Luís Carvalho Barreira

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Arte ou culto do génio

Claude Monet, Impression, soleil levant, 1872

Arte ou culto do génio?

Do objecto de culto ao culto do indivíduo. Kandinsky afirmava que toda a arte é sacra ou não é arte… concordamos, a arte tem essa capacidade de nos provocar espanto, admiração e respeitabilidade. Este arrebatamento provocado pelo objecto artístico provoca em nós uma certa veneração ou culto[1].

Mas quando falamos de arte falamos de quê?

Talvez a nossa memória nos atraiçoe e nos remeta somente para uma arte nascida no século XIX, que nos condiciona na maneira como apreciarmos os objectos artísticos até aos nossos dias. Ancoramo-nos praticamente no artista génio, nascido no individualismo romântico. No egocentrismo deste artista. Na assunção do eu lírico que interage com a Natureza e com a natureza das coisas. No arrebatamento do sublime. No idealismo romântico exacerbado de sentimentalismo. No grau de subjectividade implícito aos objectos artísticos criados. No niilismo filosófico e religioso. No artista incompreendido. No artista maldito. No artista doentio que padece e sofre.

Quase toda a arte desde os finais do século XIX até à actualidade enferma destes mesmos pressupostos verificáveis nos inúmeros estilos e movimentos artísticos ocorridos neste período de tempo. Podemos assegurar que o romantismo é o triunfo do indivíduo. Em suma, o objecto de culto é o culto do indivíduo.

Centrados no artista não conseguimos afirmar, mesmo com o grau de subjectividade que essa avaliação acarreta, que Pablo Picasso ou, então, que Henri Matisse (por exemplo) sejam os grandes pintores do século XX; quanto muito podemos dizer que o primeiro foi um dos melhores pintores Cubistas e que o segundo foi expoente máximo do Fauvismo. Poderíamos convocar outros exemplos para ilustrar que a arte (deste período em análise, dispersa em múltiplos movimentos artísticos) é a arte do indivíduo. Recuemos a finais do século XIX e à pintura de Claude Monet: talvez possamos dizer que ele foi um dos maiores vultos do movimento Impressionista. Porém, sabemos que este movimento não nasce de uma reflexão teórica, de um manifesto, nem de uma homogeneidade estilística e plástica pré-concebida. Nasce de uma reacção ao “bom gosto” academicista, regrado, por parte dos artistas recusados no Salão de Paris (destinado aos artistas membros da Real Academia Francesa de Pintura e Escultura). De facto, a heterogeneidade de processos estilísticos eram notórios, pese embora Renoir ter dito que “numa manhã nenhum de nós já não tinha preto, e assim nasceu o Impressionismo”, numa tentativa de encontrar pontos comuns transversais aos pintores em ruptura com o Naturalismo oriundos (muitos deles) da escola de Barbizon. Apesar de todos os esforços para encontrar unicidade no movimento foi pela pena do escritor e pintor Louis Leroy que, em tons pejorativos, observando um quadro de Monet, Impressão - Nascer do Sol, exclamou: -“eu bem o sabia! Pensava eu, se estou impressionado é porque lá há uma impressão. E que liberdade, que suavidade de pincel! Um papel de parede é mais elaborado que esta cena marinha[2]”. A crítica poderá não ter sido totalmente descabida, mas analisando à distância e colocados na posição do triunfo dos “recusados”, a crítica sai denegrida. Talvez tenha sido a primeira maior derrota da crítica de arte e dos críticos que doravante quando não gostam, não o dizem, ignoram. Porém, assumida a designação de Impressionistas por parte destes pintores (recusados), dando-lhes força e coesão, cedo se depararam com as divergências individuais: Paul Cézanne haveria de imprimir às suas obras um cunho pessoal abrindo portas ao Cubismo de Braque e Picasso; Paul Gauguin haveria de encontrar nas cores puras do exotismo haitiano a afirmação pessoal influenciando não só os pintores simbolistas, como também os fauvistas; Van Gogh uma mente conturbada e espirito inquieto desperta, inicialmente, para o realismo social acabando nas magistrais obras de índole expressionistas. Em abono da verdade, e para sermos rigorosos, falamos de percursos artísticos individuais com mútuos contágios num perpétuo movimento de pesquisa estética e de abordagem plástica egocêntrica. A arte do século XX vai sublinhar este aparente paradoxo de niilização da arte e do arrebatamento do indivíduo enquanto artista. Esta dispersão terá consequências determinantes na maneira como abordamos a criação artística. A arte que outrora nasceu de uma encomenda, de um caderno de encargos, de um programa bem definido, cabendo ao autor a mera execução (capacidades objectivas) passa paulatinamente para a subjectividade interpretativa centradas no indivíduo. É uma arte centrada no culto do ego… Seria fastidioso enumerar todos os movimentos artísticos e todos os artistas que almejaram a serem os percursores de um novo movimento. O triunfo do individualismo terá como consequência a dispersão de propostas e em corolário a sua efemeridade enquanto movimento. Enquanto o primeiro tende para a dispersão o segundo tende para a unicidade. E efectivamente a arte contemporânea é a arte do indivíduo.

Não evocando todos os movimentos artísticos (Cubismo, Futurismo, Fauvismo, Expressionismo, De Stjil e o Dadaísmo) do início do século XX, até à primeira Guerra Mundial, foram os Futuristas os primeiros a proporem uma radicalização contra o status quo artístico, político e cultural, com o seu manifesto publicado no jornal Le Figaro em 1909, propondo uma guerra sem tréguas a toda arte do passado, à destruição dos museus e a tudo aquilo que não convocasse o Futuro:  “um automóvel que ronca, que parece metralhar enquanto corre, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia[3]. As rupturas eram evidentes mas, por fim, foram os Dadaístas (1916) com as propostas mais radicais: recomendando a morte da arte, porque a arte é a vida; Dada é arte; Dada não é Nada. Os movimentos subsequentes são meros sucedâneos dos Dadaístas… A arte e os artistas deparam-se com novos campos plásticos e territórios a explorar. A massificação das escolas de ensino artístico, dos operadores e dos criadores não se coaduna com os valores tradicionais de objectividade técnica de representação ou nos modelos figurativos clássico. Assim, o corpo poiético da última metade do século XX «corresponde à niilização, à coisificação, à dispersão do corpo, à fragmentação, à criação volátil de novos signos e símbolos da arte, dando origem à exacerbação do individualismo nas suas mais díspares manifestações»[4]. Uma nova arte iconográfica.

R. Mutt, (are mutt / pacóvios), 1917

concebido por: Elsa von Freytag-Loringhoven (peça erradamente atribuída a Marcel Duchamp) é a grande gargalhada da arte contemporânea.

Depois do "ready-made" a arte nunca mais voltou a ser a mesma. Se alguma objectividade houve conferido no acto criativo, acompanhada por uma autenticidade observável, ela foi reduzida a um nível meramente rudimentar. Uma arte visual conceptual, ou mais artisticamente arrogantemente, a uma arte porque eu digo que é arte (Joseph Kosuth[5]). Não nos colocamos diametralmente opostos a esta singular firmeza, nem nos move nenhuma animosidade às novas formulações intelectuais de chamar "arte" a este ou aquele objecto ou, ainda, a qualquer actividade performativa. Interrogamo-nos sim, «no sentido e no dia em que a arte deixar de ser portadora da dimensão “poiética”, impossibilitando à comunidade artística construir um “juízo crítico”, capacidade extrema de sentido, dizível, na medida em que o objecto estético se caracteriza pela expressividade apreendida não só pelo sentimento, mas também pelo entendimento, diremos que a arte prostitui-se ao eclectismo crítico fuliginoso, ou às intervenções artísticas de simples persuasão, ou então, a valores perniciosos ditados pelo mercado “da arte de bem negociar”»[6].

Em epílogo, assistimos à transmutação do objecto de culto para o culto do individuo. Isto é arte, porque eles dizem que é arte. A arte passou a ser uma questão de crença e de Fé. A maior parte da arte “contemporânea” foi capturada pela especulação financeira e está refém da sua própria estrutura “religiosa” assente numa “cúria artística”. Os Museus, os Coleccionadores, as Galerias de Arte, os Directores criativos, os Curadores, os Críticos de arte e, agora, os Influencers, passam a desempenhar a missão de justificar culturalmente perante o poder político e económico. A entrada em cena destes novos protagonistas cabe-lhes a missão de “evangelizar” o seu público, potenciais crentes, de uma arte que se quer rara e única, (porque só essa é válida para o mercado) criando uma rede de influência filtrando, por omissão, todo o trabalho que se vem fazendo fora desse circuito. Acreditamos na resiliência de alguns artistas recusados, ostracizados, produtores de uma arte alternativa, fora dos ditames da moda que negam o culto centrado no artista, de uma arte que se transformou na actualidade em intervenções de simples persuasão e que é ditada unicamente por outros valores. Cientes da complexidade exógena à criação artística diríamos que a Arte deverá recusar o culto do egocentrismo e deixar ao “tempo, esse grande escultor,[7]” e à História, o papel de a perpetuar.

Os artistas criam. A Arte, essa é feita pelos Homens!

 

Texto, 1998-2018 © Luís Barreira

 



[1] Poderíamos compartimentar a História da Arte segundo o culto prestado:

Idolatrismo — Pré-história

Politeísmo — Antiguidade Clássica

Teocentrismo — Idade Média

Antropocentrismo — Renascimento e Barroco

Egocentrismo — Romantismo até aos nossos dias…

[2] Publicado no jornal Le Charivari.

[3] Manifesto Futurista, Marinetti, 1909

[4] Luís Barreira, Tese de Mestrado, O Corpo Poiético, pág.35

[5] Kosuth apud Acher, 2008

[6] Luís Barreira, Teoria da Arte, trabalho académico do Mestrado, p. 76

[7] YOURCENAR, Marguerite, O Tempo, esse grande escultor, Difel, 1985