Luís Carvalho Barreira

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Mito de Osíris

Templo de Luxor

Divindade Min

Foto by Luís Barreira

arquivo: 2018_07_16_DSCF9242

Um phallus[1] negro

Há comportamentos sociais baseados em crenças ou em superstições que são transversais a quase todas as culturas ou civilizações. Estes actos, supostamente espontâneos, não são mais do que decalques em finas camadas translucidas que a história se encarrega de revelar em prol de uma memória colectiva. A complexidade de crenças religiosas no antigo Egipto exige-nos algum distanciamento para melhor compreender certos comportamentos sociais e civilizacionais. O Templo de Luxor[2] dedicado a Ámon (deus do Sol) é exemplo. À medida que se descobre as diversas camadas históricas, que o tempo e os homens se encarregaram de registar, o visitante depara-se com um phallus negro no santuário provocando, mesmo ao mais incauto visitante, espanto e admiração. Uma figura de uma divindade itifálica chamada Min — deus da fertilidade — é alvo de atenção dos novos “peregrinos”. Assim, a compreensão da civilização egípcia passa pela revelação da imagética verificada; sendo as manifestações artísticas, provavelmente, aquelas que melhor sintetizam o pensamento e a essência de um povo e de uma cultura.

Na antiga capital, Tebas, o Templo de Luxor, que outrora serviu ao culto ao deus Ámon, transformou-se, nos dias de hoje, em práticas de veneração pouco ortodoxas por parte de muitos dos “forasteiros” que ali se dirigem. O fascínio pelo Templo de Luxor não é só de hoje. Alexandre Magno (332 a.C.) quando conquistou o Egipto reconstituiu o santuário em sua honra (respeitando os costumes e as práticas religiosas); os cristãos (I d.C.) converteram-no numa igreja apagando quase por completo todos os vestígios pagãos[3]; e os muçulmanos edificaram uma mesquita de Abou El-Hagag (X d.C.) dentro do templo ainda hoje aberta ao culto. Este arrebatamento e admiração está patente no enorme “saque” perpetrado durante séculos por parte das potências conquistadoras e colonizadoras, que os dois obeliscos do templo de Luxor são exemplos: um encontra-se no seu local original e o outro foi levado para Paris[4]. Poder-se-á perguntar: terão o mesmo carácter simbólico estes dois obeliscos em contextos diferentes? Confesso que no dia em que vi o obelisco levado de Luxor para Paris, erigido na Praça da Concórdia, me fez lembrar as cabeças guilhotinadas da revolução francesa — ironia do destino; o outro, em Luxor, levou-me a indagar a complexidade desta civilização e as origens — o corpo poiético — de tais construções. Em suma, o que o homem tende em apagar, a idiossincrasia humana tende a unificar. Assim, os novos visitantes do templo de Luxor chegam com outros propósitos, com outras crenças e, quiçá, com as mesmas inquietações.

As paredes laterais exteriores do santuário do templo de Luxor estão cobertas de hieróglifos e imagens referentes à mitologia egípcia sobressaindo, numa das paredes, o deus Min com o falo erecto, com uma cor negra, testemunha da oleosidade deixada pelo contacto táctil dos recentes forasteiros ao longo dos últimos tempos. Estes novos adoradores, crentes, ou supersticiosos, acreditam que os desejos expressados serão correspondidos se passarem a mão pelo phallus de Min. Verdade ou não, não pude comprová-lo. O que posso afirmar é que o falo, enquanto símbolo de virilidade, força e de fecundidade, foi adorado por diversos povos desde a antiguidade[5] até aos nossos dias[6] ganhando formas elaboradas, quiçá dissimuladas, remetendo-nos quase sempre para simbologia do poder.

Se Ámon é o deus do sol a que o templo de Luxor foi dedicado, Min era uma divindade itifálica egípcia promotora da fertilidade presente na vida quotidiana. E as formas escultóricas que melhor representam o sincretismo de Ámon, de Min e de Osíris são seguramente as formas erectas: os obeliscos. Recorremo-nos à imagem e à sua iconologia assim como à mitologia egípcia para podermos encontrar esta analogia entre o phallus e os obeliscos. Assim, revestidos de grande valor simbólico os obeliscos, culminados por formas piramidais — cúspides —, são a depuração da forma inspiradoras de muitas estruturas na arte e na arquitectura egípcia inclusive as grandes pirâmides. Uma das primeiras manifestações artísticas conhecidas é a pedra benben (piramidal) representando a terra, o monte, onde o deus Sol (Ámon-Rá), que entre o ciclo do nascer e o ocaso, executa os actos de criação. Deste modo as pirâmides simbolizam, sobretudo, as origens e o conhecimento. O interior da pirâmide pertence ao mundo do além, dos mortos.

Reza a lenda que Geb (Terra) e Nut (Firmamento) tiveram quatro filhos: Seth, Osíris, Isis e Néptis. Osíris, rei do Egipto, casou-se com a sua irmã Isis e Seth com desejo do poder planeou a morte de Osíris: meteu-o num sarcófago e atirou-o ao Nilo tendo aportado a Byblos, na Síria. Isis, numa visão, descobriu o que Seth perpetrou e foi em busca do marido a Byblos recuperando o seu corpo. Seth num último acto de desespero esquartejou Osíris em catorze pedaços espalhando-o por todo o Egipto impedindo-o assim de um possível regresso à vida. Apesar de tudo, Isis recuperou o corpo do marido excepto o pénis que Seth atirara ao Nilo tendo sido comido por um peixe. Então, Isis concebeu um pénis artificial acabando por dar à luz dois filhos (Hórus e Min). Hórus, tendo sido amamentado até idade adiantada, acabou por vingar a morte do pai assassinando Seth. Por último, Anúbis[7] ressuscitou Osíris com um “aperto de mão” passando a reinar a vida eterna e juiz dos mortos.

Será fácil de entender que a tríada divina — Osíris (pai), Isis (mãe) e Hórus (filho) — tenham sido as deidades egípcias mais importantes e que o phallus artificial simbolizando a fertilidade e a paternidade, que a “pedra gerou”, ganhe importância iconográfica. Primeiro na divindade Min, depois na pureza das formas geométricas. Não é de estranhar que o obelisco em torno do qual os egípcios estabeleceram culto tenha dado lugar às formas que melhor simbolizavam o poder: o poder que glorifica a memória de Osíris; o poder que menciona a proximidade do deus sol, Ámon, e por último, o poder que sintetiza as formas da natureza, dos picos das montanhas, lugares sagrados reservados aos mausoléus.

 


[1] Phallus [Latim]. Pénis erecto.

[2] Este templo era dedicado ao deus Amon, era também dedicado às divindades Mut (esposa de Amon) e Khonsu. Construído principalmente durante o reinado de Amenhotep III (1390 a 1352 a.C.), é um belo exemplo da capacidade técnica e decorativa dos egípcios deste período.

 

[3]Em vez disso, deverão destruir os seus altares pagãos, quebrem os obeliscos que eles adoram e derrubem os seus vergonhosos ídolos. Não deverão adorar outro deus senão só Jeová, porque é um Deus que requer uma lealdade absoluta e uma devoção exclusiva.” Êxodo 34:12  (O Livro)

[4] O vice-rei do Egipto, Mehmet Ali, ofereceu os dois obeliscos de Luxor ao povo francês em 1829, mas só um é que foi colocado em Paris. 

[5] Abichegam é uma cerimónia hindu de culto ao falo ligada à divindade Xiva; Kurupi é um deus mitológico guarani; Menhir cravado na terra como forma de a fecundar pelos povos pré-históricos; Min é uma divindade egípcia itifálica, que além de proteger as caravanas, promovia a  fertilidade; Priapo é o deus grego da fertilidade, filho de Dioniso e Afrodite; e Frey deus nórdico com os mesmos propósitos.

[6] O mais antigo phallus encontrado foi na gruta Hohle Fels e estima-se ter cerca de 28000 anos. E o mais recente e significativo culto ao phallus celebra-se, ainda hoje, no “Festival do Falo de Aço” — Kanamara Matsuri — na cidade de Kawasaki, Japão, celebrando a entrada da primavera de forma inusitada.

[7] Deus egípcio antigo dos mortos e moribundos, guiava e conduzia a alma dos mortos no submundo, Anúbis era sempre representado com cabeça de chacal, entretanto os egiptólogos mais conservadores afirmam que não há como saber com certeza o animal que o representa, era sempre associado com a mumificação e a vida após a morte na mitologia egípcia, também associado como protector das pirâmides.

 

Templo de Luxor, 2018

arquivo: 2018_07_16_DSCF9259

 

Texto/Fotos 2018©Luís Barreira