Jeanne Duval - négresse fatale

Edouard Manet, Jeanne Duval: La Maîtresse de Baudelaire, 1862

watercolour,

(17 x 24 cm)

Kunsthalle, Bremen, Germany

Manet tinha 30 anos quando pintou esta horrível e triste aguarela. Uma perna desarticulada que sai de um vestido rodado sem se antever implicitamente a ligação estrutural com o restante corpo, uma mão desproporcionada suspensa no canapé e um rosto melancólico deixa antever a decadência de um corpo que outrora foi símbolo de sensualidade, de beleza, de transgressão e de mistério. Trata-se de um esboço. Um apontamento rápido de alguém que mereceu atenção. Um estudo preparatório para uma pintura a óleo do mesmo autor[1]. O seu nome era Jeanne. Jeanne Duval era uma mulher mestiça, “négresse”, que viveu em Paris. Os seus traços exóticos não passaram desapercebidos ao gosto parisiense e em particular a Charles Baudelaire. Viveu numa Paris que se rebelava contra o “bom gosto” das academias. Numa cidade que pululava de vida e de progresso. Numa comunidade artística que paulatinamente se insurgia contra o conformismo romântico. É nesta nova realidade que a Jeanne Duval se move. Uma mulher de vida dissoluta, bailarina e amante incondicional.

Não sabemos as suas origens (provavelmente vinda do Haiti), nem o seu verdadeiro apelido (Duval, Lemer, Naeltjens, Prévost, Prosper, foram também usados), nem a sua data de nascimento, nem a data da sua morte. Uma identidade mantida em segredo, suportada pelo preconceito racista da sociedade francesa do século XIX e pela vida arrebatada vivida nos extremos. Os seus mais directos delatores haveriam de a acusar de perversões, de ser inculta, ou simplesmente condená-la ao ostracismo. Eis o retrato mais fiel de uma mulher que teima permanecer incógnita e, ao mesmo tempo, nos fascina.  Courbet no quadro Atelier do Pintor[2], 1855, retratou-a junto do seu amante. Porém, descreve-a como uma “negra ao espelho”, que se encontra no lado direito por cima de Baudelaire a ler e como forma de justificar o seu acto apaga-a do escol de amigos do pintor. É um fantasma na tela do pintor, é um borrão. Provavelmente terá sido uma maneira eufemística de justificar o estigma racista!? Ou foi para evitar algum escândalo? Espantem-se! O próprio Courbet, autor do quadro “L’Origine du monde[3] - A Origem do Mundo” (1866), a censurar a figura incómoda. Não me parece verosímil. Jeanne dá-se a conhecer através das camadas de tinta sobrepostas que teimam a ocultá-la. Jeanne não é uma figura retratável, ou passível de apresentação pública (talvez porque Courbet tenha apresentado este quadro a um Júri para a Feira Mundial de Paris, 1855, e não quisesse ferir o “bom gosto” dos jurados[4]). Não há margens para dúvidas de que a figura, quase impercetível a assombrar a pintura, é a Jeanne Duval. Encontramo-la no preconceito que a tentou rasurar. Adivinhamo-la na misteriosa história de um amor tempestuosa mantida com Charles Baudelaire. A verdadeira Jeanne Duval é aquela que corre como se fosse um fluido na pena do “poeta maldito”. Sabemo-lo nas imagens poéticas vertidas em suor e ardor romântico em “Flores do Mal”.

Gustave Courbet, Atelier do Pintor, 1855. [361X598 cm] Museu D’Orsay

Baudelaire depois de ter recebido uma avultada herança acomodou Jeanne (a sua “vénus negra” conforme Baudelaire gostava de chamar) num apartamento perto de si, na Île de la Cité. O poeta não lidou bem com a gestão da fortuna recebida e um ano passado a vida de desafogo se tinha esvaído. Porém, Jeanne Duval não era simplesmente a sua amante, era a fonte, uma carniça[1], vivida e testemunhada pelo poeta:

...

As pernas para o ar, como uma mulher lasciva,

Entre letais transpirações,

Abria de maneira lânguida e ostensiva

Seu ventre a estuar de exalações.

 

...

“negra ao espelho”

A amante que o poeta mais amou era símbolo da beleza perigosa. Jeanne era o mistério de uma mulata, a paixão, a transgressão, o corpo poiético para Baudelaire. Ela era a “amante das amantes” dedicando-lhe vários poemas (Le Balcon, Parfum exotique, La chevalure, Sed non satiata, Le sepent qui danse e Une charogne). Tendo sido considerada uma literatura obscena[2] pelo promotor Ernest Pinard que condenou o autor e o seu editor, justificando “insultar a moralidade pública e religiosa e a boa moral”. Se a condenação abalou o frágil corpo do poeta, a “négresse” transformou-se em ópio para a sua escrita poética. Os amantes entregaram-se a uma vida de excessos, álcool e drogas. Abatido pelo julgamento, mas não pela paixão, Baudelaire procurava a essência dos seus próprios limites criativos. Haveriam de partilhar também a doença degenerativa (sífilis) que lhes foi fatal. O “poeta maldito” morreu sem que não deixasse de mencionar o seu tormento: “quis extrair a quinta essência de tudo, [e a “négresse”] deu-me a sua lama e eu transformei-a em ouro”. A mulher que inspirou alguns dos mais belos poemas deste período [realismo oitocentista] definhou passados alguns anos. Morreu sem deixar o seu testemunho. O seu rasgo indelével e tumultuoso com o poeta emergiu em “As Flores do Mal”, onde Baudelaire anotou: “Neste livro atroz, pus todo o meu pensamento, todo o meu coração, toda a minha religião (travestida), todo o meu ódio”.

Deixemo-nos embriagar pelo génio das Flores do Mal, que tanto perturbou a sociedade parisiense, e acantonemo-nos na assombrada aparição. Jeanne é um fantasma na nossa consciência colectiva: o racismo.

 

Texto, 2023 © Luís Carvalho Barreira


Jeanne Duval (Lemer, Naeltjens, Prévost, Prosper)

Fotografada por Félix Nadar

Uma Carniça [As flores do mal, Charles Baudelaire]

 

Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos

Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,

Uma carniça repugnante.

 

As pernas para cima, qual mulher lasciva,

A transpirar miasmas e humores,
Eis que as abria desleixada e repulsiva,
O ventre prenhe de livores.

 

Ardia o sol naquela pútrida torpeza,

Como a cozê-la em rubra pira
E para o cêntuplo volver à Natureza

Tudo o que ali ela reunira.

 

E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça

Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que sobre a relva escassa

Chegaste quase a sucumbir.

 

Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,

Dali saiam negros bandos
De larvas, a escorrer como um líquido grosso

Por entre esses trapos nefandos.

 

E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,

Que esguichava a borbulhar,
Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,

Vivesse a se multiplicar.

 

E esse mundo emitia uma bulha esquisita,

Como vento ou água corrente,
Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita

E à joeira deixa novamente.

 

As formas fluíam como um sonho além da vista,

Um frouxo esboço em agonia,
Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista

Apenas de memória um dia.

 

Por trás das rochas, irrequieta, uma cadela

Em nós fixava o olho zangado,

Aguardando o momento de reaver àquela

Carniça abjeta o seu bocado.

 

– Pois há de ser como essa coisa apodrecida,

Essa medonha corrupção,
Estrela de meus olhos, sol da minha vida,

Tu, meu anjo e minha paixão!

 

Sim! Tal serás um dia, ó deusa da beleza,

Após a bênção derradeira,
Quando, sob a erva e as florações da natureza,

Tornares afinal à poeira.

 

Então, querida, dize à carne que se arruína,
Ao verme que te beija o rosto,
Que eu preservarei a forma e a substância divina

De meu amor já decomposto!



[1] Título do poema: Baudelaire, Charles, As Flores do Mal, Editora Relógio D’Água, 2003. Tradução: Maria Gabriela Llansol

[2] Em 1857, seis poemas considerados particularmente infames foram retirados da venda e só em 1949 essas “peças condenadas” foram reintegradas em Fleurs du mal.

[1] Edouard Manet, La Maîtresse de Baudelaire, 1862, oil on canvas, 90 x 113 cm, Szépmüvészeti Müzeum, Budapest, Hungary

[2] A obra tem como título “O Atelier do Pintor”, seguido de um subtítulo muito sugestivo: “Alegoria Real que define uma fase de sete anos da minha vida artística e moral”. “Em Paris, no Museu d"Orsay, encontra-se uma obra monumental de Gustave Courbet, uma alegoria real, pintada em 1855, intitulada O Ateliê do Pintor. A pintura representa o artista diante da tela, rodeado dos seus modelos.” in site RTP

“No primeiro grupo, os da direita, podemos reconhecer o perfil barbudo do colecionador de arte Alfred Bruyas, e atrás dele, de frente para nós, o filósofo Proudhon. O crítico Champfleury está sentado em um banquinho, enquanto Baudelaire está absorto num livro. O casal em primeiro plano personifica os amantes da arte e, perto da janela, dois amantes representam o amor livre”. in site: Musée d’Orsay

[3] Gustave Courbet, L’Origine du monde, 1866. (46X55 cm) Musée d’Orsay. Assunto: vulva, mulher.

[4] Esta obra foi recusada pelo júri da Feira Mundial de Paris de 1855. Courbet, com a ajuda de Alfred Bruyas, abriu sua própria exposição (O Pavilhão do Realismo) perto da exposição oficial; este foi o precursor dos vários Salon des Refusés