Lee Miller

Lee Miller fotografada por Man Ray,

Elizabeth Lee Miller (1907-1977)

 

A arte move-se por grandes paixões. E raros são os percursos artísticos que não sejam acompanhados pela dor ou amargura vivenciada. Tenho vindo a publicar algumas estórias que fizeram história das “mulheres e a arte” numa tentativa de reabilitar uma visão deliberadamente esquecida. Grandes mulheres artistas, obras esquecidas, vidas apaixonadas que permanecem rasuradas. É o caso de Lee Miller, uma jovem que, aos vinte anos, ganhou notoriedade como modelo na capa da revista Vogue (março de 1927). A beleza de Lee Miller fez-se logo notar nos vários trabalhos realizados de moda e publicados nas revistas especializadas. Lee Miller não era apenas um modelo de moda, ela tinha outras ambições não só como fotógrafa, mas também como artista plástica. Paris era o seu objectivo, a arte era a sua pretensão. A cidade das luzes era o centro cultural donde emanava os grandes movimentos artísticos do início do século XX. A chamada Vanguarda. Paris era desejada, cobiçada, por todos aqueles que almejavam participar nesse momento histórico e civilizacional. Um escol de artistas oriundos de todo os continentes, chegados a Paris, fazem-se notar pela sua irreverência e pela sua ousadia no mundo cultural. Estávamos num período hedonista onde a provocação protagonizada pelo movimento dadaísta ganhavam mais adeptos e seguidores. Disso fez eco a escritora e mecenas, americana, Gertrude Stein ao publicitar várias crónicas enaltecendo a vida parisiense, nomeadamente a cultura artística. Os irmãos de Gertrude Stein instalam-se em Paris, na Rue de Fleurus, 27, um apartamento de dois pisos, e começam a sua colecção de arte: obras de Picasso e Matisse, entre outros, são exibidas nos saraus por eles patrocinados. O interesse por obras de arte desperta curiosidade em novos colecionadores. O novo mundo estava ávido em acompanhar a modernidade europeia. As viagens transatlânticas começam a fazer-se com regularidade por parte de uma burguesia endinheirada, com estadas cada vez mais prolongadas, reforçando o lado mítico da vida parisiense. Lee Miller é atraída pelo fascínio europeu e viaja para Paris, em 1929, com o objectivo de seduzir o meio artístico, não só com a sua beleza, mas também com a vontade e determinação em afirmar-se na vida artística europeia. Chegada a Paris, bateu à porta de Man Ray e pediu-lhe para que a aceitasse (como aluna) no seu estúdio com o propósito de aprofundar os conhecimentos técnicos e teóricos da arte fotográfica. Man Ray recusou, dizendo que não aceitava alunos; mas logo se tornou sua assistente e modelo e, num piscar de olhos, Lee Miller passou a ser a sua musa e amante[1]. Foi uma simbiose perfeita entre a beleza, a paixão e a arte registada pela câmara de Man Ray. O tempo foi congelado nas inúmeras fotografias Lee Miller. A paixão foi imortalizada nesses papéis impregnados em sais de prata. Em 1932, participa no movimento surrealista e entre o seu círculo de amizades estavam outros artistas como Pablo Picasso, Paul Éluard e Jean Cocteau que a convidou a participar no elenco do filme “O sangue de um Poeta” cabendo-lhe a personagem de uma mulher (deusa) que se transforma em estátua grega simbolizando a perfeição. Lee Miller ganha estatuto e reconhecimento entre os seus pares realizando várias fotografias com um cunho pessoal, apesar de muitas delas se confundirem com as do Man Ray. A modelo, a musa, a amante rivaliza agora com o seu mestre. Uma série de fotografias pertencentes a Lee Miller cuja autoria era reivindicada por Man Ray foi o pomo da discórdia entre os dois amantes. Colérico, Man Ray, empunhou um x-ato e agrediu-a no pescoço. Um acto tempestuoso, uma ruptura anunciada. A devastadora separação dos “artistas amantes” foi inevitável.

“Objecto Indestrutível”, 1933

 Man Ray, abalado pelo desenlace, nunca se recompôs desse sofrimento. Sublimará a dor numa peça “Objecto Indestrutível[2]”, 1933, em que coloca o olho recortado de Lee no ponteiro do metrómano: segundo Man Ray, escrito em anexo à peça, é “um olho da fotografia de alguém que foi amada, mas não é mais vista”. Prostrado, pintará um quadro (surrealista) com uns lábios (de Lee Miller) sobrevoando o Observatório de Paris. Lee Miller regressa a New York, em 1932, onde abriu um estúdio de fotografia em parceria com o seu irmão Erik que trabalhava com o fotógrafo de moda Toni von Horn[3]. Em 1937, a musa surrealista era agora correspondente de guerra, como fotógrafa, durante a Segunda Guerra Mundial criando um registo fotojornalístico único. A fotógrafa está de regresso à Europa e além de ter visto os seus trabalhos como repórter divulgados e reconhecidos, foi também tempo para se reconciliar com o seu antigo amante tornando-se amiga até ao final da vida. Foi uma espécie de armistício amoroso. Ela agora estava obstinada em denunciar os horrores da Guerra e de todas as fotografias do conflito mundial aquela que melhor sintetiza em perfeição entre a arte e o horror é aquela que Lee Miller se deixa fotografar, pelo David E. Scherman, fotógrafo da "Life" e seu amante, na banheira do apartamento do Adolfo Hitler no momento em que foi anunciada a morte do ditador nazi. Esta fotografia fará história não só pelo momento insólito, o banho da fotógrafa, mas também pelo o horror da guerra representada: as botas enlameadas, o retrato do Fuhrer ainda presente em cima da banheira fazem parte da composição que nos instiga para uma leitura irónica entre o Bem e o Mal representada pela figura perversa. Scherman haveria de afirmar, mais tarde, “que em toda a guerra não encontrou ninguém com mais ódio aos nazis do que ela”.  Em 1947, a vida tende para a normalidade e Lee Miller casa com Roland Penrose, um artista e colecionador britânico. Dessa união nasce um filho, Antony Penrose e é pelo testemunho do filho que se sabe da verdadeira amargura de Lee Miller: “Ela [Lee Miller] ficou muito feliz em permitir que suas fotografias fossem publicadas sob o nome de Man Ray”.  A paixão, “o amor louco”, era tão forte que “era como se fôssemos a mesma pessoa, então não importava”.

Lee Miller fotografada por David E. Scherman, 1945

 

A l'heure de l'observatoire, les Amoureux, 1932-34

créditos: arthistoryproject

 

Texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira

 


[1] Charles Darwent, ed. (27 de janeiro de 2013). «Man crush: When Man Ray met Lee Miller». The Independent.

[2] Man Ray, faz alusão à força do desejo sexual criando um “readymade”: “Objecto Indestrutível”, 1923. Em 1933, quando a amante o abandonou Man Ray acrescentou o olho de Lee Miller ao “Objecto a ser destruído”. Em 1957, um grupo de estudantes destruiu o metrónomo durante uma exposição Dada, em Paris.

[3] Nicole Olmos (ed.). «The Life of Lee Miller, From Fashion To War Photography». The Culture Trip.