Bernini: sob o signo do pathos

Costanza Bonarelli [*], 1638-9. Museo Nazionale del Bargello, Florença

Há certas obras de arte que nos fazem estremecer. A arte tem esta capacidade de nos transformar, e quando isso acontece exaltamos o génio artístico. O génio é a nossa capacidade de espanto com as coisas e com os objectos que nos surpreende. Admiramos a busca incessante pela perfeição, a constante inquietação artística consagrada em cada trabalho apresentado. E é neste palco, neste espaço exuberante, que a arte Barroca se move apresentando-nos uma nova narrativa, congelando o momento, sublinhando os altos contrastes, sublimado o erotismo dos corpos, seduzindo os nossos sentidos através do Pathos (a paixão, o afeto, o excesso, até mesmo a dor e ou o sofrimento) pelo qual podemos experienciar. Perscrutamos em cada cinzelada a paixão dedicada; observamos em cada pincelada o sentimento denunciado; sublimamos nas notas musicais a harmonia sugerida; remimos as nossas culpas no detalhe demonstrado. E é neste enquadramento em particular que a obra de Gian Lorenzo Bernini se move. Uma arte centrada na estética clássica e no poder do erotismo, cujas obras mais significativas são o melhor exemplo: David, Apolo e Dafne, Rapto de Prosérpina [...] e num caso particular, que a torna única, o Êxtase de Santa Teresa. Mas há uma obra, um busto, que esconde uma paixão patológica entre Bernini e uma sedutora mulher com a qual manteve um relacionamento tórrido. Gian Lorenzo Bernini (Il Cavaliere, como era conhecido) tinha Roma a seus pés. O grande artista (escultor, arquitecto e pintor, entre outras artes) era um homem devoto, frequentador assíduo da igreja, circulava pelos corredores do Vaticano com a bonomia e a graça de todos Papas (que conheceu ao longo dos anos) e era também um assíduo frequentador dos palácios das famílias nobres. As encomendas abundavam e na sua oficina pululavam alguns dos melhores escultores assistentes. Absorto com tanto trabalho afirmava recorrentemente que não tinha tempo para pensar em casamento e os seus filhos eram as suas esculturas. Mas nem sempre foi assim.  Como muitos outros artistas, teve sua vida pessoal marcada por relações e emoções complexas. Uma das histórias mais conhecidas relacionadas com a vida amorosa de Bernini envolveu a paixão por Costanza Bonarelli, esposa de um de seus assistentes, Matteo Bonarelli. O busto de Costanza realizado por Bernini é único, porque não resulta de uma encomenda particular. É uma obra privada que o artista pretendeu imortalizar a paixão experimentada. A falta de decoro de uma mulher casada testemunha o afeto que o escultor colocou nos pequenos detalhes. O rosto é marcado por expressões intensas e realizado com grande realismo técnico e psicológico. Assim, o busto além de evidenciar um penteado descuidado, sem estar escovado, tem a testa franzida que evidencia os enormes olhos, vivos, reveladores da tensão vivida. São espectadores e ao mesmo tempo deixam perscrutar a cumplicidade envolvida. É um retrato cujo erotismo presente é patenteado na camisa de dormir desabotoada e no elevado movimento sensual do decote, reforçado pelos lábios carnudos entreabertos, denunciando a forte ligação amorosa mantida pelos dois amantes. É um retrato físico e tempestuoso mantido em segredo, só interrompido pela descoberta de infidelidade de Costanza com o seu irmão, Luigi Bernini. Encolerizado com a traição levou Gian Lorenzo Bernini a um ato tresloucado: Il Cavaliere quase matou o seu irmão e mandou desfigurar a sua amante. Mas o que é que pode justificar tal atitude? Nada, diremos muitos de nós. Costanza, condenada por adultério e fornicação foi obrigada a recolher-se numa ordem religiosa[1]; Luigi foi exilado em Bolonha; enquanto Bernini admoestado pelo Papa Urbano VIII foi obrigado a pagar uma multa e a casar com Caterina Tezio[2]. Foi um período conturbado vivido por Bernini que coincidiu com o maior desaire da sua vida profissional. O Papa Urbano VIII tinha encomendado ao escultor uma nova fachada da Basílica de São Pedro, que o escultor desenhou. Duas torres sineiras de proporções monumentais e, em última análise, desastrosas: uma das torres sineiras cedeu e temia-se ameaçar a integridade estrutural da fachada do edifício. O vexame foi devastador porque foi o seu arqui-rival, arquitecto Borromini, que denunciou através do estudo das evidencias estruturais e da impossibilidade construtiva da ambiciosa obra de Bernini. Foram demolidas. Com a morte do papa Urbano VIIII, em 1644, e a eleição de Inocêncio X, Bernini perdeu o seu lugar privilegiado no Vaticano para seu rival Borromini.

Em 1647, os ventos sopram de feição, Bernini recebeu uma encomenda do Cardeal Federico Cornaro para uma capela funerária, para a sua família, na Igreja Santa Maria dela Vittoria dedicada a Santa Teresa D’Ávila (carmelitas descalças) seguindo as determinações Tridentinas que a arte religiosa deveria ser inteligível e realista, e servir acima de tudo, como estímulo emocional à religiosidade. Bernini dominava todas artes e depois de ler os poemas místicos de Santa Teresa d’Ávila revelou, em obra escultórica, ter experienciado todo aquele sentimento na sua vida terrena com Costanza...

Êxtase de Santa Teresa de Bernini

Igreja Santa Maria dela Vittoria

Roma

©Luís Barreira, Roma, 2023

A escultura resultante, “O Êxtase de Santa Teresa”, inserida na arquitectura da capela, é reconhecida por muitos críticos de arte como talvez a conquista suprema do poder do erotismo na escultura religiosa do século XVII. 


[1] Domus Pia de Urbe (Mosteiro de Casa Pia)

[2] Mormando, Franco. Domenico Bernini: The Life of Gian Lorenzo Bernini: A Translation and Critical Edition, 2011.

[*]  Costanza Bonarelli foi uma nobre, comerciante e negociante de arte italiana, descendente de uma família nobre de Siena. Ela é conhecida por ser retratada pelo artista Gian Lorenzo Bernini no busto agora exibido no Museu Nacional de Bargello em Florença, criado entre 1636 e 1639.