"A vida não é de abrolhos."
A vida não é de abrolhos.
É de abr'olhos.
A vida não é de escolhos.
É de escolhas.
Por que me olhas e m'olhas?
Por que me forras a alma
com o relento de um sentimento?
Serei eu a tua escolha?
Abre os olhos e olha,
que eu já me escolhi em ti!
Alexandre O'Neill, Entre a Cortina e a Vidraça, 1972
“sei os teus seios”
Sei os teus seios.
Sei-os de cor.
Para a frente, para cima,
Despontam, alegres, os teus seios.
Vitoriosos já,
Mas não ainda triunfais.
Quem comparou os seios que são teus
(Banal imagem) a colinas!
Com donaire avançam os teus seios,
Ó minha embarcação!
Porque não há
Padarias que em vez de pão nos dêem seios
Logo p'la manhã?
Quantas vezes
Interrogaste, ao espelho, os seios?
Tão tolos os teus seios! Toda a noite
Com inveja um do outro, toda a santa
Noite!
Quantos seios ficaram por amar?
Seios pasmados, seios lorpas, seios
Como barrigas de glutões!
Seios decrépitos e no entanto belos
Como o que já viveu e fez viver!
Seios inacessíveis e tão altos
Como um orgulho que há-de rebentar
Em deseperadas, quarentonas lágrimas...
Seios fortes como os da Liberdade
-Delacroix-guiando o Povo.
Seios que vão à escola p'ra de lá saírem
Direitinhos p'ra casa...
Seios que deram o bom leite da vida
A vorazes filhos alheios!
Diz-se rijo dum seio que, vencido,
Acaba por vencer...
O amor excessivo dum poeta:
"E hei-de mandar fazer um almanaque
da pele encadernado do teu seio"
(Gomes Leal)
Retirar-me para uns seios que me esperam
Há tantos anos, fielmente, na província!
Arrulho de pequenos seios
No peitoril de uma janela
Aberta sobre a vida.
Botas, botirrafas
Pisando tudo, até os seios
Em que o amor se exalta e robustece!
Seios adivinhados, entrevistos,
Jamais possuídos, sempre desejados!
"Oculta, pois, oculta esses objectos
Altares onde fazem sacrifícios
Quantos os vêem com olhos indiscretos"
(Abade de Jazente)
Raimundo Lúlio, a mulher casada
Que cortejaste, que perseguiste
Até entrares, a cavalo, p'la igreja
Onde fora rezar,
Mudou-te a vida quando te mostrou
("É isto que amas?")
De repente a podridão do seio.
Raparigas dos limões a oferecerem
Fruta mais atrevida: inesperados seios...
Uma roda de velhos seios despeitados,
Rabujando,
A pretexto de chá...
Engolfo-me num seio até perder
Memória de quem sou...
Quantos seios devorou a guerra, quantos,
Depressa ou devagar, roubou à vida,
À alegria, ao amor e às gulosas
Bocas dos miúdos!
Pouso a cabeça no teu seio
E nenhum desejo me estremece a carne.
Vejo os teus seios, absortos
Sobre um pequeno ser
Alexandre O’Neill
dia da mãe
"As Palavras"
António Ramos Rosa
As Palavras
Adiro a uma nova terra adiro a um novo corpo
As palavras identificam-se com o asfalto negro
o tropel das nuvens
a espessura azul das árvores acesas pelos faróis
o rumor verde
As palavras saem de um ferida exangue
de teclas de metal fresco
de caminhos e sombras
da vertigem de ser só um deserto
de armas de gume branco
Há palavras carregadas de noite e de ombros surdos
e há palavras como giestas vivas
Matrizes primordiais matéria habitada
forma indizível num rectângulo de argila
quem alimenta este silêncio senão o gosto de
colocar pedra sobre pedra até á oblíqua exactidão?
As palavras vêm de lugares fragmentários
de uma disseminação de iniciais
de magmas respirados
de odor de gérmen de olhos
As palavras podem formar uma escrita nativa
de corpos claros
Que são as palavras? Imprecisas armas
em praias concêntricas
torres de sílex e de cal
aves insólitas
As palavras são travessias brancas faces
giratórias
elas permitem a ascensão das formas
elevam-se estrato após estrato
ou voam em diagonal
até à cúpula diáfana
As palavras são por vezes um clarão no dia calcinado
Que enfrentam as palavras? O espelho
da noite a sua impossível
elipse
Saem da noite despedaçadas feridas
e são signos do acaso pedras de sol e sal
a da sua língua nascem estrelas trituradas
de Gravitações (1984)
"As palavras mais nuas"
As palavras mais nuas
as mais tristes.
As palavras mais pobres
as que vejo
sangrando na sombra e nos meus olhos.
Que alegria elas sonham, que outro dia,
para que rostos brilham?
Procurei sempre um lugar
onde não respondessem,
onde as bocas falassem num murmúrio
quase feliz,
as palavras nuas que o silêncio veste.
Se reunissem
para uma alegria nova,
que o pequenino corpo
de miséria
respirasse o ar livre,
a multidão dos pássaros escondidos,
a densidade das folhas, o silêncio
e um céu azul e fresco.
António Ramos Rosa
"Moradas"
Luís Barreira
“Moradas”, 2019
série: palavras nuas
Fotografia
arquivo: 2019_06_16_NK2_5037
"Sei os teus seios"
Sei os teus seios
Sei os teus seios.
Sei-os de cor.
Para a frente, para cima,
Despontam, alegres, os teus seios.
Vitoriosos já,
Mas não ainda triunfais.
Quem comparou os seios que são teus
(Banal imagem) a colinas!
Com donaire avançam os teus seios,
Ó minha embarcação!
Porque não há
Padarias que em vez de pão nos dêem seios
Logo p’la manhã?
Quantas vezes
Interrogastes, ao espelho, os seios?
Tão tolos os teus seios! Toda a noite
Com inveja um do outro, toda a santa
Noite!
Quantos seios ficaram por amar?
Seios pasmados, seios lorpas, seios
Como barrigas de glutões!
Seios decrépitos e no entanto belos
Como o que já viveu e fez viver!
Seios inacessíveis e tão altos
Como um orgulho que há-de rebentar
Em deseperadas, quarentonas lágrimas…
Seios fortes como os da Liberdade
-Delacroix-guiando o Povo.
Seios que vão à escola p’ra de lá saírem
Direitinhos p’ra casa…
Seios que deram o bom leite da vida
A vorazes filhos alheios!
Diz-se rijo dum seio que, vencido,
Acaba por vencer…
O amor excessivo dum poeta:
“E hei-de mandar fazer um almanaque
da pele encadernado do teu seio”
Retirar-me para uns seios que me esperam
Há tantos anos, fielmente, na província!
Arrulho de pequenos seios
No peitoril de uma janela
Aberta sobre a vida.
Botas, botirrafas
Pisando tudo, até os seios
Em que o amor se exalta e robustece!
Seios adivinhados, entrevistos,
Jamais possuídos, sempre desejados!
“Oculta, pois, oculta esses objectos
Altares onde fazem sacrifícios
Quantos os vêem com olhos indiscretos”
Raimundo Lúlio, a mulher casada
Que cortejastes, que perseguistes
Até entrares, a cavalo, p’la igreja
Onde fora rezar,
Mudou-te a vida quando te mostrou
(“É isto que amas?”)
De repente a podridão do seio.
Raparigas dos limões a oferecerem
Fruta mais atrevida: inesperados seios…
Uma roda de velhos seios despeitados,
Rabujando,
A pretexto de chá…
Engolfo-me num seio até perder
Memória de quem sou…
Quantos seios devorou a guerra, quantos,
Depressa ou devagar, roubou à vida,
À alegria, ao amor e às gulosas
Bocas dos miúdos!
Pouso a cabeça no teu seio
E nenhum desejo me estremece a carne.
Vejo os teus seios, absortos
Sobre um pequeno ser
Alexandre O’Neill
nuvem
Como nuvens pelo céu
Passam os sonhos por mim.
Nenhum dos sonhos é meu
Embora eu os sonhe assim.
São coisas no alto que são
Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece.
Símbolos? Sonhos? Quem torna
Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transtorna?
Que coisa inútil me dói?
Fernando Pessoa
Essa negra Fulô
Essa negra Fulô, poema de Jorge de Lima (1895 - 1953) dito por João Villaret no Teatro S. Luís em Lisboa, em 1957.
Essa Negra Fulô
Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a minha cama,
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!
Essa negra Fulô!
Essa negrinha Fulô
ficou logo pra mucama,
pra vigiar a Sinhá
pra engomar pro Sinhô!
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!
Essa negra Fulô!
“Era um dia uma princesa
que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco.”
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô? Ó Fulô?
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
“Minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou.”
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô? Ó Fulô?
(Era a fala da Sinhá
Chamando a negra Fulô.)
Cadê meu frasco de cheiro
Que teu Sinhô me mandou?
— Ah! Foi você que roubou!
Ah! Foi você que roubou!
O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa.
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô.)
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê meu lenço de rendas,
Cadê meu cinto, meu broche,
Cadê o meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou.
Ah! foi você que roubou.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dêle pulou
nuinha a negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê, cadê teu Sinhô
que Nosso Senhor me mandou?
Ah! Foi você que roubou,
foi você, negra fulô?
Essa negra Fulô!
Carlos Drummond de Andrade
árvore
«Glória aos fotógrafos, a essa objectiva humilde que vai visitar as árvores na mata, no jardim público ou à beira da estrada, e delas recolhe a imagem menos imperfeita, porque menos individualista - árvore em estado de árvore. Não me achando em condições de possuir um sítio, nem mesmo uma araucária particular, incompatível com as dimensões do metro quadrado em que resido, eu (e aqui sou João, Leovigildo, Heitor, homem urbano em geral) consolo-me contemplando algumas fotografias de olmos, faias, eucaliptos, jequitibás, espécies resinosas e essências. Amo vê-las em grupo ou isoladas, oferecendo à pressão do vento a massa compacta de folhagem; reflectindo, interceptando ou matizando os raios solares que tentam penetrá-las; lavando-se à beira da corrente, em sincera solidão; ou ainda contrastando com os frágeis monumentos de pedra, tijolo e cimento, que chamamos de casas, e que é tão raro não "sobrarem" na natureza; e até mesmo esparsas entre esses outros monumentos, os mais frágeis de todos, de nervos e vasos sanguíneos, que chamamos homens, e tampouco sabem integrar-se no conjunto natural onde folhas, raízes, insetos e ventos se organizam sem política.»
Carlos Drummond de Andrade, Passeios na Ilha (1952)
Delfos
To the Oracle at Delphi
Great Oracle, why are you staring at me,
do I baffle you, do I make you despair?
I, Americus, the American,
wrought from the dark in my mother long ago,
from the dark of ancient Europa--
Why are you staring at me now
in the dusk of our civilization--
Why are you staring at me
as if I were America itself
the new Empire
vaster than any in ancient days
with its electronic highways
carrying its corporate monoculture
around the world
And English the Latin of our days--
Great Oracle, sleeping through the centuries,
Awaken now at last
And tell us how to save us from ourselves
and how to survive our own rulers
who would make a plutocracy of our democracy
in the Great Divide
between the rich and the poor
in whom Walt Whitman heard America singing
O long-silent Sybil,
you of the winged dreams,
Speak out from your temple of light
as the serious constellations
with Greek names
still stare down on us
as a lighthouse moves its megaphone
over the sea
Speak out and shine upon us
the sea-light of Greece
the diamond light of Greece
Far-seeing Sybil, forever hidden,
Come out of your cave at last
And speak to us in the poet’s voice
the voice of the fourth person singular
the voice of the inscrutable future
the voice of the people mixed
with a wild soft laughter--
And give us new dreams to dream,
Give us new myths to live by!
Lawrence Ferlinghetti, 1919
Menhir do Outeiro, 2015
MENIR
Salve, falo sagrado,
Erecto na planura
Ajoelhada!
Quente e alada
Tesura
De granito,
Que, da terra emprenhada,
Emprenhas o infinito!
MIGUEL TORGA, Diário XIV, Coimbra, 1995, p. 1461.
Eugénio de Andrade
“Não sejas como a névoa, nem quimera.
Demora-te, demora-te assim:
Faz do olhar
tempo sem tempo, espaço
limpo – do deserto ou do mar.”
Eugénio de Andrade