comparou os seios que são teus
(Banal imagem) a colinas!

Com donaire avançam os teus seios,
Ó minha embarcação!

Porque não há
Padarias que em vez de pão nos dêem seios
Logo p’la manhã?

Quantas vezes
Interrogastes, ao espelho, os seios?

Tão tolos os teus seios! Toda a noite
Com inveja um do outro, toda a santa
Noite!

Quantos seios ficaram por amar?

Seios pasmados, seios lorpas, seios
Como barrigas de glutões!

Seios decrépitos e no entanto belos
Como o que já viveu e fez viver!

Seios inacessíveis e tão altos
Como um orgulho que há-de rebentar
Em deseperadas, quarentonas lágrimas…

Seios fortes como os da Liberdade
-Delacroix-guiando o Povo.

Seios que vão à escola p’ra de lá saírem
Direitinhos p’ra casa…

Seios que deram o bom leite da vida
A vorazes filhos alheios!

Diz-se rijo dum seio que, vencido,
Acaba por vencer…

O amor excessivo dum poeta:
“E hei-de mandar fazer um almanaque
da pele encadernado do teu seio”

Retirar-me para uns seios que me esperam
Há tantos anos, fielmente, na província!

Arrulho de pequenos seios
No peitoril de uma janela
Aberta sobre a vida.

Botas, botirrafas
Pisando tudo, até os seios
Em que o amor se exalta e robustece!

Seios adivinhados, entrevistos,
Jamais possuídos, sempre desejados!

“Oculta, pois, oculta esses objectos
Altares onde fazem sacrifícios
Quantos os vêem com olhos indiscretos”

Raimundo Lúlio, a mulher casada
Que cortejastes, que perseguistes
Até entrares, a cavalo, p’la igreja
Onde fora rezar,
Mudou-te a vida quando te mostrou
(“É isto que amas?”)
De repente a podridão do seio.

Raparigas dos limões a oferecerem
Fruta mais atrevida: inesperados seios…

Uma roda de velhos seios despeitados,
Rabujando,
A pretexto de chá…

Engolfo-me num seio até perder
Memória de quem sou…

Quantos seios devorou a guerra, quantos,
Depressa ou devagar, roubou à vida,
À alegria, ao amor e às gulosas
Bocas dos miúdos!

Pouso a cabeça no teu seio
E nenhum desejo me estremece a carne.

Vejo os teus seios, absortos
Sobre um pequeno ser

Alexandre O’Neill

Luís Barreira"sei-os de cor", 1992Jardim Botânico, LisboaSérie:FotografiaGelatin Silver printarquivo: FOLIO_139_10339, 1992

Luís Barreira

"sei-os de cor", 1992

Jardim Botânico, Lisboa

Série:

Fotografia

Gelatin Silver print

arquivo: FOLIO_139_10339, 1992

nuvem

Como nuvens pelo céu
Passam os sonhos por mim.
Nenhum dos sonhos é meu
Embora eu os sonhe assim. 
São coisas no alto que são
Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece. 

Símbolos? Sonhos? Quem torna
Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transtorna?
Que coisa inútil me dói?

Fernando Pessoa

Luís Barreiranuvem, 2018Fotografiaarquivo: 03_29_IMG_3824, 2018câmara: IPhone 5

Luís Barreira

nuvem, 2018

Fotografia

arquivo: 03_29_IMG_3824, 2018

câmara: IPhone 5

Carlos Drummond de Andrade

árvore

Luís Barreiraarquivo: 11_13_IMG_5677, 2015

Luís Barreira

arquivo: 11_13_IMG_5677, 2015


«Glória aos fotógrafos, a essa objectiva humilde que vai visitar as árvores na mata, no jardim público ou à beira da estrada, e delas recolhe a imagem menos imperfeita, porque menos individualista - árvore em estado de árvore. Não me achando em condições de possuir um sítio, nem mesmo uma araucária particular, incompatível com as dimensões do metro quadrado em que resido, eu (e aqui sou João, Leovigildo, Heitor, homem urbano em geral) consolo-me contemplando algumas fotografias de olmos, faias, eucaliptos, jequitibás, espécies resinosas e essências. Amo vê-las em grupo ou isoladas, oferecendo à pressão do vento a massa compacta de folhagem; reflectindo, interceptando ou matizando os raios solares que tentam penetrá-las; lavando-se à beira da corrente, em sincera solidão; ou ainda contrastando com os frágeis monumentos de pedra, tijolo e cimento, que chamamos de casas, e que é tão raro não "sobrarem" na natureza; e até mesmo esparsas entre esses outros monumentos, os mais frágeis de todos, de nervos e vasos sanguíneos, que chamamos homens, e tampouco sabem integrar-se no conjunto natural onde folhas, raízes, insetos e ventos se organizam sem política.»

 

Carlos Drummond de AndradePasseios na Ilha (1952)

Delfos

Luís BarreiraDelfos, 1984Coordenadas: 38°28'55.7"N 22°30'05.9"EFotografia/Diapositivosérie:arquivo: SLIDE_1461, 1984

Luís Barreira

Delfos, 1984

Coordenadas: 38°28'55.7"N 22°30'05.9"E

Fotografia/Diapositivo

série:

arquivo: SLIDE_1461, 1984

To the Oracle at Delphi

 

Great Oracle, why are you staring at me,

do I baffle you, do I make you despair?

I, Americus, the American,

wrought from the dark in my mother long ago,

from the dark of ancient Europa--

Why are you staring at me now

in the dusk of our civilization--

Why are you staring at me

as if I were America itself

the new Empire

vaster than any in ancient days

with its electronic highways

carrying its corporate monoculture

around the world

And English the Latin of our days--

 

Great Oracle, sleeping through the centuries,

Awaken now at last

And tell us how to save us from ourselves

and how to survive our own rulers

who would make a plutocracy of our democracy

in the Great Divide

between the rich and the poor

in whom Walt Whitman heard America singing

 

O long-silent Sybil,

you of the winged dreams,

Speak out from your temple of light

as the serious constellations

with Greek names

still stare down on us

as a lighthouse moves its megaphone

over the sea

Speak out and shine upon us

the sea-light of Greece

the diamond light of Greece

 

Far-seeing Sybil, forever hidden,

Come out of your cave at last

And speak to us in the poet’s voice

the voice of the fourth person singular

the voice of the inscrutable future

the voice of the people mixed

with a wild soft laughter--

And give us new dreams to dream,

Give us new myths to live by!

 

 

Lawrence Ferlinghetti, 1919

Menhir  do Outeiro, 2015

Luís BarreiraMenhir do Outeiro, 2015Fotografiasérie: Megalíticosarquivo: 03_5497, 2015

Luís Barreira

Menhir do Outeiro, 2015

Fotografia

série: Megalíticos

arquivo: 03_5497, 2015


MENIR

Salve, falo sagrado,
Erecto na planura
Ajoelhada!
Quente e alada
Tesura
De granito,
Que, da terra emprenhada,
Emprenhas o infinito!

MIGUEL TORGA, Diário XIV, Coimbra, 1995, p. 1461.

Eugénio de Andrade

“Não sejas como a névoa, nem quimera.
Demora-te, demora-te assim:
Faz do olhar
tempo sem tempo, espaço
limpo – do deserto ou do mar.”

Eugénio de Andrade

Foto: Luís BarreiraSintra, 2014

Foto: Luís Barreira

Sintra, 2014