O Divino e a Fertilidade
O Corpo pré-histórico – o Divino e a fertilidade.
E tudo terá começado – provavelmente – quando o Homo sapiens encontra na terra e na sua fertilidade a matéria mais directa da sua existência, muito antes da revolução agrícola (c. 10000 a.C.). Estamos a falar de um período de vários milhares de anos em que o Homem vai gradualmente deixar de ter uma vida nómada para se fixar e “domesticar” a natureza. Assiste a ciclos de vida que se regeneram segundo ritmos temporais constantes; repara na mudança do dia para a noite; observa o movimento dos astros (principalmente o Sol); presencia as estações do ano e em certos períodos anuais colhe os alimentos indispensáveis à sua vida. A noção de tempo é circular, finita. Finito em ciclos de vida que se renovam todos os anos. Uma realidade entendível porque é observável e partilhável através do conhecimento empírico quiçá herdado do saber dos seus ancestrais ou da partilha da comunidade onde está inserido. Esta noção de tempo esbarra quando tem consciência da finitude da sua existência: o desconhecimento e a morte. O desconhecimento será combatido paulatinamente pela experiência adquirida, pela ambição do saber e pelo entendimento de tudo aquilo que o envolve. A morte acrescenta uma nova unidade de tempo: o infinito, o absoluto, o sobrenatural, o divino. Esta ideia de absoluto, insondável mesmo nos dias de hoje, levá-lo-á a entregar-se ao livre arbítrio de entidades sobrenaturais: o divino. Uma realidade especulativa e transcendental. Esta dual dimensão entre a matéria e o transcendente; entre o corpo, o seu corpo, e o divino; entre o conhecimento e a morte; fará com que os objectos produzidos reflictam esta interacção comunicacional entre ele e a ideia de Absoluto. E o único motivo que o homem encontra para se poder expressar é com o seu corpo. Porque o corpo encerra em si todo o mistério existencial e manifesta-se segundo valores formais conhecíveis que lhe diz respeito.
O corpo, enquanto matéria, será o objecto eleito para enfatizar a ideia de absoluto entre a criação e o transcendente[1]. O homem conceberá a metafísica segundo modelos de uma realidade vivida. E é o corpo e com o corpo interagindo com a Natureza que os objectos ganham significado. A “arte” nasce, assim, de uma necessidade quase umbilical entre o Homem e a Natureza; entre a relação estabelecida entre a existência e a sua essência[2] (o que constitui a natureza do seu Ser), entre a pulsão criadora e o acto criativo que passamos a defini-lo como “o corpo poiético”. A criação antecede o instinto de sobrevivência. Assim, não é de estranhar que as primeiras manifestações de índole “criativa”, como as peças escultóricas, ou as pinturas e gravuras conhecidas, ou mesmo os monumentos megalíticos tenham para o Homem um carácter mágico. Os objectos criados personificados ou transformados em divindades tornam una a condição humana. O Homem cria para alimentar, sobretudo, o desejo da fertilidade. E a Mãe-Natureza será a primeira divindade conhecida, quer seja simbolizada através de monumentos megalíticos de forma fálica fecundando a terra (ver menhir do Outeiro) quer seja em pequenas estatuetas como a “Divindade” de Willendorf ou de Lespugue, entre outras, as únicas que dão resposta cabal à sua inquietação. Iconograficamente estas esculturas apresentam grandes seios, ancas largas, características fisiológicas de mulheres férteis: boas parideiras. Uma verdadeira comunhão entre a mulher que gera vida e a Natureza onde brota toda a vida indispensável ao seu sustento. A Mãe-Natureza enquanto divindade personifica a generosidade da Natureza, a maternidade, a fertilidade, enquanto o falo[3] representa a energia da criação. Doravante, o corpo poiético – a criação, a comunicação, a manifestação, em suma, aquilo que hoje chamamos de objectos artísticos - estará intrinsecamente ligado à sexualidade, à abundância, mediada pelo receio do absoluto.
A Mãe-Natureza terá outras representações e outros simbolismos consoante a vontade e a necessidade explicativa do homem ao longo da história da sua existência. Assim, jamais a condição humana separará a matéria do transcendente, o Corpo da Criação.
| Pré-histórica | Mesopotâmica | Egípcia | Grega - Romana | Cristã |
[1] Aquilo que mais tarde Aristóteles definiu como Ethos / Pathos / Logos: Um apelo ao ethos depende da credibilidade, competência e reputação da pessoa que faz o argumento. O recurso para pathos é um argumento emocional. Argumentos dessa natureza podem ter como alvo sentimento comum, valores culturais compartilhados ou serem estruturados para manipular e provocar uma resposta emocional directa. A pessoa que faz o argumento procura fazer o ouvinte se identificar com ela. O recurso para logos é um argumento lógico. A credibilidade do argumento repousa sobre a sua coerência e estrutura interna, bem como a evidência apresentada no seu apoio. Um argumento pode ser de apenas um desses estilos, mas Aristóteles acreditava que um argumento eficaz mistura todas as três qualidades.
[2] Nota: para Platão um Ser é percebido a partir do espírito ou das Ideias que se sobrepõem às percepções sensoriais. Para Aristóteles a reunião das características comuns de cada Ser definem a natureza intrínseca de cada Ser. Para S. Tomás de Aquino (Tomismo) a concepção geral de um Ser é percebida unicamente através do pensamento e eventualmente dissociada da realidade existencial, única e palpável.
[3] Na Antiguidade Clássica ele era um símbolo apotropaico, ou seja, tinha o poder de afastar o azar e as influências maléficas, ao mesmo tempo em que simbolizava a protecção junto à ideia de fertilidade e vida.
O Divino e a Fertilidade, 1998-2015©Luís Barreira